Os detetives que fazem 400 chamadas por dia para vigiar o covid-19
Estes detetives usam bata branca e é com chamadas telefónicas que fazem zoom às pistas. Estão a traçar o percurso dos casos suspeitos de infeção pelo novo coronavírus, em Portugal. Entrevistam os doentes confirmados e refazem o caminho que estes percorreram nos dias antes do resultado da análise, acompanhando os seus contactos próximos. São 400 telefonemas por dia para despistar sintomas: dois por pessoa, 200 de manhã e 200, numa segunda ronda, à tarde.
Quando, no dia 5 de março foi confirmado que uma professora da Amadora, que esteve de férias em Itália (o país europeu mais afetado pelo novo vírus), estava infetada, o trabalho dos delegados de saúde começou de imediato. A docente foi encaminhada para o Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e o interrogatório começou: quando voltou? Com quem esteve? Onde foi? Deu aulas? As respostas foram as pistas que permitiram aos delegados de saúde perceber que havia que isolar cinco turmas do 7.º e 9.º anos da Escola Básica Roque Gameiro e do 11.º da Escola Secundária da Amadora - onde a professora de Físico-Química também dá aulas.
Professora, alunos, funcionários e outros docentes iniciaram então um isolamento profilático, que durará 14 dias (o tempo estimado de incubação do vírus). "A maior parte dos alunos nem sequer chegou perto da professora e naturalmente não terão problema nenhum, mas temos de tomar estas decisões sempre por cima", explica o delegado de saúde pública da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval. Este é o responsável pela coordenação dos 80 profissionais que estão no terreno a fazerem o trabalho de "detetives" a que tanto se refere Graça Freitas, diretora-geral da Saúde. Mesmo assim, todo o cuidado é pouco, até porque mais tarde surgiu a confirmação de que dois estudantes que não pertenciam às turmas em questão estavam contaminados e as escolas acabaram por encerrar portas até 20 de março.
Todos os alunos em isolamento foram identificados e recebem dois telefonemas por dia - um de manhã e outro à tarde - de um delegado de saúde a perguntar se têm algum sintoma de coronavírus (febre, tosse, fadiga, dificuldade respiratória). O médico de saúde pública avalia a situação e, em caso de suspeita, reporta o caso à Linha de Apoio ao Médico (LAM), que por sua vez aciona o INEM até ao hospital de referência mais próximo ou com maior disponibilidade. À entrada, o mesmo inquérito sobre os últimos dias. E nasce um novo ciclo de ação.
São vigiados os contactos dos contactos. Quem já está na terceira ramificação da relação com o doente ou o suspeito de infeção (por exemplo, neste caso um amigo de um dos alunos da professora infetada) recebe apenas um conselho: atenção à sintomatologia e em caso de suspeita telefone para a linha SNS24 (808 24 24 24) e não se dirija diretamente a uma unidade de saúde, sob pena de contribuir para a propagação do vírus.
Não são apenas os delegados de saúde que assinalam os casos suspeitos, por vezes o processo acontece de forma inversa (a LAM a pedir vigilância aos médicos de saúde pública). "Não largamos o telefone. São centenas de chamadas por dia. Por mim, passam praticamente todos os casos confirmados pela LAM. Depois, tenho de registar a identificação das pessoas, a morada, os critérios clínicos, os critérios epidemiológicos, se já fizeram ou não análises. É a partir desses dados que distribuo trabalho aos colegas", explica Mário Durval.
Quando o trabalho é bem feito e não há sintomas, muitas vezes estes suspeitos nem nunca são conhecidos. A nível nacional - distribuídos pelas cinco ARS (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) - existem 667 pessoas a serem vigiadas, segundo os último boletim epidemiológico da DGS, publicado nesta terça-feira.
Na região de Lisboa há 80 delegados, distribuídos por 15 agrupamentos de centros de saúde. São suficientes? "Nuns sítios vão chegando, noutros nem por isso. Mas são muito abaixo daquilo que está preconizado", admite o médico, que aponta como explicação a falta de profissionais de saúde pública.
Para Mário Durval, a melhor forma de os portugueses entenderem a importância do trabalho dos médicos de saúde pública é distinguindo-os das unidades hospitalares. "Os hospitais tratam os doentes. A saúde pública trata a doença. As epidemias combatem-se no terreno com medidas que impeçam a disseminação dos agentes patogénicos na comunidade."
A estes médicos detetives não cabe o trabalho de auscultar e de tratar. Têm de olhar para o terreno e encontrar formas de deter a infeção. "Neste momento, o vírus está circunscrito e nós pensamos que vamos conseguir controlá-lo. Temos de apertar a malha o mais fino possível para não escapar nada", acredita Mário Durval. Por isso, surgem as medidas de proteção social, como encerramentos de escolas e universidades, desaconselhamento de viagens e cancelamento de eventos com mais de cinco mil pessoas ao ar livre, tendo sempre em conta o risco.
"Eventualmente, numa outra situação, os casos estariam a ser seguidos em casa, mas enquanto tivermos capacidade de resposta, assim temos garantia de que as pessoas não vão à da vizinha", diz o delegado de saúde pública.