Depois de Cannes, Os Miseráveis, crónica de tempos violentos da França de Macron, tornou-se uma espécie de filme de uma geração. A geração millennial francesa mais desfavorecida, a geração dos subúrbios, vítima de racismo e de discriminações sociais. Se O Ódio, de Mathieu Kassovitz, já faz figura de filme de museu - estreou-se em 1995 mas o banlieue pouco ou nada mudou, apenas a democratização dos drones e dos smartphones -, Os Miseráveis é o tal regresso à ferida social de Paris, neste caso Montfermeil. A França colorida que coexiste mal em tempos de revoltas sociais ou de festejos após a vitória num Mundial de futebol..Ladj Ly, cineasta negro, figura desses mesmos banlieues, filma uma história de polícias sem ladrões óbvios, um mundo em que branco não entra mas onde a cor da pele pode ser um código para sobrevivência - dos árabes aos africanos. Pelo meio, há um novo polícia que vai aprender a diplomacia dos gangues locais. Mas mais ainda pelo meio encontra-se um menino que filma com um drone algo que é proibido.. O subúrbio francês visto pelo olhar de uma criança e de um polícia de fora. Ladj Ly convoca uma carga de choque e de realismo sem filtros que o cinema francês atual já não tinha. Essa é a grande vitória de uma obra nomeada ao Óscar de melhor filme internacional após ter vencido o prémio do júri em Cannes. O debate na sociedade seguiu-se e colocou a tónica na relação entre as forças da lei e os elementos do bairro. Em Portugal chega numa altura em que se fala cada vez mais das diferenças entre racismo e estupidez lusitana..Dir-se-ia que é o filme certo para colocar álcool na ferida, ou não fosse realizado por um cineasta que nasceu do outro lado do bairro e cuja cor da pele é também uma tomada de posição. Em O Ódio, o realizador era alguém de fora: um artista jovem branco, criado na tradição do cinema branco francês. Agora, em Os Miseráveis, é ao contrário, é um negro a mostrar como se sente o racismo hoje. Fá-lo de uma maneira disruptiva, mostrando um "estilo" que recusa comparações com floreados dos gangster movies afro-americanos e no qual há licença para figurarem com legitimidade regras do cinema social francês..No Festival de San Sebastián, o estreante Ladj Ly contava ao DN que está a viver um sonho com todo o feedback que o filme tem granjeado internacionalmente e que sempre quis fazer uma longa -metragem, mesmo depois de ter filmado esta mesma história verídica numa curta com o mesmo nome: "A curta tinha já sido um sucesso mas nem imagina como foi duro arranjar dinheiro para a longa... Agora, depois de Cannes, nunca imaginei que o filme voasse tanto. Aliás, quando estávamos na rodagem, nunca imaginei que era um filme para um festival como Cannes... A minha vitória era apenas conseguir realizar uma longa, quanto mais ser selecionado para Cannes. E isso de ser escolhido pela França nos Óscares é ainda mais incrível. Trabalho em cinema há muito e sempre dei no duro, mas creio que as recompensas acontecem.".Ly, de origem maliana, tem no currículo penas de prisão e um historial de detenções com a polícia em Montfermeil, o bairro que o viu crescer. O cinema surgiu depois de pegar numa câmara e registar imagens da polícia a atuar no seu bairro. Ao vivo fala com uma rapidez afável e não tem ar ameaçador, mas em todas as entrevistas tem falado em nome de um coletivo de cineastas da periferia. Antes de Os Miseráveis, filmou making-ofs de outros realizadores e aprendeu tudo no terreno através da feitura de documentários e videoclipes. Hoje, sobretudo após esta taluda, tem outro fardo: ser voz de uma geração negra, embora refute sempre a missão de "cineasta gangster".."O que espero é que esteja a surgir uma nova linguagem no cinema francês. Não deixa de ser um sinal forte a escolha do meu filme para representar os Óscares, acho que vai fazer refletir todos os que trabalham nesta indústria", diz. "Estamos a precisar de filmes diferentes e que abordem outros temas. Não podem ser apenas as habitais histórias românticas e o enredo da vida do meu amigo, enfim... Os Miseráveis é a prova de que é possível apostar num outro tipo de cinema. Com todos os problemas sociais que em França surgem, é muito essencial este cinema. O meu filme não é apenas um relato social, é um filme político. Fiz uma obra engagé, um filme de que todos precisavam. Chegou numa altura em que vai ter um efeito positivo na sociedade.".Sem clichés nem paninhos quentes, as tensões sociais que Ly desenvolve neste seu policial transmitem uma verdade urgente, trazendo a novidade de filmar também as brigadas policiais com um nervo que é humano e sensível. Talvez seja por isso que o cineasta se sinta ativista: "No futuro tenho de dar continuidade a isto. O meu próximo filme será parecido. É importante continuar com esta estética e temas. Sempre tive uma câmara nas minhas mãos, sempre filmei tudo. Sei perfeitamente como executar a minha visão. Tenho de continuar a filmar as minhas histórias e tudo o que de verdadeiro se passa ao meu lado.".Apetece dizer: faça o favor....Classificação: *** (bom)