"Pensei que ia ficar seis meses em Bruxelas. Acabei por ficar 26 anos e não estou arrependido"
É formado em Economia, trabalhava para o Banco de Portugal mas, quando o país adere à então CEE em 1986, sente a tentação de ser funcionário europeu. Por ser um europeísta convicto ou era sobretudo uma oportunidade de trabalho?
É de tudo um pouco, mas a minha atividade profissional não se limitava ao Banco de Portugal. Eu estava a lecionar na Católica onde em 1979, por iniciativa do doutor Ernâni Lopes, se criou o primeiro Centro de Estudos Europeus que houve em Portugal. A Europa era uma questão que me tocava diariamente. Portugal na CEE, depois de tudo o que tínhamos passado, depois da mudança de regime em 1974, era uma aventura e um projeto que valia a pena e ao qual nos entregámos, aqueles que fomos no início, de alma e coração.
Uma aventura para si e família também?
Uma das condições que pusemos a nós próprios, a minha mulher e eu, era a de que só valia a pena ir se todos quiséssemos ir. Os filhos mais velhos estavam numa idade que dava para perceber isso, os outros não, mas de facto eu não teria sido capaz de ir se não quisessem ir todos. Foi uma aventura coletiva que correu muito bem. Depois, porque para onde fui trabalhar lidava com matérias que me eram familiares do ponto de vista profissional e, portanto, senti-me bem. Mas quando cheguei pensei que ia ficar seis meses em Bruxelas e acabei por ficar 26 anos e não estou arrependido!
Há uma fase que é a da construção do euro em que o António está muito empenhado. O euro é a maior conquista da atual UE?
Certamente, mas o projeto do euro foi difícil de construir. Se olharmos para a sua origem e a localizarmos no Relatório Delors vemos a quantidade de anos que levou. Mas, a partir de certa altura, houve de facto uma vontade política grande de criar o euro; tive a sorte de participar ativamente na concretização desse projeto pois então era diretor das "Economias dos Estados Membros", e foi uma grande emoção ter estado presente quando o euro viu finalmente a luz do dia!
As decisões do Reino Unido de ficar de fora do euro, de Schengen, eram um prenúncio do Brexit?
O Brexit tem mais que ver com um reposicionamento do Reino Unido enquanto nação e do seu papel no mundo pós-imperial, pós-guerra, em que a Europa também é uma parte da equação, mas mais fundamentalmente como é que o Reino Unido está no mundo. Estão a fazer uma escolha que não lhes vai ser muito útil, mas é a escolha deles.
Em 2004 aconteceu um fenómeno de sentido contrário ao Brexit, que é uma adesão maciça de dez países à UE. Em Bruxelas sentiu-se essa chegada?
Foi uma adesão larga em termos de países, em termos de população não foi tão grande como isso. Já tínhamos tido a experiência do alargamento de 1995 à Áustria, à Suécia e à Finlândia. Acho que esse alargamento de 2004 foi muito bem absorvido no que toca ao funcionamento das instituições. Naturalmente que o espectro político e o espectro cultural alargaram-se muito.
Essa diversidade cultural também chegou aos próprios funcionários. Como é que é o relacionamento?
O relacionamento entre funcionários é bom, que me recorde nunca vi fazer-se qualquer distinção. O meu caso particular é um bocadinho específico, porque como trabalhei sempre, exceto na parte em que estive com o presidente Barroso, numa família de economistas profissionais , o facto de termos todos essa base comum facilita muito a convivência, a conversa e a cultura.
Sente que se está a criar nessa convivência uma certa comunidade europeia?
De certa forma, com certeza, uma pequena comunidade, mas numa cidade como Bruxelas, de dimensão razoável, esbate-se um bocado. Em termos de terem hábitos comuns, de conviverem muito uns com os outros, depende muito das nacionalidades. Nós portugueses somos um bocado individualistas. Há aquela anedota dos dois portugueses que estão sentados à porta de casa à hora do almoço e um deles que está a ler o jornal diz para o outro: "Aqui no jornal diz que os portugueses são muito individualistas." Responde o outro: "Problema deles." É um pouco assim. Ajudamo-nos mutuamente menos do que outras nacionalidades se ajudam.
Fala-se muito desses funcionários como uma elite de burocratas, mas há um elevado grau de meritocracia, certo?
Certo, e cada vez mais. Já era assim, mas tornou-se particularmente exigente depois da crise Santer. Santer teve de se demitir porque o Parlamento Europeu estava, no exercício das suas atribuições, disposto a arrasar a Comissão Europeia, e uma das razões que levaram a isso, exagerada na minha opinião na altura, foi precisamente as situações de algum favorecimento dentro da Comissão, como foi o famoso caso, que já lá vai, do dentista da senhora Cresson. A partir daí a exigência em termos de mérito tornou-se muito grande e transparente. As "parachutagens", a entrada de gente por cima, deixaram de existir.
A partir de 2004 fez parte do núcleo duro de Barroso quando ele foi para a Comissão como presidente. Não o conhecia?
Tinha-o visto ao longe uma vez, numa conferência que ele fez em Bruxelas, quando foi ministro dos Negócios Estrangeiros, mas não o conhecia pessoalmente. Durão Barroso chamou-me no verão de 2004, fui a casa pôr umas calças para não ir de bermudas, fui à representação da Comissão em Lisboa e ele entrevistou-me. Para um funcionário da Comissão ser convidado pelo próprio presidente para trabalhar com ele é a maior honra que se pode ter - isto foi uma coisa que eu disse mais à minha mulher do que a Barroso, para a convencer a eu ficar em Bruxelas pois esses não eram os meus planos [risos] -, e fiquei. Acho que ele ficou satisfeito ao conhecer-me e lá fiquei os dez anos dos dois mandatos. Acho que aí fui um pouco recordista. O presidente Barroso constituiu uma equipa que sempre se deu bem, foi variando, mas ele foi um grande chefe de equipa também. Foram para mim dez anos duríssimos mas fascinantes.
Barroso apanhou um período difícil, a grande crise. Como é que Portugal era visto nessa altura de Bruxelas?
Dizer que foi um período difícil é um understatement. A Europa, a Comissão Europeia, o Conselho, passámos todos por momentos muito complicados. Não estranhará que eu diga isto, mas digo-o com convicção e não por facciosismo: acho que a Europa não se saiu mal e que a Comissão também não.
E em relação a Portugal?
Portugal, tal como todos os outros países, estava sujeito aos acompanhamentos da implementação das recomendações do pacto de estabilidade e dos programas de estabilidade e crescimento, era um país em que se assistia à constituição de desequilíbrios para os quais era chamada a atenção, mas que eram opiniões e recomendações, só poucas eram binding, por força dos tratados. Muitas das críticas que se fizeram em Portugal ao papel da Comissão consistiam em dizer que a Comissão não fez nada. Os que diziam isso de manhã são muitas vezes os que dizem à tarde que a Comissão se mete onde não é chamada.
Foi um sucesso para a Comissão Portugal ter cumprido o período de resgate?
Sem dúvida. Foi para a Comissão Europeia e penso que para todos os portugueses em primeiro lugar. Vivi esses momentos com alguma intensidade e até emoção, sou português. Acompanhei de perto, não só o processo que levou ao pedido de ajuda externa em 6 de abril de 2011 mas também a execução do programa de ajustamento e as avaliações sucessivas. O facto de o programa ter sido cumprido deve ser acentuado, porque, cá está, outro mal-entendido muitas vezes utilizado aqui em Portugal é que não foi. O programa tinha etapas sujeitas a condicionalidade, as performance clauses, ou seja as fatias ou tranches financeiras só eram desembolsadas se a condicionalidade fosse cumprida. Foram desembolsadas todas as tranches, exceto a última que Portugal não quis pedir porque já não precisava. Ou seja, o programa foi cumprido, bem cumprido, e com esforço. Mais, a situação em que Portugal está hoje não seria a que é se se não tivesse cumprido o programa de ajustamento. Vejamos, o défice orçamental está hoje perto de zero, o que é saudável, mas partiu de 3% em 2015. Se tirarmos o Banif, o que temos de fazer para permitir comparações, e que representa 1,4%, passamos de um défice observado de 4,4% para 3%, e estes 3% em 2015 tiveram como ponto de partida um défice de quase 12% em 2010. Portanto, foi o governo anterior que fez este caminho até 2015, que foi depois continuado, mas para que todos nos apropriemos disso é necessário que tal seja dito em alto e bom som. Estamos bem onde estamos, mas o caminho começou muito antes e isso deve ser partilhado, em particular o que o governo de Passos Coelho fez não pode ser esquecido. Eu penso que esta nova interpretação de alguns de apagar, no sentido de delete, o que foi o programa de ajustamento e a sua execução não é correta. Tem de ser dito porque corresponde à realidade dos factos e não tira mérito ao que foi feito depois.
Há um episódio que presenciou relacionado com a crise, que envolve Barroso e George W. Bush. Quer contar?
Tive o privilégio, quando acompanhei o presidente Barroso, de presenciar momentos marcantes, dos quais tirei muitas notas, e de que este é só um exemplo. Penso que podemos datar o início da crise com a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008. Foi nessa altura, que a toxicidade dos ativos financeiros que estavam distribuídos pelo mundo inteiro começaram a sentir-se nos balanços dos bancos. Logo em outubro, Sarkozy, que tinha a presidência rotativa da UE - ainda não tínhamos o Tratado de Lisboa -, convocou um Eurogrupo a nível de chefes para Paris, para o Eliseu. Principalmente, porque os países cujos bancos estavam a ser afetados pelos ativos tóxicos queriam tomar medidas para os proteger, nomeadamente com injeções de capital público. Tais medidas unilaterais violariam as regras da concorrência e poriam em causa o mercado interno, o que acabou por não acontecer. Barroso ajustou as regras de ajudas de Estado e conseguiu manter-se a disciplina da concorrência e o mercado interno. Logo a seguir à reunião no Eliseu, Sarkozy disse a Barroso : "Esta crise é global, tem de ter uma resposta global. Vamos aos EUA, até porque foi lá que a crise começou, temos de falar com o Bush." E foram, e eu com eles. Sarkozy como presidente da UE em exercício, Barroso como presidente da Comissão, foram a Camp David ser recebidos pelo presidente Bush. O encontro, e o jantar informal que se seguiu, foi num daqueles bungalows, que são casas de férias ou de retiro, mas simples, casas simples. Lá estavam Bush, Paulson, que era na altura o secretário de Estado do Tesouro, e Condoleeza Rice, secretária de Estado, com alguns dos seus próximos colaboradores. Do lado europeu, Sarkozy com os seus colaboradores e Barroso com os dele, entre os quais João Vale de Almeida , chefe de gabinete, e eu. Não éramos muitos, ao todo não deveríamos ser mais do que uma dúzia, já não me lembro bem. Lá estivemos e foi dessas discussões que saiu a instituição das cimeiras do G20 a nível de chefes de Estado e de governo, cuja inauguração foi no novembro seguinte, em Washington. Foi uma iniciativa europeia!
Vinte e seis anos de Europa, como funcionário, dez deles a trabalhar com o presidente da Comissão Europeia; é otimista em relação ao futuro da União Europeia?
Sou. É claro que os tempos que estamos a viver não são fáceis, são ótimos para comentadores, fazem cenários de implosão daqui, implosão dali, populismos, são situações complicadas e graves, mas não tenho dúvidas de que a Europa vai ultrapassá-las e vai continuar em frente. Provavelmente não vai continuar igual, porque isso também teve a sua época, e difere da altura em que fui para Bruxelas quando, de facto, fomos para a Europa com espírito de corpo, com vontade de construir alguma coisa participando no projeto da construção europeia. Hoje é mais gerir, aguentar e só dar passos em frente se forem sólidos, mesmo que pequenos, porque a UE é fundamental para o papel da Europa no mundo. Penso, como dizia Barroso muitas vezes , que contrariamente ao glamour do europessimismo, que é assim uma coisa chique, devemos afirmar o que já conseguimos e temos hoje, e que é muito. Por exemplo, na área económica e financeira, penso que uma das forças aglutinadoras, e não desagregadoras, da Europa vai ser o euro . Devíamos ter orgulho no euro e em Portugal ser membro do euro. Devemos continuar a honrar os compromissos que tomámos. O euro salvou a Europa, e Portugal, nos tempos da crise.
António Cabral licenciou-se em Economia no ISCEF, em 1971. Iniciou a carreira no Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, mais tarde integrado no Ministério das Finanças como Departamento de Planeamento. Em 1978 entra no Departamento de Estatística do Banco de Portugal (de que chegou a ser diretor-adjunto). Foi também professor na Universidade Católica. De 1988 a 2014 foi funcionário da Comissão Europeia. Até 2004 trabalhou na Direção Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros onde chegou a Diretor Geral Adjunto. De 2004 a 2014 foi Conselheiro Especial do Presidente da Comissão, Durão Barroso.