Os cientistas não se entendem e a discussão sobre a imunidade populacional continua

É um facto científico que a pandemia acabará quando a imunidade populacional estiver alcançada. O que divide os cientistas é sobre a forma de a conseguir - naturalmente, deixando o vírus seguir o seu curso, ou esperando pela vacina, que a garantirá artificialmente.
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A 4 de outubro de 2020, Martin Kulldorff, professor de Medicina da universidade de Harvard e epidemiologista especialista em detetar e monitorizar surtos de doenças e infeciosas e em avaliação da segurança de vacinas, Sunetra Gupta, professora da universidade de Oxford, epidemiologista especialista em imunologia, desenvolvimento de vacinas e modelos matemáticos de doenças infeciosas e Jay Bhattacharya, professor da faculdade de Medicina da universidade de Stanford, médico, epidemiologista e especialista em economia da saúde e políticas de saúde pública em doenças infeciosas e populações vulneráveis abaixo-assinaram e lançaram uma carta aberta de sua autoria a que chamaram The Great Barrington Declaration, a defender a estratégia da imunidade de grupo para combater a pandemia de covid-19.

Entre os 36 primeiros cosignatários está a portuguesa Gabriela Gomes, matemática especialista em epidemiologia e investigadora na universidade de Strathclyde, na Escócia, que considera que desde o início da pandemia a imunidade está a ser adquirida entre as populações.

"Segundo os modelos matemáticos que tenho estado a desenvolver para descrever o fenómeno, a imunidade populacional está prestes a ser atingida, o que significa que não é expectável um crescimento descontrolado da doença e por isso não existe necessidade de voltar decretar confinamentos", explicou ao Herald Scotland.

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A The Great Barrington Declaration já foi até, ao momento, assinada por 11 101 cientistas, 30989 médicos e 568 280 cidadãos.

A estratégia de construção da imunidade de grupo, deixando o vírus seguir o seu curso natural, tomando medidas básicas de proteção e protegendo os grupos de risco, que é, sintetizando, o que a carta aberta defende, não reúne, no entanto, consenso entre cientistas, sobretudo num momento em que as infeções estão a crescer exponencialmente na Europa e em outras regiões do mundo, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) já veio mesmo manifestar-se contra.

É um facto científico que a pandemia acaba quando existir imunidade populacional e esta só pode ser alcançada de duas formas: naturalmente, deixando o vírus seguir o seu curso, ou artificialmente, através de uma vacina.

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS, considera que a primeira via é pouco ética. "A imunidade de grupo é um conceito usado para a vacinação: a população está protegida em relação a determinado vírus quando for atingida uma certa taxa de vacinação", disse o responsável numa conferência de imprensa, em que defendeu que "a imunidade populacional é conseguida protegendo as pessoas do vírus e não expondo-as a ele". "Nunca na história da saúde pública a imunidade populacional foi usada como estratégia para responder a um surto epidémico e muito menos uma pandemia".

Como epidemiologistas e especialistas em doenças infeciosas e saúde pública, Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya sentiram que deviam partilhar as suas graves preocupações quanto aos impactos negativos na saúde mental e física das populações provocados pelas estratégias dominantes de combate à pandemia de covid-19 e recomendar uma abordagem a que chamaram de Proteção Focada.

O que defendem (e que não é novidade nenhuma) é que o confinamento generalizado e prolongado das populações terá efeitos devastadores de curto e longo prazo em temos de saúde pública, nomeadamente ao nível das taxas de vacinação infantil, que descerão, da saúde cardiovascular, que piorará, dos diagnósticos de cancro, que diminuirão, e da deterioração da saúde mental, que se agravará, levando a um excesso de mortalidade nos próximos anos, com as classes trabalhadores e os mais jovens a suportarem o fardo maior da crise.

Para estes três especialistas é inconcebível que medidas como o confinamento e o encerramento das escolas e de setores da economia considerados não essenciais se mantenham até ao aparecimento de uma vacina contra a covid-19.

Argumentam que, com o conhecimento que já se tem do vírus, a estratégia mais correta passaria por proteger os grupos de risco e assumir esta questão como prioridade em termos de saúde pública e abrir o resto da sociedade, com medidas básicas como a lavagem das mãos, para construir a imunidade populacional.

É polémico? Sim. Do outro lado da barricada, argumenta-se que isso custará vidas, não só entre os grupos de risco, e que as sequelas do vírus entre os que não pertencem a esses grupos podem ser graves e ainda não são totalmente conhecidas.

A discussão continuará. A investigação científica trará cada vez mais dados para que esta seja feita de forma clara e eventualmente deixe até de ser necessária. Mas talvez só quando existir imunidade populacional ao Sars-Cov2 e a pandemia acabar.

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