Para 767 mulheres, espera por consulta levou dobro ou triplo do tempo legal
Em 2022, houve pelo menos 307 mulheres a esperar 15 dias pela primeira consulta de interrupção de gravidez (IG), denominada de "consulta prévia".
15 dias quando a lei impõe que decorram no máximo cinco entre o primeiro contacto com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a "consulta prévia". Mais de duas semanas quando o prazo máximo legal de gravidez para se poder aceder à IG por decisão exclusiva da mulher é de 10 semanas de gestação; quando raramente a deteção de uma gravidez ocorre antes das cinco ou seis semanas; quando após a consulta a legislação impõe ainda um "período de reflexão" de no mínimo três dias até ao procedimento interruptivo.
Já entre 11 e 14 dias esperaram 460 mulheres. Tal significa que ascendem a pelo menos 767 os casos nos quais o prazo legal de cinco dias entre marcação e consulta foi duplicado ou triplicado, correspondendo a 5% das 15347 consultas de IG nas quais foi registada informação sobre tempo decorrido desde a respetiva marcação.
15%, ou seja 2302, tiveram de aguardar entre seis e 10 dias. No total, pelo menos 3069 mulheres (20%) não foram atendidas no prazo máximo de cinco dias que a lei estipula.
Esta contabilização do número de dias entre a tentativa de marcação de consulta e a sua efetivação, a qual nos 16 anos em que existe IG por decisão exclusiva da mulher nunca havia sido divulgada, é uma das revelações do Relatório de Análise dos Registos das Interrupções de Gravidez relativo a 2022, que a Direção Geral de Saúde (DGS) publica esta segunda-feira.
O relatório, a que o DN teve acesso, certifica como tempo médio de espera para a consulta prévia "2,88 dias, com uma mediana de 1", informando que em 37% dos casos a consulta ocorreu no próprio dia do pedido de marcação.
Frise-se porém que 3,3% dos registos de consultas prévias em 2022 "não tinham informação acerca desta variável".
E que, como certifica ao DN Teresa Bombas, membro da Sociedade Portuguesa de Contraceção, presidente do Comité para o Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e obstetra nos Hospitais da Universidade de Coimbra, "aquilo a que assistimos todos os dias é a um desgaste de mulheres que percorreram muitos locais antes de cá [à consulta de IG em Coimbra] chegarem - e o tempo que perderam não fica na verdade registado em lado nenhum, até porque muitas vezes nem sabem quantos dias levaram a conseguir a consulta."
Essa mesma advertência está plasmada nas conclusões do relatório da DGS: "Salienta-se que o intervalo de tempo, em dias, até à primeira consulta (consulta prévia) pode não refletir o tempo real entre o primeiro momento de procura ativa de cuidados por parte da mulher e a referida consulta, uma vez que o registo é efetuado pela unidade que realiza o procedimento e não por aquela que faz o encaminhamento (no caso desta não realizar IG por opção nas primeiras 10 semanas), o que poderá não ser coincidente."
Ainda assim este relatório, que atualiza para 15870, integrando as IG até às 10 semanas ocorridas nas Regiões Autónomas de Açores e Madeira, o número relativo ao ano de 2022 (15616) anteriormente adiantado pelo relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) sobre Acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde, publicado a 13 de setembro, vem reforçar a gravidade da violação da lei no acesso a este cuidado de saúde assegurado pela lei nacional.
Violação para a qual o DN alertara em investigação publicada ao longo do mês de fevereiro, e que levou a ERS e a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a desencadearem auditorias paralelas sobre IG.
Recorde-se que, assumindo o papel de uma mulher que procurava marcar uma consulta de IG, o jornal se deparou por exemplo no Hospital Bernardo Santareno, em Santarém - no qual todos os médicos são objetores para a IG por decisão exclusiva da mulher (mas não para outros "motivos" de IG), e que nem sequer efetua consulta prévia -, com uma espera de 13 dias para a ecografia de datação. Posto a qual, confirmando-se a existência de uma gravidez dentro do prazo legal para a interrupção, aquela unidade "referenciaria" para a Clínica dos Arcos, em Lisboa, a qual por sua vez "chamaria" para a consulta. Este circuito levou a que Madalena, de 18 anos, residente em Santarém, tenha contado 19 dias desde o seu primeiro contacto com o SNS, a 6 de janeiro, e a interrupção de gravidez, que sucedeu às nove semanas e dois dias, a 25 de janeiro.
Ao ser questionado pelo DN sobre o caso de Madalena, o hospital de Santarém garantiu cumprir "os procedimentos previstos na lei relativos à interrupção voluntária da gravidez", e assegurou nunca ter sido "objeto de queixas por parte de utentes ou alvo de qualquer inspeção ou auditoria sobre esta matéria."
No entanto quando o DN fez a experiência relatada, ligando a 9 de fevereiro para este hospital para "marcar" uma IG, constatou que, só havendo "vaga" para a ecografia de datação a 22 - 13 dias depois -, e não sendo provável que a consulta prévia na Clínica dos Arcos ocorresse nesse mesmo dia, seria muito provável que o prazo até à intervenção equivalesse aos 19 dias impostos a Madalena, senão mais. Assumindo que, na melhor das hipóteses, a consulta na clínica ocorreria a 23, teriam de se somar ainda os três dias do "período de reflexão" imposto pela lei, empurrando o procedimento para pelo menos 18 dias após o primeiro contacto com o SNS. Dito de outro modo, duas semanas e quatro dias após o pedido de acesso à IG.
Sete meses e duas auditorias - da ERS e da IGAS - depois, o Hospital de Santarém já não se pode gabar de que nunca foi auditado no que respeita ao cumprimento da lei da IG. Continua porém a negar qualquer violação dos prazos nela previstos: no relatório da IGAS, garante ter em 2020, 2021 e 2022 cumprido o prazo legal de até cinco dias entre marcação e consulta, embora, ao contrário da generalidade dos outros hospitais, não apresente qualquer contabilidade da média de dias para essa espera.
Por outro lado, como o DN já noticiou, pelo menos um hospital - o de Santa Maria, em Lisboa - contabiliza o prazo médio de espera até à consulta prévia em "dias úteis". Em 2022 informa ter sido esse prazo médio de 6,9 dias (significando assim que se tratará de pelo menos nove dias corridos, ou seja praticamente o dobro do prazo legal). Nos dois primeiros meses de 2023, comunicou ao DN, essa média passou para "7,52 dias úteis".
Torna-se assim evidente que os dados apresentados nos diversos relatórios sobre IG produzidos este ano deixam a desejar do ponto de vista do rigor (basta lembrar que a ERS afirma no seu não existir uma lista atualizada de objetores de consciência nos serviços, enquanto a IGAS apresenta o número de objetores serviço a serviço). Sendo grande parte da informação neles publicada resultante da resposta, pelos serviços de saúde, a questionários enviados pelos três organismos, a respetiva fidedignidade depende do grau de honestidade de quem responde.
Ou seja, os hospitais que, de acordo com o relatório da IGAS, apresentam tempos de espera mais longos para a consulta prévia em 2022 - caso do de Braga (12,9 dias), Vila Franca de Xira (9,5) e Cova da Beira (8,48) - não são necessariamente os recordistas na violação da lei; podem apenas, ao contrário de outros, não ter escamoteado ou ocultado a realidade.
Como já noticiado, em 2022 o número de IG em Portugal registou um aumento de 15% face ao ano anterior - tendo 2021 registado o valor mais baixo desde 2008.
Trata-se da maior variação positiva neste cuidado de saúde ao longo da última década, e o triplo daquela verificada no número de nados vivos (que em 2022 foram mais 5,1%, passando de 79 582 para 83 661).
É preciso recuar a 2016 para encontrar um número de IG semelhante (15881). Comparando com 2019, o último ano prépandémico - e o único desde 2012 no qual se tinha verificado um incremento no número de IG, com mais 2,6% (372), em relação a 2018 - o aumento é de 7,8%.
Trata-se, de acordo com a investigação efetuada pelo DN, de uma tendência europeia: Alemanha, Noruega, Reino Unido, Irlanda, França e Suécia registaram em 2022 aumentos bruscos na contabilidade de abortos por decisão exclusiva da mulher.
Tal sucedeu em países, como França e Reino Unido, nos quais a IG tem estado em trajetória ascendente ou constante e que apresentam uma taxa de aborto (o total de IG por mil mulheres, calculada em função do número de mulheres em idade fértil, dos 15 aos 49 anos) bastante elevada, mas também naqueles, como a Alemanha, Noruega - ambos com mais 10% de IG face a 2021 - e Portugal, nos quais se verificava uma redução contínua na última década e cujas taxas de aborto são baixas.
A taxa de aborto de Portugal aumentou de 6,4 (2021) para 7,4, traduzindo, diz a DGS, um aumento em todas as regiões, embora o indicador demonstre que "se verifica uma maior incidência (mantida ao longo dos anos) nas regiões de saúde do Algarve e de Lisboa e Vale do Tejo, acima dos valores nacionais".
Ainda assim, esta taxa permanece das mais reduzidas da Europa ocidental, e a segunda mais baixa na Europa do Sul, atrás da Itália (cujo últimos dados são de 2020, com 5,8).
Não são ainda conhecidos os números relativos a IG em 2022 de todos os países europeus; o último a publicá-los, no final de setembro, foi a França, dando a ver um aumento de 17 mil face a 2021 (de 217 300 para 234 300). Trata-se de um acréscimo percentual de 8%, o maior desde 1990. Em Inglaterra e Gales o aumento registado foi de 17%, e na Escócia de 19%.
A taxa de aborto em França passou em 2022 para 16,2; no Reino Unido essa taxa era de 18,6 em 2021 em Inglaterra/Gales e de 13,5 na Escócia (região na qual em 2022 subiu para 16,1).. Outro país cuja taxa de aborto é bastante alta é a Suécia; em 2022 passou para 18, tendo o número de IG aumentado 7% face a 2021).
Regressando ao relatório da DGS, "o grupo etário realizou maior número absoluto de IG e onde se registou também maior incidência, continua a ser o dos 20-24 anos de idade, logo seguido dos 25-29 anos. A percentagem de IG antes dos 20 anos de idade manteve os valores de 2021 (8,6%)".
Por outro lado, prossegue a DGS, "as características sociodemográficas das mulheres que realizam IG por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gravidez não têm assumido variações significativas".
Outros fatores sem alterações são "a idade gestacional média com que as mulheres interrompem a gravidez, que se mantém nas 7 semanas", e a maioria recorrer ao aborto pela primeira vez.
De notar, sublinha o relatório, que "o número de mulheres não portuguesas que recorre a interrupção da gravidez por opção tem vindo a aumentar ligeiramente (28,9% em 2022, 25,9% em 2021 e 24,6% em 2020), em consonância com o aumento de mulheres estrangeiras que residem em Portugal".
O desrespeito pelo número máximo de dias permitido entre a marcação e a consulta prévia que ocorre em várias unidades hospitalares será uma das ilegalidades em relação às quais o regulador (ERS) virá a exigir, como anunciado nas conclusões do seu relatório, correção às administrações hospitalares.
Entretanto, ter-lhes-á enviado um "pedido de comentário" sobre os respetivos resultados em matéria de acesso à IG. Trata-se, opina um médico de um hospital do Centro do país com serviço de IG, "de uma forma sensata de envolver os serviços nos resultados e nas possíveis mudanças".
De sublinhar que tal violação da lei, que corresponde a uma dificuldade ou mesmo impedimento de acesso a um cuidado de saúde legalmente assegurado - o DN reportou em fevereiro um caso em que a grávida não conseguiu, devido ao tempo de espera até à consulta prévia, interromper a gravidez no SNS, tendo de se dirigir a uma clínica privada -, determinou já, no caso da Itália, duas condenações pelo Comité dos Direitos Sociais Europeus (organismo do Conselho da Europa que fiscaliza a aplicação da Carta Social Europeia), em 2014 e 2016, por violação do direito à saúde e discriminação no direito à saúde.
Enfatizando o facto de a Carta obrigar os Estados a providenciar os cuidados de saúde "onde e quando são necessários", o Comité adverte que essa obrigação ainda se aplica com mais intensidade a procedimentos que só podem decorrer num prazo curto, como é o caso do aborto (sendo que em Itália a IG por decisão exclusiva da mulher é permitida até aos 90 dias, ou seja até às 12 semanas, mais duas que em Portugal).
Curioso é o facto de Portugal ter contribuído com o seu voto para a condenação de Itália, malgrado os dois países estarem em situação muito semelhante no que respeita quer ao número de hospitais onde não se efetua IG por decisão exclusiva da mulher - em Portugal são 30%, em Itália 40% - quer ao número de profissionais de saúde, nomeadamente médicos, objetores de consciência para a IG. Em Itália estes chegarão aos 70% nos obstetras e ginecologistas; em Portugal, de acordo com o cálculo da ERS, serão 87% os clínicos dessas especialidades a trabalhar no SNS que recusam ter alguma coisa a ver com o aborto até às 10 semanas por decisão da mulher.
Em fevereiro, face à investigação do DN e à evidência da violação da lei, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, garantiu que "o prazo para resolver este problema é umas semanas, não vamos andar muito tempo neste debate".
Na altura o governante assegurou até que a solução que pretendia aplicar não passava "pela criação de grupos de trabalho, relatórios, auditorias, coisas que atrasam a resolução do problema que, do meu ponto de vista, tem de ser expeditamente resolvido".
Duas auditorias, três relatórios e oito meses depois, porém, aquilo que Pizarro afirmou não necessitar de "uma grande reflexão ou um grande estudo", sendo "algo do foro da intervenção prática", está por fazer: nenhuma medida foi anunciada, nenhum dos hospitais com consulta de IG fechada a abriu, nenhum centro de saúde passou a efetuar IG (como sucedera no início da aplicação da lei). E as perguntas enviadas pelo DN ao ministério nunca foram respondidas.