Cinco anos depois de Contramão, Pedro Abrunhosa regressa aos discos de originais com Espiritual. Em torno do que há de espiritual nos homens e do espírito do tempo em que vivemos, o músico, que em breve fará 58 anos, juntou à sua voz as de Ana Moura, Carla Bruni, Elisa Rodrigues, Lila Downs, Lucinda Williams e Ney Matogrosso..Pedro Abrunhosa acredita que uma das funções da canção é devolver a profundidade a quem a escuta, num tempo em que, à velocidade das redes sociais, passamos das férias de alguém para uma criança com fome no mesmo ecrã. Pode ser uma criança, um refugiado, o Senhor do Adeus ou Gisberta. Quando se senta ao piano, diz que as canções sobre eles, espécie de personagens vivas num mundo de adormecidos, se escrevem sozinhas..Li esta frase do padre Rui Fernandes, sj: "A música não é espiritual por falar de coisas religiosas, mas por tocar a vida por dentro." É a este espiritual que se refere no disco?.Claro. É um erro associar-se a espiritualidade à religiosidade, porque as religiões sem exceção tentaram obter o monopólio da espiritualidade, do acesso ao interior de nós. Como quem diz: nós somos o veículo e oferecemos isto em troca. A espiritualidade é o espaço interior que cada um de nós tem, todos somos únicos..Há também uma componente forte de espírito do tempo. Foi também por isso que lhe chamou Espiritual?.Chamei-lhe Espiritual porque acho que mais do que nunca precisamos de um espaço de contemplação, precisamos de parar, de silêncio. Esta ausência destes núcleos onde conseguimos pensar sobre nós e olhar-nos num espelho silencioso, afastados da aparência, porque, se há coisa que o espírito não é, é aparência. Com as redes sociais a grande velocidade, nós somos turistas das coisas, já não as vivenciamos, com o dedo rapidamente passamos pelas férias da nossa amiga nas Caraíbas e de repente por uma criança com fome no Iémen. E nós somos todos voyeurs sem nenhuma essência. Essa desespiritualização da comunicação acho que tem de ser tomada uma vez mais pela arte. Os espetáculos são lugares de festa, onde eu exalto as 30 ou 40 mil pessoas a saltar, a comungar de uma alegria comum, mas quando estou sozinho ao piano e toco canções como A.M.O.R, aquelas 40 mil pessoas não saem do lugar. Há momentos de mistério profundo nos espetáculos. Chamar Espiritual ao disco é essa devolução da propriedade da profundidade àquilo que eu acho que deve ser uma das funções da música, nomeadamente da canção..Como é que é esse processo de ver qualquer coisa que depois se vai transformar numa canção? Estou a pensar na Gisberta, na questão da emigração, e agora nos refugiados com Amor em Tempo de Muros..Lembra-se do Senhor do Adeus? Cruzei-me com ele pelo menos durante 30 anos. Já quando eu vinha dar aulas a Lisboa no Hot Club. Entrava por aqui [pelo Saldanha] e ele estava ali. Nunca nos falámos. Eu buzinava-lhe ou fazia sinais de luzes, aprendi quem ele era, ele dizia-me adeus, era uma cumplicidade, nunca soube quem eu era. Ele vivia daquela emotividade, da devolução que as pessoas lhe davam. Era uma personagem fascinante, o epíteto da personagem poética urbana, silencioso, sem querer nada a não ser a devolução de uma certa bondade original das pessoas. Um dia ele morreu. Ao fim de um mês aquele personagem fez-me falta, e eu escrevi o Senhor do Adeus. Foi assim com a [Balada de] Gisberta. O Chico Buarque tem uma frase que acho que responde por mim. Diz [em Notícia de Jornal]: "A dor da gente não sai no jornal." A notícia sai, mas a dor não. No fundo esta solidão do Senhor do Adeus é coletiva. E no caso do Amor em Tempo de Muros, pior do que não saber é fingir que não se sabe..Foi ao México filmar aquele videoclipe?.Eu não fui. Estava com muitos concertos. Fizemos um script, tínhamos muito claro o que íamos filmar. Eu não fiz falta nenhuma. Para ser sincero, cada vez mais quero não aparecer, até estar naquele vídeo é quase uma obrigação que me impõem, porque eu não queria, já está lá a minha voz. Tentámos acompanhar uma família. A canção já tem dois anos. Os assuntos impõem-se muitas vezes pelos jornais. A questão do Aylan [que surge em Porque É Que não Fui Eu, um dueto com Ney Matogrosso]... É impossível passar ao lado daquilo. Fica lá uma semente e depois quando estou na solidão do piano há um ímpeto que sai naturalmente, aquilo escreve-se sozinho..São pessoas que aparecem vivas no meio de adormecidos?.Todas as canções são de amor, mesmo que sejam de morte. Senhor do Adeus é uma canção de amor, como a [Balada da] Gisberta. É o ato de tentarmos sermos bons uns com os outros. Claro que são alavancas de criatividade que felizmente estão um bocadinho em todo o lado, podem estar na literatura. A criatividade tem de ser alavancada por coisas, ao contrário da inspiração romântica, que é um mito com o qual eu tenho as minhas querelas, porque não existe. Existe o trabalho sobre a realidade. A mim interessa-me pouco a canção de amor tout court, interessa-me o precipício..Antes dos discos, quando é que começou a ser assaltado por coisas que o fazem querer escrever?.Eu escrevia coisas muito fracas, porque a canção é um exercício que se pratica, não se é iluminado. O meu primeiro disco sai aos 33 anos por vontade própria, porque acho que não estava preparado para dizer coisas às pessoas..Teve de se agarrar para esperar?.Sinceramente, não. Nunca procurei a fama, mas tinha necessidade de falar sobre algumas coisas. Eu tocava contrabaixo e já tinha vindo da música contemporânea. O Jorge Peixinho, a quem eu devo muita coisa, disse na primeira aula: "Na música tudo é possível." E aquilo dito por um professor é epifânico. Depois das regras, depois de Bach, fundamental, Mozart, Beethoven, Wagner, Schönberg. E aquilo ficou. Eu senti necessidade de falar e o contrabaixo é o último instrumento da orquestra. Para quem acha que tem alguma coisa para dizer, que quer expulsar de dentro, o contrabaixo não é o instrumento, mas foi o que eu escolhi, porque adoro-o, e deu-me uma visão interior da música. Por isso era a necessidade de falar e o prazer que me dá escrever. Eu escrevia, lia, fechava-me no meu estúdio pequenino em casa. O Viagens foi feito num teclado deste tamanho, com um visor deste tamanho. E depois, claro, tinha o grande exemplo do Bob Dylan, e era muito influenciado pela música francesa, porque a minha família tinha uma costela burguesa do porto francófona. O Ferré, o Brassens, o Reggiani, o Gainsbourg... Quando saiu com a Jane Birkin [Je T'Aime... Moi Non Plus] lembro-me perfeitamente do escândalo, de se ouvir às escondidas. Ouvi pela primeira vez na duna de uma praia num gira-discos de plástico a pilhas. E, claro, o imenso Fausto, que acho que é o grande autor português, o Ary dos Santos, o Sérgio Godinho, o Zeca... Aquilo começa a fazer sentido: se calhar eu posso usar o português e juntar o contrabaixo. No fundo, foi assim que começou..É quando começa a explorar a canção que percebe em si uma vocação para dizer certas coisas na música?.Não, não há uma iluminação. Eu comecei a introduzir na orquestra de jazz [que fundou e dirigiu] reportório do funk - estávamos em 1982 -, de James Brown, Robert Cray, dos blues... Comecei à procura de canções para fazer as partes vocais, e os cantores que me apareciam eram cantores. Isto diz tudo. Era tudo menos espírito, era técnica. Era uma coisa muito fria, muito certinha. Tentei cinco, seis, sete, oito. À medida que ia tentando ia exemplificando, e aí a orquestra puxava para cima um bocadinho. Um dia o Mário Barreiros pergunta-me: "Pedro, porque é que não cantas?" Coisa que eu não sei fazer e sempre assumi: não sou cantor. A história da música está pejada de gente que faz grandes canções e é muito limitada vocalmente. Eu tenho uma voz muito boa no barítono grave, mas a força dos Comité Caviar, da orquestra de jazz [que depois deu origem aos Bandemónio] atropela o barítono, e eu tive de arranjar maneiras de me defender. Como o Sérgio Godinho [fez] ou o Rui Reininho. Não somos propriamente cantores no sentido de irmos a um concurso de televisão e ganharmos. Não ia acontecer..Desde cedo fez viagens, nome do seu disco de 1994, muito diferentes das que faz hoje. Andava à procura de quê?.Aos 13 anos fiz a minha primeira viagem. Hoje olho para trás e fico admirado. Na altura não havia telemóveis nem autoestradas em Portugal, em Espanha muito poucas. Para se chegar a Paris era uma aventura. Andar de avião era uma coisa de rico. A viagem era toda ela uma experiência. Daqui a Vilar Formoso já o era, porque ia-se pelo fundo do Tâmega, do Douro, do Dão. Era um inferno, eram oito horas. Eu fui à boleia com um camionista amigo do meu pai. Ao chegar a Paris ao fim de quatro dias já se levava mundo. Uma criança de 13 anos a viajar sozinha... Eu era muito seguro e as viagens deram-me ainda mais segurança. Lembro-me de um momento revelador em 1975, num comboio de Zagreb para Atenas onde nós, mochileiros, dormíamos no chão, em tapete. Os compartimentos cheios, as prateleiras cheias, com mochileiros, locais, albaneses, romenos, pessoas que vinham trabalhar, soldados. Um cheiro... Era uma viagem que demorava três dias. Lembro-me de estar nesse comboio e de um irlandês se ter metido comigo por eu ser português e de eu ter sentido pela primeira vez o bullying racista. Ele perguntou-me se nós em Portugal tínhamos pão e se conhecíamos a relva..Como é que lhe respondeu?.Para já, a pergunta chocou os presentes. Estamos perante uma pequena ONU que se desloca pela planície da Macedónia num calor infernal. Aquela pergunta gera um silêncio, eu respondi de forma arrasadora e recordo-me de ele ter ficado embaraçado, porque é evidente que não é difícil responder a um cretino assim. Depois tive de aturar a criatura durante mais dois dias mas já em silêncio e outcasted pelos outros..E esses outros?.Lembro-me das conversas que tínhamos ali no grupo, e isto simboliza muitas das milhares de viagens que fiz. Juntavam-se ali muitas histórias. Lembro-me dos elogios que faziam a Portugal: "Deve ter um sistema de ensino incrível; falas línguas, sabes a história da Grécia..." Eu estava no Conservatório e tive de fazer um trabalho sobre a música na tragédia antiga. Fui lá por causa disso. Aquilo na altura serviu para explicar àquelas pessoas o que íamos ver dali a três dias, quando chegássemos à Grécia. Eu tinha 15 anos e perante mim próprio, sei eu agora, sedimentou o orgulho nacional. Nunca me senti inferior por ser português, por vir de um país geograficamente pequeno, pelo contrário. Senti-me sempre em luta positiva. Essa frase do irlandês veio pôr o dedo na ferida. Por exemplo, nessa mesma viagem, o comboio parou no meio do nada, entrou uma milícia do Exército grego e varreu do comboio duas pessoas: eu e um nigeriano. O comboio seguiu viagem. As autoridades gregas diziam que eu ia trabalhar para a Grécia. É preciso ter alguma endurance para não nos deixarmos ser amesquinhados com isso. Em França, os franceses e as autoridades não eram nada meigos connosco. Eu era um português, e os portugueses são pedreiros e porteiras. Passados poucos anos faço um concerto no Zenith em 1996, cheio, 17 500 pessoas, muitos franceses. Lembro-me de recordar isso em cima do palco e de falar para os lusodescendentes sobre esta questão do orgulho e da força vital que carregamos em nós e que não faz de nós nem menos nem mais. Viajar era isso..Ia sobretudo à procura dessa convicção?.Não. Eu lia muito. Lembro-me de o meu pai me dar o Tom Sawyer, Robinson Crusoe, Ivanhoe, Huckleberry Finn, e depois comecei a crescer por aí fora. E esse heróis todos o que é que faziam? Viajam..As aventuras estão sempre fora?.É a procura de uma coisa diferente. Isso permaneceu, e ainda bem. A literatura permitiu fazer isso, essa busca. No momento em que achamos que estamos à procura de alguma coisa e a encontramos desfazemos o mistério. É por isso que Deus não se revela, não aparece. Era uma busca interior e foi sobretudo um enriquecimento muito grande..Guarda o quê desse miúdo?.Acho que dificilmente, fisicamente, era capaz de repetir. Quando ia para os países de Leste em pleno inverno, como em 1987, em condições perigosas até... Há alturas em que ponho o meu próprio corpo em risco. É uma necessidade de escolher o difícil, é uma necessidade de procura do que me ultrapassa. É uma necessidade que sinto todos os dias e que tento ultrapassar. A composição é uma maneira de a expulsar, mas a absorção também. Essa necessidade de procura continuo a tê-la através das coisas que me ultrapassam, da leitura, da música... As viagens são diferentes agora, são profissionais. Nunca na minha vida passei férias de "vou para as Caraíbas". Não faço ideia do que é, nunca lá estive, um dia hei de lá ir. Mas, mesmo no Brasil, quando fui em trabalho nunca fui à praia. Mas fui às favelas.