"Aos nove anos comecei a fumar, aos 12 estava altamente medicada com valium 10 e comecei a beber, aos 14 comecei a fumar ganzas e aos 16 tive o primeiro consumo com heroína e cocaína fumada. Só fumei uma vez, não gostei do sabor mas sim da sensação e aí passei logo a injetar"..Maria João Brás está sentada na sala de estar da sua casa a recordar os primeiros 28 anos de vida, quase três dezenas de anos que lhe valeram uma experiência e vivência que agora vai contando em vários eventos e entrevistas. Como esta, que surge a propósito dos 20 anos da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga e da sua presença no colóquio "20 anos de ENLCD: Passado, Presente e Futuro", marcado para a próxima terça-feira (7 de maio), na Fundação Calouste Gulbenkian, local onde irá recordar novamente a sua vida, o seu trabalho e a luta para ajudar quem passa atualmente pelas experiências, desta feita perante o primeiro-ministro António Costa e a ministra da Saúde Marta Temido.."Usei drogas injetáveis entre os 16 e os 28 anos. Depois entrei em recuperação, andei no centro de atendimento a toxicodependentes e a realidade é que durante esse tempo não saía de casa com medo de consumir. Não ia sozinha a lado nenhum, não descia sequer as escadas, entrava em pânico. Para ir ao CAT tinha de ir acompanhada pela minha sogra. Depois cheguei à conclusão que o tratamento não me estava a ajudar e abandonei, passei a ter tratamento com os narcóticos anónimos, um grupo que se ajuda mutuamente", relembra, não escondendo ter chegado "a dormir com a seringa debaixo do colchão"..Uma história que voltará a partilhar nesse encontro com o primeiro-ministro. Antes disso, no entanto, há outro momento importante a marcar o vigésimo aniversário da mudança legislativa que levou à descriminalização do consumo de substâncias ilícitas e a criação das comissões para a dissuasão da toxicodependência, para onde são encaminhadas as pessoas sinalizadas pelas polícias com quantidades consideradas apenas para consumo: a inauguração que aconteceu esta terça-feira (2 de maio) da exposição "Construímos Caminhos: Uma história dos Comportamentos Aditivos e Dependências em Portugal desde o início do século XX aos dias de hoje", no Parque de Saúde Pulido Valente, em Lisboa..A história política que está contada na sede do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e na Dependência) é bem conhecida de Maria João Brás. Aliás, a sua experiência é mais profunda do que os passos dados pelos governos, pois a estratégia entrou em vigor em 1999, um ano depois desta ativista e elemento do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) ter deixado de consumir..Grávida e com VIH.As suas vivências levaram-na desde muito cedo a decidir que seria uma ativista na área. Quis, com um grupo, fundar uma associação - "ainda a registámos, era a Ajuda a Grupos de Alto Risco", frisa - para ajudar os consumidores que "não tinham respostas suficientes na altura". O projeto não foi para a frente, mas continuou a vontade de ajudar, que acabou por adiar.."Tenho VIH desde 1995, ainda fui para o mercado de trabalho quando tinha um ano de tratamento, mas apanhei a minha primeira tuberculose. De 2000 a 2009 não levantei os pés do chão, tive duas tuberculoses seguidas, dois tratamentos [chegou a tomar 32 comprimidos por dia], pesava 40 quilos... eu que media 1,74 metros. Em 2005 conheci o GAT, estava a sofrer muito no primeiro tratamento ao fígado e fui pesquisar na net qualquer coisa que me pudesse ajudar por causa da hepatite. Encontrei o AIDS Portugal, como também tinha SIDA aquilo fazia-me sentido, e acabei por contactar um rapaz que tinha os mesmos problemas. Ajudámo-nos mutuamente, ganhámos uma grande amizade, ele foi meu padrinho de casamento, a mulher dele foi a madrinha do meu marido. Já morreu, de overdose", conta..É a partir de 2009 que Maria João vai trabalhar com o Grupo de Ativistas em Tratamentos: "O meu interesse sempre foi ajudar as pessoas que sofriam as mesmas dificuldades que eu senti.".Nesta altura, já tinha o filho quase dez anos. Um filho que temeu ver nascer com VIH. "Ele teve grande risco pois eu aos cinco meses de gravidez não era positiva [VIH], em 1995 a janela dos exames era grande, e depois aos oito meses já era. Não iniciei o tratamento logo, fiz uma paragem pois não queria que o meu filho nascesse a ressacar. Não tinha barriga, nem menstruação pois as mulheres consumidoras não têm, e o primeiro diagnóstico até tinha a dúvida sobre se estava cruzada com a hepatite C que tinha desde os 18 anos. Por isso, só tomei a terapia para o meu filho não nascer com VIH durante um mês, foi muito pouco", diz.."Ele nasceu e tomou durante quatro semanas o xarope, o retrovírus, mas ele não nasceu com SIDA. Teve hepatite C aos quatro anos, mas tratou-a", acrescenta. .Expor-se com autorização do filho.Apesar de sempre ter como objetivo ajudar consumidores, Maria João Brás nem sempre deu a cara. Isso só aconteceu depois de uma conversa com o filho: "Decidi expor-me quando ele me autorizou. Só via homens a expor-se e a mulher estava desprotegida."."Enquanto utilizadora sempre senti que as pessoas achavam que me prostituía, que para ter dinheiro para a droga tinha de me prostituir. Já os homens é roubar. Decidi falar, se as pessoas não falarem o estigma não passa. Por isso dou a cara por vários assuntos em relação aos quais agora não tenho problemas, como as drogas, a hepatite C. O objetivo é que as pessoas não passem o que passei", garante..Vinte anos depois da entrada em vigor da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga - que tem sido muito elogiada a nível mundial - Maria João Brás diz ainda há estigma em relação aos consumidores. "Já presenciei situações em que as pessoas se afastaram [de consumidores] e até têm receio de se sentar ao lado deles. Na margem sul, na fase inicial da carrinha [onde se podem fazer testes] as pessoas não queriam vir. Tinham vergonha. Chegaram a dizer-me 'ó menina olhe para a minha cara, acha que estou doente'' ou 'está ali em baixo um grupo de drogados, vá lá fazer os testes'", conta..Metade da estratégia ficou no papel.Passados 20 anos sobre a aprovação de uma lei que tem sido apontada como um caminho para vários países é hora de balanço - que será efetuado no colóquio de dia 7 organizado pelo SICAD na Fundação Calouste Gulbenkian. Mas, nem tudo corre bem, segundo Maria João Brás. "Acho que a estratégia foi importante, só que metade ficou no papel. Passados 19 anos só agora temos uma sala de injeção assistida, a unidade móvel do GAT. Não temos naloxona [droga antagonista de opioides] e a descriminalização não significa despenalização", critica.."Hoje se usasse drogas sentir-me-ia pior que no passado. Antigamente se fosse apanhada no Casal Ventoso, os polícias apanhavam-me a droga, mandavam-me atirá-la para o chão, apontavam o meu nome no papel que depois devia ir para o lixo. Hoje, os miúdos são apanhados com quantias pequeníssimas e são obrigados a ir para comissões de dissuasão, onde pagam uma multa ou vão para tratamento, onde encontram junkies [viciados de há muito tempo]. É uma violência", frisa..Elogia o facto de o "programa ter a troca de seringas e de haver mais camas e centros de tratamento", mas já critica a ausência de uma troca "de cachimbos para quem fuma crack [cocaína solidificada]. A estratégia foi boa para o Estado pois tirou pessoas das prisões".."Acho que a estratégia está muito direcionada para o tratamento e a abstinência e não para a redução de riscos. Conheço pessoas que querem continuar a consumir. E têm esse direito", sublinha voltando ao caso pessoa: "Eu adoro drogas, elas é que não gostam de mim. Cheguei a um limite da minha vida em que pensei: ou continuas a consumir ou vais morrer e eu escolhi a minha vida. Mas continuo a gostar de drogas, porque aquilo é bom.".Maria João defende "a legalização das drogas, a heroína medicalizada. Era a forma de o Estado controlar as drogas, saber o que as pessoas consomem. O problema é que acham que com a legalização vai haver um boom. Está provado que não. E a metadona é pior que a heroína"..Apesar das críticas reconhece que a opção nacional "é boa. Mas metade do que está no papel não está no terreno. E uma estratégia com 20 anos já devia ter sido alterada, evoluir. Há muito a mudar".