Pence, o fiel vice-presidente que não abandona Trump

Por uma vez, na semana passada, Mike Pence não cumpriu as indicações do presidente. Mas após as críticas em público de Trump e cinco dias de silêncio, as relações foram reatadas. E esta quarta-feira, recusou invocar a 25.ª emenda para destituir o presidente.
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No dia 20 de janeiro de 2017, com a mão esquerda na Bíblia que pertenceu a Ronald Reagan, e perante um dos juízes mais conservadores do Supremo, Clarence Thomas, Mike Pence jurou apoiar e defender a Constituição dos Estados Unidos "contra todos os inimigos, internos ou estrangeiros". Há uma semana, as circunstâncias levaram-no a citar o juramento que fez na tomada de posse.

Perante a campanha de pressão do presidente Donald Trump para que este, de alguma forma, fizesse tábua rasa das leis, e tornasse o derrotado das eleições de 3 de novembro em vencedor na sessão de certificação dos votos do Colégio Eleitoral, Pence recordou o momento em que declarou "com a ajuda de Deus". Disse o vice-presidente em comunicado: "Quero assegurar ao povo norte-americano que vou manter o juramento que lhes prestei e o juramento que prestei a Deus todo-poderoso." Além disso instou os seus colegas a porem "a política e os interesses pessoais de lado", e a fazerem a sua parte para "cumprirem fielmente os deveres nos termos da Constituição". E para que não restassem dúvidas, terminou afirmando que os votos do Colégio Eleitoral seriam contados "de uma forma consentânea com a Constituição, com as leis e com a história".

Sabe-se agora que este comunicado foi o culminar, sem sucesso, de três semanas de pressão de Trump e do círculo mais próximo, na sequência da confirmação da vitória de Joe Biden pelo Colégio Eleitoral no dia 14 de dezembro. Os advogados Rudolph Giuliani e John Eastman, o conselheiro para o comércio Peter Navarro e a advogada e adepta de teorias da conspiração Sidney Powell foram alguns dos que exerceram pressão junto do vice-presidente. Além do mais, contam funcionários da administração ao The Washington Post, Trump incitava quem lhe ligava a encorajá-lo para que ligassem a Pence e quando ambos estavam na Sala Oval, o presidente chegava a ligar a essas pessoas para que estas tentassem convencer o vice-presidente.

E, claro, o próprio Trump, em pessoa ou por telefone, até à manhã de quarta-feira passada, não parou de pressionar Pence para este impedir a vitória de Joe Biden, inclusive através de ameaças implícitas. "Será mau para si e para o país se não o fizer", disse Trump numa reunião.

Donald Trump, que se gabava de ter ido buscar ao Indiana um governador em sério risco de perder a reeleição, teve em Michael Richard Pence um homem de mão incapaz de levantar a voz sobre qualquer que fosse o tema, das mensagens de apoio de Trump aos supremacistas brancos aos imigrantes separados dos filhos na fronteira, na política externa, nas teorias infundadas de fraude eleitoral ou na gestão do coronavírus (de que o vice-presidente ficou responsável desde o final de fevereiro). Talvez por isso visse em Pence alguém que iria cumprir de forma robótica a sua exigência.

"Mike Pence, espero que te imponhas para o bem da nossa Constituição e para o bem do nosso país. E se não o fizeres vou ficar muito desapontado contigo", disse Trump no comício não muito longe do Capitólio. "Espero que Mike tenha a coragem de fazer o que tem de fazer, e espero que não dê ouvidos às pessoas estúpidas que está a ouvir", continuou. Mas quando, já depois de ter dito aos seus fiéis para mostrarem "força"e caminharem para o Capitólio, e regressado à Casa Branca, o nova-iorquino lamentou no Twitter a falta de coragem do seu vice "de fazer o que deveria ter sido feito para proteger" os EUA e a Constituição". Alguns dos seus apoiantes responderam durante o assalto ao Capitólio com palavras de ordem a perguntar por Pence e a pedir o seu enforcamento.

Desde então, quando Pence foi levado para um local seguro no Capitólio - terá recusado as indicações da segurança em abandonar o local - até segunda-feira à noite, durante cinco dias presidente e vice-presidente não trocaram uma palavra. Não deixa de ser curioso que o "presidente-sombra", como foi apelidado pelos jornalistas Michael D"Antonio e Peter Eisner na biografia The Shadow President, vá ficar para a história pela única vez que não seguiu as ordens do seu superior.

Talvez porque, como nesse livro se deixa bem claro, Pence diz ser "cristão, conservador e republicano" por esta ordem e não tenha querido ferir o seu juramento perante o "todo-poderoso". Talvez porque na sequência de ter pedido aos seus serviços jurídicos uma análise do seu papel na cerimónia de certificação de resultados tenha concluído que só podia agira daquela forma. Ou talvez apenas por puro cálculo político. "Mike Pence pôs de lado tudo aquilo em que disse acreditar, tudo. Aqui está um tipo que se bateu contra o adultério no seu programa de rádio, e depois juntou-se a Donald Trump e, claro, ia acabar assim", comenta ao Post um analista do Partido Republicano e crítico de Trump Stuart Stevens.

Mas como vai acabar ninguém sabe. Na segunda-feira à noite Trump e Pence reuniram-se e rezam os assessores que da "boa reunião" saiu o compromisso de ambos trabalharem em conjunto "em nome do país" nos restantes dias até à transição. Parece assim afastada a possibilidade de uma rutura total na Casa Branca e de o vice-presidente dar ouvidos à resolução da Câmara dos Representantes votada nesta terça-feira para avançar com o afastamento imediato do presidente através da via prevista na 25.ª emenda. Um afastamento que Pence recusou, ao rejeitar esta quarta-feira a hipótese de invocar a 25.ª emenda.

"Faltando apenas oito dias para o mandato do presidente, a senhora e o Caucus Democrata estão a exigir que o Gabinete e eu invoquemos a 25.ª Emenda", escreveu Pence à presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. "Não acredito que tal curso de ação seja no melhor interesse de nossa nação ou seja consistente com nossa Constituição", continuou Pence.

O vice-presidente respondeu a Pelosi que seu pedido para invocar a 25ª Emenda foi equivocado, dizendo que esta foi projetadapara "lidar com a incapacidade ou deficiência presidencial", não como um "meio de punição ou usurpação". Pence também destacou que, apesar da intensa pressão do seu partido para invalidar os votos eleitorais dos estados indecisos conquistados por Biden, ele cumpriu o seu dever constitucional de certificar os resultados. "Não vou ceder agora aos esforços da Câmara dos Representantes para jogar jogos políticos nm momento tão sério na vida da nossa nação", escreveu.

A destituição de Trump, que deve ser votada (e aprovada) hoje pela câmara baixa do Congresso ganhou um apoio de peso: William Webster, antigo diretor do FBI e da CIA, e um homem que se descreve como um "republicano vitalício", defendeu num artigo de opinião o impeachment de Trump, ou em alternativa um voto de censura.

Donald Trump decidiu fazer uma das suas últimas viagens como presidente ao Alamo, no Texas, para visitar uma secção do muro construído durante o seu mandato na fronteira com o México. À chegada ao Texas, o presidente cessante voltou a tirar "caça às bruxas" da gaveta das suas expressões favoritas. Desta vez para comentar a iniciativa dos democratas da Câmara dos Representantes para o destituir pela segunda vez. Trump também não mostrou qualquer tipo de arrependimento pelas suas ações na quarta-feira passada, quando as suas palavras inflamatórias terão contribuído para a invasão ao Capitólio. "As pessoas pensaram que o que eu disse foi totalmente apropriado", disse, sem explicar de que pessoas se referia. Prova da relutância de os republicanos em cortarem com Trump, o senador Lindsey Graham, que na semana passada clamara "já chega" e anunciara o fim da "viagem e tanto" com o presidente, voltou a viajar e de forma literal, no Air Force One, o avião presidencial.

Os republicanos estão divididos porque não querem perder a base de apoio de Trump. Numa sondagem publicada no Huffington Post, cerca de um terço dos eleitores do Trump disseram simpatizar com a turba do Capitólio, e a maioria dos inquiridos disse que não acreditava que o tumulto de quarta-feira fosse um incidente isolado.

A dias da cerimónia de tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris, e com a ameaça a pairar de protestos armados um pouco por todo o país, Chad Wolf, o secretário interino da Segurança Interna demitiu-se do cargo, tendo alegado os "recentes eventos" e as decisões em tribunal que põem em causa a legalidade da sua nomeação. Para o seu lugar irá Peter Gaynor, da agência de gestão de emergências. O departamento foi criado na sequência dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.

Enquanto prosseguem as investigações sobre as falhas na segurança que levaram ao caos ocorrido na capital dos Estados Unidos, que resultaram em dezenas de polícias suspensos e sob investigação, soube-se que o FBI sabia na véspera que se preparava uma ação violenta e "guerra" em Washington. Uma revelação que contradiz as anteriores declarações de responsáveis daquela agência governamental.

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