Palacete ocupado por sindicalistas e dez gatos fica livre para descendente direto de Maomé

Em 1975, os sindicalistas ocuparam o Palacete Leitão em Lisboa. Nos últimos anos, uma colónia de gatos abandonados fez o mesmo. Esta semana foi comprado para instalar a sede mundial da Imamat Ismaili, a instituição liderada pelo príncipe Aga Khan.
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É impossível olhar para o mais que centenário Palacete Leitão, data de 1904, e não imaginar as grandes festas dadas nos seus enormes salões. Afinal 3500 m2 de área útil numa propriedade que tem mais de 7000 m2 bem no centro da capital portuguesa permite que tudo possa ter acontecido no seu interior e jardins. E foi o que sucedeu neste palacete praticamente abandonado nos últimos anos, depois de ter sido residência do primeiro proprietário, José Pinto Leitão, mais conhecido pelo "joalheiro da Coroa", de ter mudado de donos após a sua morte, e ter sido ocupado no Verão Quente de 1975.

A última notícia sobre o seu destino aventuroso é que vai ser o complemento ao Palácio Mendonça para receber a sede mundial da Imamat Ismaili, uma instituição liderada pelo príncipe Aga Khan. Após vários anos em busca de novo dono, o palacete foi adquirido esta semana por 13,5 milhões de euros e receberá parte dos serviços da instituição.

A história do Palacete Leitão nos seus tempos mais áureos pouco tem a ver com a das últimas décadas. Na última fase serviu para festas e eventos, mas antes foi sede de um sindicato, que geriu a defesa dos trabalhadores filiados na estrutura nesse espaço faustoso. É que o proprietário não se poupou a despesas no início do século passado para ter uma residência condigna e contratou os serviços de um arquiteto e artista veneziano que adotara Portugal para realizar o seu projeto.

O projeto do edifício é de autoria de Nicola Bigaglia, que se estabeleceu em Portugal nos anos 1880, tendo também satisfeito os desejos de muitos outros proprietários para terem palacetes à altura do seu estatuto.

Bigaglia, que foi professor nas escolas industriais de Leiria e Afonso Domingues, só deixou o nosso país em 1908 devido a estar doente, indo morrer em Veneza nesse mesmo ano. Antes, devido à sua capacidade artística e arquitetónica, designadamente nos estilos clássicos, deixou uma vasta obra de edifícios do género do Palacete Leitão. Foi, principalmente, o caso da região de Lisboa, onde em 1901 foi responsável pela Casa da Condessa de Edla (na Parede), e nos anos seguintes até 1904, do Palácio Lima Mayer - premiado com o Prémio Valmor -, da Casa da Família Azevedo Gomes (também na Parede) e do Palácio Lambertini, na Avenida da Liberdade. Em 1904, será a vez de duas grandes realizações, os palácios Vale Flor e Leitão.

O arquiteto deixaria também outras realizações arquitetónicas pelo país: a Casa dos Cedros no Buçaco, a Casa do Visconde da Lagoa em Silves, o Teatro D. Amélia em Setúbal, entre outros localizados em Braga, Aveiro, Porto e Leiria.

O processo de venda do Palacete Leitão sofreu vários percalços e uma desvalorização acentuada desde que em 2011 foi definitivamente posto no mercado, após o desinteresse anterior do sindicato em manter aí certas funcionalidades para os seus membros. A imobiliária responsável pelo negócio foi ousada e avaliou a ex-residência do antigo "joalheiro da Coroa" em 20 milhões de euros. Não sendo encontrado comprador, o palacete foi reavaliado em 18 milhões de euros em 2016, mas não perdeu o estatuto, sendo definido como "uma das mais belas casas de Lisboa" e onde existiam tesouros artísticos como pinturas de J. Ribeiro Júnior e um vitral da autoria de Ricardo Leone. Foram precisos mais quatro anos para ser adquirido, desta vez por 13,5 milhões de euros. Uma desvalorização patrimonial de quase um terço em menos de uma década, mas mesmo assim não foi uma pechincha.

A instalação da sede mundial da Imamat Ismaili não acontecerá de imediato, pois são necessárias obras de reabilitação do edifício. à semelhança do que aconteceu no Palácio Mendonça (renovado pelo arquiteto Frederico Valssassina ). A necessidade de obras terão feito baixar o preço de venda, mesmo que o palacete fique a poucas centenas de metros do apartamento mais caro de Lisboa, vendido por mais de metade deste valor.

A revista Forbes coloca Aga Khan como um dos quinze membros mais ricos da realeza mundial, mesmo que seja o único entre eles que não governa um território físico. Entre os objetivos da sua fundação está a eliminação da pobreza a nível global, a promoção e implementação do pluralismo religioso, o empoderamento da mulher e o respeito pela arte e arquitetura islâmica.

Aga Khan nasceu na Suíça, tem passaporte britânico e tirou a sua licenciatura em Harvard. É o 49.º dirigente religioso dos ismaelitas, responsável pela execução de todos os preceitos que regulam a comunidade que lidera. Em Portugal tem cerca de dez mil fiéis. Ao suceder ao seu avô, Aga Khan tornou-se no único imã vivo a liderar os muçulmanos xiitas e considerado descendente direto do profeta Maomé.

Toda a arte de Nicola Bigaglia foi pouca para seduzir os que nas últimas décadas deram uso ao Palacete Leitão. Exatamente há três anos, a 10 de outubro de 2017, o edifício onde funcionava o Centro Clínico do SAMS (Serviços Sociais dos Bancários) foi desativado dessa função, terminando a ocupação verificada após a Revolução de Abril pelo Sindicato dos Empregados Bancários do Sul e Ilhas. A justificação foi: "Os avanços tecnológicos na área da saúde foram tornando a estrutura obsoleta, pois as características inviabilizavam as adaptações necessárias ao desenvolvimento do serviço que se queria prestar."

O palacete perdeu utilidade, seguindo-se um vazio no destino do imóvel, até porque o sindicato que ocupou o palacete durante décadas considerou que as suas raízes históricas "não estavam no palacete e sim no edifício da Rua de São José, onde o sindicato se afirmou antes ainda do 25 de Abril". O sindicato, no entanto, não deixa de referir que "a degradação do imóvel era cada vez mais acentuada" para justificar o abandono.

Ao imponente palacete imóvel restou o quase abandono no período que se seguiu, mesmo sento utilizado em eventuais cerimónias e festas que beneficiaram do que restava do esplendor arquitetónico e decorativo criado por Nicola Bigaglia, o veneziano que viera para Portugal na década de 1880, quando o governo o contratara para ensinar modelação ornamental nas escolas industriais então criadas.

Não ficou, contudo, totalmente ao abandono, porque manteve-se a viver no terreno do palacete uma "colónia de dez gatos, incluindo bebés". Quem se preocupou com esta situação animal foi o partido Pessoas - Animais - Natureza (PAN) que há um ano deu conhecimento do facto e a comunicou à Casa dos Animais de Lisboa através de um email em que reportava: "Dando conta que um grupo de três pessoas que prestam serviço no sindicato dos Professores da Grande Lisboa/FENPROF alimentavam sempre que lhes era possível os cerca de 10 gatos da colónia..." e que esse "contributo prestado não será suficiente para garantir as condições mínimas de bem estar a esses animais", solicitava-se "os mesmos fossem resgatados".

Entretanto, o PAN referia que "o Palacete foi vendido, será objeto de obras profundas e após a conclusão será um condomínio fechado que não admitirá a permanência da colónia de gatos aí existente". Também o Programa Patrulha Gato nada conseguiu fazer pelos animais, recorrendo o PAN ainda à Câmara Municipal de Lisboa por escrito.

Se quanto aos gatos não se sabe o que lhes vai acontecer, no que respeita ao palacete o futuro está decidido após ter sido adquirido pela instituição liderada pelo príncipe Aga Khan pelo valor de 13,5 milhões de euros. "Com a nova aquisição concretizada esta semana, o Imamat Ismaili pretende reforçar investimentos em Portugal projetando já o alargamento da futura sede mundial que está a ser instalada no Palácio Mendonça. Os dois edifícios vizinhos vão permitir uma maior concentração dos serviços da instituição e das suas agências internacionais naquela zona de Lisboa", sintetiza a instituição, que contou com um acordo estabelecido em 2015 com o Estado português, bem como a Câmara e a Direção-Geral do Património Cultural ao não exercerem o direito de preferência no negócio.

Num levantamento sobre o Palacete Leitão realizado em 2001, Teresa Vale e Sandra Costa fizeram a radiografia do seu património: "Planta composta pela articulação de 3 corpos retangulares com um 4º corpo longitudinal disposto transversalmente, volumes articulados com coberturas diferenciadas em telhados a 3 e 4 águas e em terraço.

De 3 pisos (um deles parcialmente enterrado, apresenta superfície murária em reboco pintado e a simular placagem de cantaria em silharia fendida, animada pela abertura de vãos com emolduramento de cantaria, a ritmo regular. Alçado principal a E., sobrelevado (dado o declive do terreno sobre o qual se encontra implantado) e composto por 3 corpos, dos quais se demarca o axial, de perfil curvo saliente, relativamente aos que o ladeiam. Sobre embasamento revestido com placagem de cantaria, rasgado a eixo por arco de volta perfeita em cantaria de aparelho almofadado, apresenta piso térreo vazado por janelas de sacada e articulado, a todo o comprimento, com galeria - de teto plano suportada por colunas da ordem jónica - que acompanha e acentua o perfil do alçado e se converte, ao nível do 1º andar, em varanda com guarda em balaustrada ritmada por plintos com vasos.

No 1º andar, as janelas de sacada diferenciam-se pela verga reta destacada que ostentam, e o corpo central, ao mesmo nível que os laterais, articula com um alpendre definido por cobertura de pala em semicírculo suportada por colunas de ordem compósita. O alçado é superiormente rematado por platibanda em muro com urnas nos extremos dos corpos, precedida de aba plana, suportada por mísulas. Este alçado articula com terraço (delimitado por guarda análoga à da varanda descrita) e com jardim, através de 2 escadarias localizadas nos extremos do terraço e do alçado. Nos alçados laterais regista-se, do lado S., um alpendre - de planta quadrada suportado por duplas colunas de fuste jónico, correspondente, ao nível do 1º andar, a ampla varanda com ligação à varanda do alçado principal - e do lado N., além de 2 bow window sobrepostas, um corpo de planta circular adossado, correspondente a um mirante."

Está o edifício situado na rua Marquês da Fronteira, nº 14 a 16, e incluído na Zona Especial de Proteção da Cadeia Penitenciária de Lisboa.

Quanto à arquitetura, o levantamento considera que os dois pisos têm "todos eles com interiores distintos e em função de diferentes momentos plásticos, com particular incidência no estilo império, neo-pompeiano e Luís XVI, para o qual contribuem as pinturas decorativas nos tetos e paredes, as boiseries e alguns apontamentos em estuque. É exceção uma sala do 1º andar, localizada no alçado posterior, com paredes, vergas de portas e caixa de lareira revestidas com painéis de madeira - que integram pilastras decoradas com cariátides em relevo - também observáveis a animar a superfície murária do corredor do 1º andar (com teto em masseira).

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