A história do bonequinho de madeira que quer ser um menino de verdade pertence, há muito, ao mais comovente imaginário cinematográfico e cinéfilo. Desde logo porque o romance do italiano Carlo Collodi (publicado em 1883) deu origem a um dos grandes clássicos dos desenhos animados que neste ano celebrou o 80.º aniversário - foi, de facto, em 1940 que Walt Disney lançou o seu Pinóquio, a segunda longa-metragem dos seus estúdios (depois de Branca de Neve e os Sete Anões, em 1937)..Sobre a estreia do novo Pinóquio, assinado por Matteo Garrone, apetece dizer que regressamos às origens. Estamos perante um filme de raiz italiana (em coprodução com a França) que, além do mais, envolve uma curiosa "repetição". Assim, o intérprete de Geppetto é o popular Roberto Benigni, que, por sua vez, já tinha realizado um outro Pinóquio (2002), nesse caso assumindo a figura central..O menos que se pode dizer sobre o trabalho de Garrone (mais conhecido por dramas como Gomorra ou Dogman) é que não se parece com nenhuma outra versão cinematográfica da história de Collodi. Se tentarmos encontrar algum paralelismo formal e narrativo com este Pinóquio, creio mesmo que só o encontraremos na filmografia do próprio Garrone, no modelo de fantasia poética por ele experimentada em O Conto dos Contos (2016), inspirado nas histórias de Giambattista Basile (1566-1632)..YouTubeyoutubec32RncU9u2Q.O Conto dos Contos talvez não conseguisse consumar o seu desafio estético, mas não há dúvida de que envolvia uma proposta tão desconcertante quanto sedutora. A saber: através de uma metódica conjugação de figuras materiais e efeitos especiais, Garrone combinava um realismo muito cru, em particular no tratamento de animais mais ou menos "monstruosos", com componentes de pura fantasia poética..Assim volta a acontecer no novo Pinóquio, a começar, aliás, pela figura de madeira interpretada por Federico Lelapi. Trata-se, aliás, de uma "interpretação" bizarra, uma vez que o boneco de madeira criado por Geppetto se apresenta "animado" por muitos elementos humanos, expondo-se como uma presença ambígua, sedutora, porventura indecifrável..Estamos, enfim, perante uma proposta singular, alheia às soluções correntes de um certo "cinema digital", apostando num artifício que não abdica de componentes genuinamente humanas. Tudo isso surge, aliás, reforçado pelos elementos realistas dos cenários de uma Itália ancestral, feita de pobreza e paisagens deslumbrantes, muito longe de qualquer apropriação "turística". Em resumo, um objeto de cinema realmente diferente, a provar que é sempre possível revisitar os clássicos para reinventar o espetáculo cinematográfico..* * * Bom