Ordem dos Médicos alerta que outros doentes estão a ser "prejudicados"

O bastonário da Ordem dos Médicos está preocupado com a assistência a doentes prioritários. Diz que estão a ser "prejudicados" e a ser deixados para segundo pano no meio da pandemia de covid-19. E há áreas que "não podem esperar" como a oncologia e a transplantação. Fala em dados que dão conta de um aumento de mortalidade no país, mas esclarece que ainda é cedo para estabelecer uma relação.
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Basta ligar a televisão e todos os dias fala-se dos doentes infetados pelo novo coronavírus e do número de mortes que a doença covid-19 já causou. Dos ventiladores, dos testes e material de proteção que estão para chegar e de como a estrutura do sistema de saúde está a responder à crise sanitária. Mas e os outros doentes prioritários? Doentes com doenças crónicas e graves que também precisam de assistência? A Ordem dos Médicos (OM) alerta para a falta de resposta a estes doentes, que, diz, estão a ser "prejudicados", e a ser relegados para segundo plano quando quase todas as atenções e meios estão centrados no combate à pandemia. A OE sugere, por isso, uma task force, para a qual está disponível integrar, porque "ainda estamos a tempo de fazer alguma coisa".

E há áreas, como a oncologia e a transplantação, que não podem esperar, alerta a OM. Aliás, o bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, conta ao DN que tem recebido mensagens e relatos tanto de doentes como de médicos a manifestar preocupação com esta situação.

No comunicado divulgado esta quinta-feira, a OM aponta como exemplo os casos de diagnóstico, tratamento e/ou seguimento com exames complementares de doentes oncológicos, de transplantados ou a aguardar transplante, de doenças neurológicas e outras doenças crónicas como as autoimunes, a insuficiência cardíaca, a diabetes, a insuficiência renal ou a doença pulmonar obstrutiva crónica.

Devido ao combate à pandemia, houve uma reorganização dos hospitais e centros de saúde, o que levou ao adiamento de consultas, exames e cirurgias programadas, salvaguardando os casos prioritários ou urgentes, uma reprogramação das agendas, que a própria OM recomendou. Acresce a estas circunstâncias a mobilização de meios humanos e físicos para o combate à pandemia, deixando para segundo plano a assistência a doentes prioritários, e o facto de o próprio doente ter receio de ficar infetado com o novo vírus nas deslocações aos hospitais, acabando por não realizar exames, tratamentos, o que pode significar um diagnóstico tardio, explica Miguel Guimarães.

Estamos a falar de doenças que "podem descompensar rapidamente" em doentes que, por medo de contaminação com covid-19 não recorrem às urgências e não têm "alternativa fácil a cuidados de saúde", lê-se no comunicado.

E a Ordem refere que teve conhecimento de indicadores sobre o excesso de morbilidade e mortalidade, além de algumas situações concretas de doentes, que mostram que os doentes não covid-19, "por falta de estratégia e organização da tutela, estão a ser relegados para segundo plano em patologias que não podem esperar".

Os indicadores de mortalidade que a Ordem fala são referentes aos dados vindos a público e que apontam para o crescimento da mortalidade ao longo de março. São dados da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), que indicam "uma subida de uma média de 297 mortes por dia nos primeiros sete dias de março, para uma média de 352 mortes por dia nos últimos sete dias".

"O ano de 2020 teve por isso os últimos 10 dias de março com mais mortes dos últimos 12 anos - 3.471", lê-se na nota da Ordem dos Médicos, que aponta igualmente os números do Portal do SNS, que indicam "uma quebra muito significativa" na ida às urgências. "Só em março, registaram-se menos 246 mil episódios de urgência em relação ao mesmo mês do ano passado e menos 181 mil do que em fevereiro", frisa a Ordem.

No comunicado, a OM complementa ainda a sua preocupação com outros dados, que apontam no mesmo sentido, o de crescimento da mortalidade. Os números da London Business School "alertam para mais 984 mortes entre 16 de março e 3 de abril, sendo que só 266 foram oficialmente atribuíveis ao novo coronavírus".

Ao referir-se a estes dados, está a ordem a afirmar que estão a morrer mais pessoas não covid-19 em Portugal do que seria normal? "O que a OM está a dizer é que neste momento está preocupada com a falta de respostas aos doentes prioritários, que o feedback que tem das várias unidades de saúde é que na realidade há uma grande preocupação nesta matéria", esclarece o bastonário referindo-se ao que tem ouvido sobre os "doentes oncológicos, transplantados e com doenças crónicas".

"Seria precoce, neste momento, dizer que o aumento de mortalidade que se tem verificado relativamente a períodos homólogos do ano passado tenha a ver com o facto de os doentes prioritários não estarem a ter a resposta adequada", responde Miguel Guimarães.

E é precoce fazer esta análise atualmente porque, explica o bastonário, os dados reportam "a um período relativamente curto de tempo". "Precisávamos de ter mais dados objetivos sobre aquilo que foi a causa de morte dos doentes que morreram a mais [do que é suposto] para perceber se podia ou não existir alguma relação. Neste momento não temos esses dados".

Fica, no entanto, a chamada de atenção. "É absolutamente fundamental darmos mais atenção e até reorganizar serviços e hospitais tendo em conta todo o sistema de saúde para que a nossa reposta a estes doentes possa ser o mais adequada possível".

Miguel Guimarães diz mesmo que "é quase inevitável" chegar ao fim desta pandemia e chegar à conclusão que as pessoas que foram mais prejudicadas pela pandemia, em termos de saúde, foram os doentes não covid-19..

Para o bastonário "é evidente" que há a falta de uma "estratégia inicial nesta matéria". "Desde o inicio que se previa o impacto que esta nova doença, a covid-19, iria ter no sistema. Provavelmente, a reorganização de todo o sistema de saúde devia ter sido feita de outra forma", diz.

Lamenta que a tutela não tenha acolhido a proposta da OM de ter hospitais públicos e privados ou áreas específicas bem delimitadas apenas dedicados à covid-19.

Considera que "cada hospital foi respondendo à medida que os doentes iam aparecendo e cada hospital foi-se auto organizando" e não houve, por isso, uma "integração e uma redefinição da organização incluindo o sistema privado e social", salienta Miguel Guimarães. "Isto gerou que os próprios doentes, e isto é uma coisa terrível, tenham medo de ir ao hospital, de apanhar a infeção".

E dá o seu próprio exemplo como médico urologista no Hospital de São João, no Porto. "No outro dia marquei uma série de consultas de doentes mais prioritários e nem metade apareceu. Isto é preocupante". Significa não só tratamentos que não estão a ser realizados, mas também diagnósticos que não são feitos.

"Neste momento, a complexidade à volta desta situação é grande", diz Miguel Guimarães dando conta de outro fator que está a contribuir para a falta de resposta a estes doentes,

Lembra que muitos dos exames complementares de diagnóstico e terapêutica de doentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), "fundamentais para diagnóstico, estadiamento e tratamento de várias doenças, eram feitos através de convenções" com prestadores do setor privado e social, "que também viram a sua atividade reduzida com encerramento total ou parcial de várias unidades de saúde", como aconteceu com hospitais e clínicas.

Ordem propõe uma task force

Também não ajudou o facto de o próprio "SNS requisitar profissionais que acumulavam atividade pública e privada, impedindo os médicos de exercer fora do serviço público". "Isto significa que nos próximos meses podemos também ser confrontados com diagnósticos tardios, por exemplo de casos oncológicos, com impacto na possibilidade de tratamento e de cura", faz notar a Ordem dos Médicos.

Miguel Guimarães explica que com esta opção, "muitos desses médicos que viam os doentes, faziam exames convencionados com os próprios hospitais, exames de radiologia, endoscopia digestiva, de repente foi lhes dito: 'vocês agora já não podem fazer lá fora'". Ou seja, conclui o bastonário, "os próprios hospitais prejudicaram-se a si próprios com esta decisão, porque o número de exames complementares de diagnóstico e não só, e exames de tratamento também, que são feitos com convenções que existem entre o setor publico e o setor privado é imenso"

Para minimizar esta situação, a Ordem sugere que o Ministério da Saúde crie uma task force, para a qual está disponível integrar, "porque ainda estamos a tempo de fazer alguma coisa, mesmo que haja, seguramente, muitos doentes que já foram prejudicados". "O nosso objetivo é ajudar", diz Miguel Guimarães.

Uma equipa de trabalho criada pela tutela que, eventualmente, funcionaria junto da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), de modo a monitorizar "com muita transparência e seriedade o que está a acontecer aos outros doentes e que faça contactos diretos para que ninguém fique perdido".

"Os danos que a COVID-19 está a infligir na nossa sociedade já são suficientemente cruéis para podermos aceitar ainda mais danos colaterais", reforça o bastonário no comunicado.

É preciso "ter uma estratégia para salvaguardar doentes não covid-19"

O responsável pela estrutura que representa os médicos verifica que, neste momento, tem de se "ter uma estratégia para salvaguardar os doentes não covid-19, que são a maioria".

Para se perceber a gravidade da situação, Miguel Guimarães dá como exemplo o que um cardiologista lhe relatou. "Disse-me que os doentes com enfarte agudo de miocárdio podem não estar a ter o tratamento que deviam por chegarem mais tarde aos hospitais, seja por responsabilidade dos próprios seja por neste momento toda a estrutura de emergência incluindo o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), estar muito virada para a covid-19".

É por esta realidade que a Ordem dos Médicos chama a atenção para a situação. "Estamos a dar um grito de alerta. Cuidado, continuar com o que estamos a fazer com o covid-19, mas não podemos esquecer os doentes não covid-19".

É por isso que a OM faz questão de sublinhar no comunicado que "as idas a uma urgência hospitalar, para os casos urgentes que exigem uma resposta diferenciada e rápida, não devem ser adiadas", sobretudo perante sintomas de doenças agudas como o enfarte agudo do miocárdio ou o acidente vascular cerebral.

Bastonário apoia diretor do Curry Cabral que se demitiu

Terá sido já uma consequência da falta de resposta a doentes prioritários no meio da pandemia que o país e o mundo estão a viver a demissão do diretor do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do Hospital Curry Cabral.

Américo Martins demitiu-se na quarta-feira por ter visto impedida a proposta de reorganização do serviço na unidade, disse esta quinta-feira à Lusa fonte do hospital.

"O Conselho de Administração não aceitou a criação de dois circuitos independentes" no Curry Cabral para manter, como propunham os médicos, os serviços destinados aos doentes oncológicos e transplantados no Curry Cabral, adiantou a fonte.

Em reação a esta demissão, o bastonário diz que esta situação vai merecer uma análise aprofundada da Ordem.

"É uma situação grave, que merece uma análise cuidada com a avaliação das devidas consequências que esta situação no Curry Cabral pode estar a ter nos doentes oncológicos e transplantados", diz Miguel Guimarães que manifesta todo o seu apoio ao diretor que se demitiu. "Tem razão por reclamar que tem de existir circuitos independentes para os doentes covid-19 e para os doentes transplantados e oncológicos, para não haver cruzamento entre doentes".

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