Diz-se preocupado com o rumo de Portugal. Que, assegura, "está em risco" de se tornar, dentro de poucos anos, a lanterna vermelha dos países da zona euro, o mesmo que dizer o menos desenvolvido entre 19 e a resvalar para a cauda dos 27. "Seria uma tristeza para mim, que vivi os primeiros dez anos do país na União Europeia [UE]", afirma Aníbal Cavaco Silva, numa altura em que lançou um novo livro - "o último político" que escreverá -, Uma Experiência de Social-Democracia Moderna, no qual revela a inspiração para as grandes obras dos seus governos. E, sem tocar na governação atual, é taxativo: a "bazuca" financeira, termo que também apadrinha, da UE para responder à crise gerada pela pandemia, esses "fundos são a oportunidade que Portugal tem" de sair da debilidade em que caiu "ao longo dos últimos anos". E não se cansa de elogiar o trabalho "notável" da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para que tudo isto seja possível.."Tenho alguma dificuldade em perceber porque é que partidos políticos, políticos em geral, analistas, comentadores e boa parte da comunicação social não estão seriamente preocupados com o risco que Portugal corre de dentro de poucos anos poder ser o país menos desenvolvido entre os 19 da zona euro. Só dois países estão neste momento atrás de Portugal, é a Grécia e a Letónia", afirma o antigo primeiro-ministro e líder do PSD..Citaçãocitacao""Tenho alguma dificuldade em perceber porque é que partidos políticos, políticos em geral, analistas, comentadores e boa parte da comunicação social não estão seriamente preocupados com o risco que Portugal corre de dentro de poucos anos poder ser o país menos desenvolvido entre os 19 da zona euro".Em conversa com o DN, no seu gabinete virado para os claustros do antigo Convento do Sacramento, espaço que lhe está destinado enquanto ex-Presidente da República, lembra que "é um volume de recursos gigantesco, mas que tem de ser aplicado da forma correta, com olhos no futuro e não no curto prazo". Cavaco Silva insiste que Portugal só conseguirá ser um país "com um desenvolvimento mais rápido" se tiver empresas competitivas nos mercados internacionais, se melhorar substancialmente a sua produtividade e se a qualidade dos recursos humanos melhorar significativamente. O que, garante, não tem acontecido com as políticas levadas a cabo nos últimos governos, nomeadamente pelo último a que deu posse, o de António Costa, de 2015, o da geringonça suportado pelo BE e pelo PCP..E questiona se os princípios da social-democracia perderam atualidade, mesmo neste tempo de pandemia. Os da concertação social, "que tem vindo a ser desvalorizada" e é um "erro"; a igualdade de oportunidades; o acesso aos cuidados de saúde; um sistema fiscal e justo e compreensível para os cidadãos, quando hoje "é caótico, caótico"; a defesa do ambiente; a economia de mercado e a livre concorrência; a justiça social. "Acho que, pelo contrário, ganharam atualidade.".Citaçãocitacao "É um volume de recursos gigantesco [os fundos da UE], mas que tem de ser aplicado da forma correta, com olhos no futuro e não no curto prazo".O que pode haver é dificuldade, diz Cavaco Silva, "em encontrar uma solução política que permita a aplicação coerente e consistente deste conjunto de princípios. Mas pensando no Governo da geringonça - e não quero falar do Governo que foi eleito em 2019 -, era muito difícil ao chefe do Governo tentar impor alguns dos princípios da social-democracia, porque apesar de ter perdido as eleições quis formar um Governo e teve de assinar a posição conjunta [com BE, PCP e PEV]"..Critica, sem pejo, o que esse Governo "fez de ataque ao Serviço Nacional de Saúde [SNS]", como as 35 horas, o subfinanciamento e o combate à medicina privada. "O SNS, que defendo fortemente, só por si não tem a mínima possibilidade de assegurar cuidados de saúde a toda a população portuguesa"..E no futuro haverá condições para um projeto de poder social-democrata, com os partidos de centro e mais à direita? "Não sei, não sei... Não sou capaz de antecipar o futuro. Olhando à situação política em que o país se encontra e estando fora da política ativa não quero especular.".As estantes imponentes rodeiam-nos, recheadas de memórias dos seus tempos de São Bento, mas sobretudo de Belém, em que pontuam fotos da família. Há também uma, noutra sala de reuniões, em que ao lado da sua mulher, Maria, posam com o casal Costa, António e Fernanda Tadeu. É precisamente do tempo de primeiro-ministro que reza o livro escrito "antes da pandemia", faz questão de dizer, e que pretende ser um legado sobretudo para as novas gerações sobre os projetos e as infraestruturas dos seus governos e que "foram muito importantes para a modernização do país". Um livro também escrito no ano em que se assinalam os 40 anos da morte de Francisco Sá Carneiro, "um dos estadistas mais notáveis do século XX que Portugal conheceu", com quem entrou para a política como ministro das Finanças e do Plano no seu Governo da Aliança Democrática, em 1980, e cujo pensamento o inspirou enquanto primeiro-ministro..Aos 81 anos, feitos em julho, é notável a memória do antigo líder de governo - dez anos no total e duas maiorias absolutas -, para datas, nomes, locais e circunstâncias. Como as que o levaram a promover a privatização dos meios de comunicação social, mesmo sendo visto como alguém que nunca morreu de amores pelos jornalistas. "A nossa situação de estatização da comunicação social era o mais anacrónica que se verificava em toda a Europa. Portugal não podia ser visto como um país verdadeiramente democrático quando a quase totalidade dos meios de comunicação social estava sob domínio do Estado. Fazer a liberalização da comunicação social era independente de eu gostar ou não gostar da comunicação social, para mim era um dever patriótico.".Citaçãocitacao[Sá Carneiro] "um dos estadistas mais notáveis do século XX que Portugal conheceu".Ainda que sempre tenha procurado manter-se distante e muito avesso aos media, justifica essa opção. "Há pessoas que são muito habilidosas na sua relação com a comunicação social, mas deve existir um distanciamento. A comunicação social tem de fazer um escrutínio do poder político, por isso não compreendem que tenha aguentado dez anos sem nunca ter telefonado a um jornalista. Mas isso era fundamental. Não compreendo hoje quando me dizem que os mais variados políticos têm os telefones dos jornalistas e que lhes telefonam com frequência...".E porque foi sempre acusado de ser o primeiro-ministro do "betão" - ri-se quando se fala disso - incomoda-o ser "do betão"? "Não! Ser do betão é obra feita." E vai buscar obra com outro tipo de cimento, mais verde, precisamente a da defesa do ambiente. "A política de ambiente foi introduzida pelo meu Governo na agenda política nacional e, desde logo, entendi que a preservação do ambiente e do território devia ser um pilar fundamental da política económica." No primeiro Governo, o de 1985, minoritário, tem um secretário de Estado com aquela pasta; no segundo, o de 1987, já maioria absoluta, dá-lhe estatuto de ministério. Recorda que foi com ele que se fez a primeira Lei de Bases do Ambiente e a sua participação na conferência do Rio de Janeiro, em 1992, sobre o ambiente..Citaçãocitacao "Há pessoas que são muito habilidosas na sua relação com a comunicação social, mas deve existir um distanciamento. A comunicação social tem de fazer um escrutínio do poder político, por isso não compreendem que tenha aguentado dez anos sem nunca ter telefonado a um jornalista. Mas isso era fundamental. Não compreendo hoje quando me dizem que os mais variados políticos têm os telefones dos jornalistas e que lhes telefonam com frequência...".Outro marco importante que Cavaco Silva faz questão de destacar no livro e na conversa com o DN é a do "orgulho" que tem em ter feito obra na área da cultura e de ter ajudado a "erguer a Fundação de Serralves". "Eu digo "ajudado" porque se deve muito ao brio e à determinação das elites do Porto, porque sem esse apoio, incluindo financeiro, de personalidades e empresas nunca teria sido capaz de fazer aquele projeto cultural de grande valor", diz, hoje que é membro do conselho de fundadores..Não conseguiu repetir a experiência em Lisboa com o Centro Cultural de Belém, a obra que lhe deu mais dores de cabeça, mas provavelmente a mais simbólica de todas. De tal maneira que foi ali que apresentou a candidatura e a recandidatura às presidenciais. "Sabe, fui insultado em artigos publicados. Que era um monumento ao cavaquismo, que estragava a zona monumental de Belém, que chocava com os Jerónimos e a Torre de Belém. Mas quando fez 25 anos da sua inauguração, muitos desses críticos elogiaram o CCB.".Do Centro ainda recorda uma história que o faz soltar uma gargalhada, sobre a decisão dos ditos na placa inaugural da obra, na qual não figura o nome de nenhum político da altura. "Hoje confesso que o Dr. Mário Soares [então Presidente da República] e eu próprio gostaríamos de ter ficado com o nome ali inscrito." Mas para ficar um e o outro não, quem "salvou" a situação foi Vasco Graça Moura, "que se lembrou de Pedro Nunes e de uma das suas frases sobre as navegações". E foi o que ficou..Citaçãocitacao"Sabe, fui insultado em artigos publicados. Que era um monumento ao cavaquismo, que estragava a zona monumental de Belém, que chocava com os Jerónimos e a Torre de Belém. Mas quando fez 25 anos da sua inauguração, muitos desses críticos elogiaram o CCB".Desses tempos de coabitação não ficaram só histórias que o fazem rir, há as de tensão, muitas publicadas e notórias no país. Uma das que lhe custaram foi quando Mário Soares decidiu mandar o diploma de erradicação de barracas em Lisboa e Porto para o Tribunal Constitucional. "Quanto a mim, foi mal aconselhado porque o Tribunal Constitucional, por unanimidade, deu razão ao Governo." Mas, sublinha, "são tempos que lá vão e o Dr. Mário Soares foi um político muito grande, que contribuiu para a consolidação da democracia no nosso país, e, apesar de termos tido discordâncias, respeitávamo-nos mutuamente"..Das obras que lançou, muitas acabaram por ser inauguradas por outros governos, caso da Barragem do Alqueva, que insiste que começou com Francisco Sá Carneiro, e que atravessou seis executivos, de tanta volta que deu. "Em 1993 fui ao Alqueva e os alentejanos já não acreditavam. "Ahhh, isso já não vai", desabafavam. Estive lá no café com eles a dizer-lhes que "agora é que ia mesmo"", recorda. Ficaram também as autoestradas, e para quem o criticou sobre isso, dispara: "As pessoas que falavam do betão, penso que ignoravam muito a situação do interior do país, a sua falta de infraestruturas!".Tal como a Ponte Vasco da Gama, a que o antigo primeiro-ministro chama "uma ponte entre dois governos", o seu e o de António Guterres. Ou ainda o caminho-de-ferro na Ponte 25 de abril, que também não inaugurou. "Cada Governo no seu tempo deve cumprir o seu dever e não ficar à espera, embora seja agradável destapar as placas de inauguração.".Do que deve ou não deve ser feito no futuro próximo para dar um novo impulso ao país não quer falar, mas porque o Aeroporto Francisco Sá Carneiro também entra nas páginas do seu livro, vem à baila o que agora se discute. E sobre isso, só quer dizer que enquanto Presidente leu todos os relatórios elaborados sobre o assunto. "E desconfio que alguns membros do Governo que estiveram, direta ou indiretamente, envolvidos nesta questão não os tenham lido. Não cheguei a perceber face à leitura desses relatórios como inicialmente tinha sido decidido escolher a OTA. A posterior escolha de Alcochete, depois de demover o Governo de José Sócrates, pareceu-lhe "correta", e agora sobre a nova versão do Montijo só refere que "o relatório feito pelo Dr. Costa Silva não é claro sobre essa matéria".