Em maio de 2020, as autoridades do Uganda apreenderam 200 quilos de escamas de pangolim, o que, de acordo com os investigadores envolvidos na operação, terá correspondido à morte de, pelo menos, 600 animais. Este não foi, todavia, um "achado" ocasional. Nos últimos dez anos muitas outras capturas se realizaram, sobretudo em África ou no Extremo Oriente, como aquela que, em abril de 2013, encontrou dez toneladas de carne de pangolim a bordo de um navio chinês ancorado nas Filipinas. Hoje, o pequeno mamífero, que se distingue dos outros animais da mesma classe por ter o corpo coberto de escamas, é o mais traficado do mundo, o que o coloca na triste lista das espécies em vias de extinção..Professor da Faculdade de Ciência da Universidade do Porto e investigador no CIIMAR (Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental), Agostinho Antunes estuda o pangolim há mais de 15 anos, em colaboração com uma vasta equipa de cientistas internacionais, motivado, em grande parte, pela necessidade de colaborar na sua conservação: "O pangolim chinês está criticamente ameaçado, o malaio também, mas também em África, igualmente por pressão da China, a situação destes animais é dramática." Na origem de tanta devastação está o tráfico ilegal: "A carne é muito apreciada, atualmente um quilo de carne de pangolim pode custar uma pequena fortuna no mercado negro, sendo o seu valor já comparado ao do tráfico do marfim dos elefantes e do corno de rinoceronte. São capturados aos milhares, em particular no Sudeste Asiático, em grande parte devido à proximidade da China, mas também em África os valores praticados tornam este negócio muito apetecível a uma população com grandes dificuldades económicas.".Destaquedestaque"A carne é muito apreciada, atualmente um quilo de carne de pangolim pode custar uma pequena fortuna no mercado negro".Autora do livro Cobras, Lagartos e Baratas: os Melhores Amigos do Homem (edição Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020), a jornalista Ana Daniela Soares também salienta o dramatismo da situação atual: "A sua carne é muito cara e considerada um produto gourmet nomeadamente na China e no Vietname." Mas "também as suas escamas, que têm como principal constituinte a queratina, igualmente presente nas nossas unhas, são muito procuradas pela medicina tradicional chinesa". Mesmo que ainda não esteja provada a alegada transmissão ao homem do vírus SARS-COv-2 por este pequeno animal, "os perigos de trazer para a nossa vida animais selvagens e de interferir na harmonia dos ecossistemas são muitos", diz Ana Daniela Soares. "Ficamos em contacto com vírus, bactérias e organismos que não conhecíamos e para os quais não tínhamos defesas. Muitos especialistas acreditam que outras pandemias possam vir a ameaçar-nos se continuarmos nesta senda e se não deixarmos os ecossistemas selvagens em paz.".Agostinho Antunes recorda, aliás, que o consumo de animais selvagens já anteriormente estivera na origem de doenças muito graves: "Ficou provado que, na origem do HIV, responsável pela sida, esteve o consumo de carne de grandes primatas por humanos, no continente africano. A própria pneumonia atípica, provocada pelo vírus SARS, que fez muitas vítimas em 2003 no Sudeste Asiático, está relacionada com a ingestão de carne de espécies selvagens.".No entanto, exemplos desta prática abusiva não faltam, como o demonstram o uso da bílis dos ursos (extraída do animal através de um cateter) ou das bexigas-natatórias das totoabas, também conhecidas por "cocaína do mar", que está a dizimar um pequeno cetáceo (as vaquitas), que habitualmente fica preso nas redes destes traficantes. Como sublinha Ana Daniela Soares, "o tráfico de vida selvagem é dos mais lucrativos que há e financia organizações terroristas como o Boko Haram"..Mesmo sem consumo da carne, as consequências de práticas como estas são invariavelmente funestas para o ambiente, como demonstra o caso dos quatro hipopótamos (um macho e três fêmeas) levados para a Colômbia pelo "rei" dos traficantes de droga, Pablo Escobar: "Quando, após a sua morte, em 1993, a polícia entrou na sua Hacienda Nápoles", conta a jornalista, "foram encontradas dezenas de espécies selvagens que ele tinha ali, à maneira de um jardim zoológico privativo, embora até fosse aberto ao público. Algumas foram levadas para lugares mais adequados, mas os hipopótamos foram deixados no local. Tantos anos depois, reproduziram-se e são uma ameaça para os animais próprios da região e mesmo para os seres humanos.".Agostinho Antunes iniciou o estudo destes animais, em 2003: "Estava nos Estados Unidos a estudar os grandes felinos e, de repente, fiquei fascinado pelos pangolins. Apesar de serem muito parecidos com os papa-formigas, nomeadamente os da América do Sul, são animais muito curiosos porque geneticamente pertencem a um grupo irmão dos carnívoros. O facto de eles estarem numa situação de grande dificuldade desencadeou o clique. Hoje continuo a trabalhar, em colaboração com cientistas de vários países, embora não seja fácil, não só porque os pangolins já são poucos, mas também porque são notívagos e algo fugidios.".Popularizado pelas personagens da série de animação Pokémon, Sandslash e Sandshrew, o pangolim é um mamífero da ordem pholidota que vive em zonas tropicais da Ásia e da África subsariana. Parecendo-se sempre com um papa-formigas (que, na verdade, é porque este animal constitui o seu principal alimento), divide-se em oito espécies com características diversas: o pangolim-chinês, malaio, do Cabo, filipino, da barriga-branca, indiano, gigante-terrestre e o da barriga-preta. Os mais pequenos não ultrapassam os 30 centímetros de comprimento e os maiores chegam a atingir um metro, mas há características comuns que os tornam um caso à parte no mundo dos mamíferos. Uma dessas características são as escamas que, se os tornam particularmente desejados pelos traficantes, também lhes permitem defender-se com eficácia (ao enrolarem-se sobre si mesmos, como os ouriços-cacheiros) de grandes predadores como os grandes felinos (ao que parece só os crocodilos conseguem realmente penetrar a sua carapaça). Solitários (só procuram companhia para reprodução), vivem em tocas que podem atingir mais de três metros de profundidade e dispõem de uma língua muito comprida, da maior utilidade na busca da sua iguaria favorita, as formigas. As garras, grandes e alongadas, permitem que procurem abrigo debaixo da terra e escavem com facilidade ninhos de formigas e térmitas em busca de comida..DestaquedestaqueAs oito espécies de pangolins identificadas pelos zoólogos estão globalmente ameaçadas. Mais de um milhão foram retirados da natureza..Atualmente, todas as oito espécies de pangolins identificadas pelos zoólogos estão globalmente ameaçadas. Acredita-se que mais de um milhão destes animais foram retirados da natureza nos últimos anos para satisfazer a crescente procura pela sua carne, escamas e fetos, que, para além de serem utilizados na confeção de vários pratos e bebidas, constituem parte da farmacopeia tradicional chinesa, sendo frequentemente recomendado num vasto leque de maleitas que inclui ansiedade, malária, surdez, acne ou mesmo escassez de leite em mulheres em processo de amamentação. Nessa qualidade, os pangolins (como os morcegos) têm sido, pois, uma presença frequente nos chamados mercados húmidos de vários pontos da China (como a cidade de Wuhan), mas também em países africanos, como o Gana ou a Nigéria, onde os curandeiros tradicionais também os usam na sua farmacopeia tradicional..Apesar de protegido pelas leis internacionais de preservação da vida selvagem e de ter sido retirado da lista de ingredientes da medicina tradicional pelo governo chinês, o pangolim está sujeito às regras nada escrupulosas do mercado negro. Uma situação ainda mais dramática porque, como frisa Agostinho Antunes, "não é viável tentar assegurar a conservação destes animais em cativeiro". Embora, saliente, "existam alguns casos de sucesso em Taiwan, por exemplo, a verdade é que a maioria acaba por morrer e não chega a reproduzir-se. O facto de se alimentarem exclusivamente de formigas não facilita a sua vida em jardins zoológicos ou reservas"..Estamos perante uma causa perdida? Ana Daniela Soares pensa que não: "Na sequência deste trabalho, tenho falado muito com jovens ambientalistas chineses que estão muito empenhados na defesa da vida selvagem e em acabar com realidades como estes mercados húmidos. Acredito que as gerações mais jovens possam fazer a diferença."