Num mundo de protestos de um feminismo politicamente correto, surge O Sal das Lágrimas, o novo filme do mestre Philippe Garrel, o mais marginal dos cineastas da nouvelle vague, aqui a filmar um triângulo amoroso inter-racial numa Paris contemporânea, onde o protagonista masculino conquista raparigas na rua e é quase orgulhoso no seu carácter de Don Juan. Provocação? Quando o filme passou no Festival de Berlim deste ano, Garrel aceitou falar para o DN ("Conheço muito bem esse jornal", avisou). ."O filme está cheio de coisas autobiográficas. Quando o rapaz segue a rapariga na rua e ela diz na padaria que se ele não parar chama a polícia, é algo que se passou comigo. Eu era um tonto que fazia isso porque acredito que o amor pode acontecer na rua, pode acontecer em qualquer lugar. Se chegarmos ao ponto de já não podermos encontrar uma mulher na rua, então estamos a entrar num extremismo enorme. Jamais podemos tentar evitar que as pessoas façam a corte nas ruas. O amor acontece em todo o lado. Se há coisa que defendo é o amor e as artes. Preciso de ambos, e tentarem colocar o amor numa gaiola é arcaico, sobretudo porque nestas coisas o acaso é o mais importante. O amor não se compadece com quaisquer regras ou regulamentos", comenta o realizador..O Sal das Lágrimas dividiu a crítica no Festival de Berlim mas não deixa de ser um prolongamento das suas reflexões morais das relações entre homens e mulheres. Paris e o preto-e-branco estilizado continuam a ser ornamentos habituais, aqui a servir de eco a uma história de um jovem da província que se instala em Paris e se apaixona perdidamente para depois se envolver com outra mulher. Os equívocos amorosos de um rapaz a viver as suas primeiras conquistas. Garrel, talvez mais do que nunca, dá a mão ao impulso jovem e celebra essa excitação com um júbilo que tanto pode ser modesto como intenso. É um filme de um amante para amantes..Vimeovimeohttps://vimeo.com/447909884."Sou um marginal, mas isso nunca foi uma escolha, passa por uma inclinação natural. É a minha natureza. Talvez por isso a moral neste filme seja nos antípodas da moral mais comum. Eu próprio não distingo os traços dessa moralidade... Vai depender da natureza de cada espectador. Uns vão aceitar, outros não. A moral do Godard com o cinema e com as mulheres é outra. Diria que nunca lhe chegarei aos calcanhares. Por isso, ainda acredito que ele é o meu mestre", prossegue o cineasta, informando lateralmente que a sua marginalidade também passa por estar muitas vezes do contra - Garrel odeia com toda a força Parasitas, de Bong Joon-ho, o vencedor de Cannes 2019 e dos Óscares. Salienta também que para este filme foi importante trabalhar com os atores que ensina no Conservatório. É obrigatório estar de olho em Logann Antuofermo, jovem ator que parece representar com uma desfaçatez embriagante..Num outro sentido, as lágrimas de amores perdidos que aqui são filmadas também dizem respeito a uma história de pai e filho, a uma relação de amor e respeito. Escusado será dizer que o veterano André Wilms é soberbo no papel do idoso pai que percebe o remorso do filho. "Este filme é também o resultado de um tributo ao meu pai, alguém que perdi recentemente. Por isso pedi ao Jean-Claude Carrière para ajudar no argumento, era importante que a relação do filho com o pai fosse a coluna vertebral do filme. Interessava-me refletir sobre a passagem de valores, e depois do luto isto foi uma forma de virar a página. Foi o meu adeus a ele. Demorou três anos a ser preparado, rodado e teve muitas escritas e reescritas do argumento. É a minha forma de me confrontar com a atual ditadura vigente do método tradicional do argumento. No meu plateau nunca tenho comigo uma cópia do guião." Acrescentamos que é um adeus tão amargo como sentido. O Sal das Lágrimas é essencialmente Garrel a destilar uma amargura no mínimo... romântica.