Coração, cabeça e estômago

Georgina cozinhou para Churchill de 1940 a 1954, quando se reformou, mas 1955 ainda preparou o seu banquete de despedida da vida política.
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Um dia tão triste, algures em 1977. Uma senhora idosa, idosa de 95 anos, chorava convulsivamente na cozinha de sua casa. Encostada ao lava-louça, rasgava folhas de papel, uma atrás da outra, e ia deitando os pedaços pelo cano abaixo. Era o manuscrito das suas memórias, que a filha e o genro, uns trastes, disseram que não tinha interesse algum, que ninguém iria quer saber quem ela foi e o que fizera na vida. As lágrimas caíam-lhe pelo rosto abaixo enquanto a sua existência se desfazia ali, em restos de papel rasgado.

Por um milagre, a neta ouviu os prantos da avó e correu até à cozinha, onde conseguiu resgatar 27 das muitas páginas do manuscrito memorial, as recordações de muitos anos passados ao serviço da família Churchill. Foi graças a isso, em larga medida, que Annie Gray, especialista em história da alimentação e da culinária, pôde escrever o encantador Victory in the Kitchen. The Life of Churchill's Cook, saído neste ano, há um par de meses.

Georgina Landemare foi uma criada de servir como milhares de outras em Inglaterra, país onde o serviço doméstico chegou a ser o maior empregador feminino e em que, no princípio do século XX, os empregados domésticos, homens e mulheres, chegaram a atingir 14 por cento da população activa. De acordo com os censos de 1911, em cada três mulheres que diziam ter uma "ocupação", uma era criada de servir, o que não incluía todas quantas trabalhavam a tempo parcial, em empregos esporádicos ou não directamente ligados ao serviço de uma casa, mas em conexão com ele, ou ainda as que, por pudor ou vergonha, preferiam dizer não ter ocupação alguma a confessar que trabalhavam como serviçais.

Nesta perspectiva, a perspectiva cruel da estatística e dos números, talvez a filha e o genro de Georgina Landemare tivessem razão, talvez a sua existência fosse igual a tantas outras vidas cinzentas e obscuras, milhares delas, de empregadas de servir nas casas inglesas. Na desumanidade da filha e do genro de Georgina, na proclamação da falta de interesse das suas memórias, havia também outro sentimento mau, o da vergonha das origens, o desejo que se apagasse para sempre o facto de ela, a mãe ou sogra, ter sido criada de servir, mesmo que em casas ilustres, mesmo que no n.º 10 de Downing Street, nos tempos agrestes da guerra e do Blitz.

O conflito geracional e social era também político: por deformação profissional e pelo avançar dos anos, Georgina tornara-se uma reaccionária e ultraconservadora insuportável, que desdenhava os novos tempos da democracia de massas e da fast food.

Nascera em 1882, na casa da avó materna, na minúscula aldeia de Aldbury, próxima de Tring, na fronteira entre Hertfordshire e Buckinghamshire, uma região dominada pelas vastas propriedades dos Rothschilds, entre as quais a do excêntrico Walter Rothschild, que preferiu gastar os milhões da família num jardim zoológico privado com espécies exóticas de todo o mundo a ter de passar os dias preocupado com as flutuações da Bolsa ou a solvência dos bancos.

Com pouco mais de quatro mil habitantes, Tring possuía, apesar disso, algumas benfeitorias da época vitoriana - um edifício camarário, um museu, um parque público - e tinha três fábricas nascidas na Revolução Industrial, ainda que nenhuma empregasse tanta gente quanto Tring Park, a casa de campo que os Rothschilds tinham comprado em 1872 e que, no seu auge, chegou a ocupar 300 trabalhadores a tempo inteiro.

Foi esse o meio em que Georgina nasceu, a que se convencionou chamar "classe trabalhadora afluente", à qual, na Inglaterra de finais do século XIX, correspondia 51 por cento da população, fazendo dela o grupo social mais numeroso da época (uma vez mais, talvez a filha e o genro tivessem razão: Georgina nunca se afastou da mais vulgar das medianias). O avô paterno, que começara por trabalhar no campo, fez-se guarda de caça, uma profissão em expansão quando os donos das grandes terras começaram a usá-las já não como fontes de rendimento mas como espaços de recreação e lazer, e, quando Georgina nasceu, a família vivia confortavelmente, para o que muito contribuiu o facto de só terem tido um filho em idade escolar, fugindo daquela que era a principal causa de déclassement social e o principal foco de miséria da época: uma prole numerosa de quatro, cinco ou mais filhos de tenra idade, ainda não aptos a trabalhar e a prover ao seu sustento.

Por volta dos 15 anos, o pai de Georgina começou a trabalhar nos aviários de uma quinta da região, mas na década de 1870, como acontecia a tantos, emigrou para Londres em busca de emprego e de melhor vida. Em 1881 - um ano depois de Georgina nascer, portanto -, trabalhava como cocheiro de Cyril Flower, um deputado do Partido Liberal casado com uma Rothschild. As conexões entre as famílias aristocráticas ou ricas da altura estendiam-se à criadagem, cujo estatuto, emprego e rendimento dependiam, em larga medida, das redes de sociabilidades dos seus patrões: Randolph Churchill, o pai de Winston, para quem Georgina trabalhará, era amigo próximo de Nathan Rothschild, a família que o pai de Georgina servia quando ela nasceu.

A mãe de Georgina, por sua vez, era empregada doméstica e, como muitas das mulheres da sua terra, dedicava os tempos livres à pequena indústria local, em declínio acelerado: a manufactura de palha entrelaçada, actividade que lhe permitia complementar o salário até se casar e ir para Londres com o marido.
A vida dos serviçais acompanhava a dos patrões, o que implicava passarem a saison em Londres e o resto do ano no campo.

A educação de Georgina, como é evidente, ressentiu-se dessa transumância, e ela, quando teria 13 anos, abandonou a escola. Uma longa conversa com uma tia levou-a a decidir ser cozinheira, um longo percurso em várias etapas que, no caso dela, começou como criada de copa numa casa em Kensington Palace Gardens, "número seis" de um staff de 14 empregados, e, desde então, Georgina impôs-se nunca trabalhar em casas com menos de seis empregados.

A sua carreira começou na viragem para o século XX, nos tempos radiosos em que se comemorava o Diamond Jubilee da rainha Vitória, quando esta assinalou o feliz sucesso de ter ultrapassado o avô George III como monarca mais longevo da história do Reino Unido. Por sugestão do secretário das Colónias, Joseph Chamberlain, as comemorações do jubileu foram uma faustosa celebração do império, sendo convidados para as festividades todos os primeiros-ministros dos domínios britânicos espalhados pelo mundo. Em uníssono, o reino celebrou o seu afecto imenso pela monarca de 78 anos e l'esprit du temps fez mudar significativamente hábitos e estilos de vida.

A mesa, como sempre, foi o centro da organização vital. Depois do chá tomado na cama, instituiu-se um pequeno-almoço substancial, de cereais, peixe, ovos, salsichas, marmelada, ingerido por volta das 08.30, muito mais cedo do que os pequenos-almoços da época georgiana, pois agora era sucedido pela refeição que viu a luz na viragem do século e que foi tomando vários nomes - nuncheon, noonings, noonshine, luncheon - até ser conhecida por lunch e, aos poucos, passar ser tomada cada vez mais tarde, por volta das 13.45 ou mesmo das 14.00, convertendo-se numa ocasião social com a duração de várias horas. Depois de almoço, aquilo a que, em Movable Feasts, de 1952, Arnold Palmer chamou "o grande legado do século XIX à humanidade: a tarde".

O dia deixava assim de ter uma estrutura bipartida e simples, como na época da infância de Georgina, com a manhã, por um lado, a noite, por outro, e o jantar de permeio, e passou a desenvolver-se a quatro tempos: a manhã, a tarde, o intervalo entre o chá e o jantar e o pós-jantar (o chá, como momento social, surgiu por volta da década de 1890).

Para quem servia, as mudanças não tinham sido favoráveis e o serviço nas cozinhas exigia que as auxiliares se levantassem muitas vezes às quatro e meia da madrugada para iniciar a preparação dos pequenos-almoços dos patrões. Depois, o resto do dia era uma batalha sem tréguas, sobretudo para aqueles que, como Georgina, ocupavam os escalões mais baixos na hierarquia do serviço e que tinham de desempenhar as tarefas árduas de limpeza e lavagem dos tachos e das dezenas de utensílios de cozinha (talvez por isso, Georgina nunca gostou de cozinhas muito equipadas nem com excesso de artefactos).

Com trabalho, muito trabalho, Georgina conseguiu ir progredindo e, em 1901, passou a ocupar uma posição mais confortável em Gloucester Square, na casa de Edward Dunbar Kilburn, um homem que tinha feito fortuna em negócios de import/export. Como era frequente nas residências dos novos-ricos e dos emergentes, o jantar era servido à la russe, com uma ordenação sequencial dos diversos pratos, no mínimo de sete, e ementas de predominância francesa (a culinária inglesa atravessou na altura um justo e merecido período de autoflagelação, sobretudo no domínio da pastelaria).

Em 1907, seis anos após entrar ao serviço de Kilburn, Georgina mudou-se para uma outra casa, a dos Allatinis, uma família greco-italiana que vivia em Holland Park. Subira até ao topo da escala, aos 25 anos era cozinheira principal, mas a viragem fundamental deu-se em 1909, quando se casou com Paul Landemare, um chef francês, viúvo e pai de seis filhos, oriundo de uma família de reputados pâtissiers parisienses.

À semelhança de Georgina, Paul largara os estudos aos 13 anos e empregara-se como aprendiz num restaurante, onde ainda fora ensinado na escola das pièces montées, as faraónicas torres de pastelaria, muito em voga no Segundo Império, adornadas por nuvens de algodão-doce, com cobertura fondant.

Entre os objectos que guardou toda a vida contava-se uma caçarola com a marca "Système Café Voisin", o que sugere que terá trabalhado no restaurante do mesmo nome na Rue de Saint Honoré, famoso por, sob a batuta do chef Alexandre Étienne Choron, ter servido, no Natal de 1870, quando Paris agonizava à fome com o cerco dos prussianos, uma ceia feita com carnes de vários animais vindos do Jardin d'Acclimatation: cabeça recheada de burro, consommé de elefante, camelo na brasa, ensopado de canguru, pernil de urso com molho de pimenta, lobo em molho de veado, gato com rato, antílope com molho de trufas - tudo regado com Mouton-Rothschild 1846, Romanée-Conti 1858 e Château Palmer 1864.

O ágape foi de tal forma memorável para os burgueses cansados de comer cães, gatos e ratos, que Choron passou a incluir no menu trompe d'éléphant en sauce chasseur e éléphant bourguignon, com carne dos elefantes dos zoos da cidade, comprada a quinze francos o quilo (quando os últimos paquidermes foram dizimados, Choron substituiu a ementa por carne de cavalo, mas durou pouco: duas semanas depois os prussianos levantavam o cerco à Cidade-Luz).

Paul Landemare terá trabalhado igualmente com o lendário Escoffier, pouco antes de rumar a Londres, onde esteve em vários restaurantes até ir servir como cozinheiro na casa do 7.º duque de Newcastle. Era infeliz no seu casamento (a mulher, Anne, tinha graves distúrbios mentais) e, dois meses depois de enviuvar, casou-se em segundas núpcias com Georgina.

A guerra de 1914-1918 devastaria o mundo em que viviam e, até à sua morte, em 1932, pouco se sabe de Paul, excepto que teve uma filha com Georgina, Yvonne, e que desempenhou um papel essencial na sua formação culinária de inspiração francesa. A escassez do pós-guerra promoveu as refeições práticas e frugais, longe dos repastos intermináveis dos alvores do século XX, e muitas grandes casas começaram a reduzir o pessoal, cujas tarefas se tornaram dispensáveis graças aos novos utensílios domésticos, aos fogões a gás e aos frigoríficos.

Os banquetes sofisticados que Georgina outrora servia para a classe política e para os aristocratas eram agora mais raros e irregulares, o que a levou a tomar a decisão de deixar de trabalhar por conta própria.

Os Churchills eram seus clientes, encomendavam-lhe vários banquetes e jantares solenes, mas não tinham dinheiro para pagar uma cozinheira tão afamada como ela. Foi por necessidade, mais do que por outra razão, que Georgina Landemare aceitou o convite de Clementine Churchill para trabalhar em sua casa.

Entrou ao serviço em Fevereiro de 1940, um mês depois de o racionamento ter começado. Em Maio, Winston tornava-se primeiro-ministro e a fiel criada mudou-se para Downing Street. Não foi uma tarefa fácil, pois Churchill, desde há muito, sabia usar a comida como instrumento político e diplomático e conhecia o valor e a importância de uma boa refeição para conquistar as almas e os corpos dos seus convidados: "O estômago governa o mundo", costumava dizer.

Ainda que, contrariamente a ideias feitas, não tivesse um apetite voraz, Winston estava habituado desde novo a comer e a beber bem - e muito. As refeições oferecidas pelo primeiro-ministro exigiam, para mais, um equilíbrio difícil, pois não poderiam ser excessivas e opulentas, ofensivas para os tormentos então passados pelo povo britânico, nem deviam, ao mesmo tempo, transmitir uma ideia miserabilista ou demasiado frugal.

A mesa de Downing Street era, ou deveria ser, um espaço e um tempo de descontracção, um exemplo de fleuma e de alegria de viver, mesmo naqueles tempos negros, em que a Europa e o mundo se viam ameaçados pela loucura belicista de um vegetariano furioso. Conseguir esse equilíbrio com ingredientes escassos e, devido à guerra, muito dependentes das estações do ano foi uma proeza rara, tão rara que, no dia da celebração da vitória, Churchill disse a Georgina que o triunfo não teria sido possível sem o seu talento como cozinheira.

Não era um exagero. Até para a conferência de Ialta, com Roosevelt e Estaline, o primeiro-ministro britânico levaria lancheiras carregadas com as suas sopas...
Georgina quase morreu numa noite, durante o Blitz, quando o afã de terminar um pudim requintado a fez retardar a corrida para o abrigo antiaéreo do n.º 10 de Downing Street. Foi Churchill quem lhe gritou para fugir ("If Mr. Hitler gets you, I won"t get my soup!"), um gesto que, como ela reconhecerá mais tarde, acabou por lhe salvar a vida. Mais tarde, quando Churchill se refugiou não muito longe dali, nos Cabinet War Rooms, Georgina acompanhou-o, e teve de se desenvencilhar como pôde numa cozinha minúscula e abafada, sem luz natural e com pouco ou nenhum contacto com o exterior agreste.

É certo que, em comparação com o fausto da década de 1890, a culinária e os hábitos alimentares dos anos de 1930 e 1940 primavam pela frugalidade. Os Churchills não eram excepção. O dia começava com o pequeno-almoço servido na cama para Winston e para Clementine, que cada qual tomava em quartos separados - sumo de laranja, ovos, torradas com manteiga. O almoço era servido às 13.15 em Londres e às 14.00 em Chequers, a casa de campo; nas ocasiões menos formais, fishcakes ou pêras bêbadas.

Os Churchills não eram tão estritos como a família real em matéria de racionamento. Talvez por isso, o rei Jorge VI instituiu o hábito de jantar às terças-feiras em Downing Street. Num dos menus que ainda restam desse tempo, eram servidos empadas de peixe, turnedós com cogumelos, aipo abraseado, batatas no forno, pêssegos e o queijo no fim.

Os Churchills eram uns patrões terríveis. Era frequente as criadas fugirem da sua casa ao fim de poucos dias, lavadas em lágrimas, e conta-se que uma delas chegou a enlouquecer. Georgina foi a empregada que mais tempo esteve ao serviço de Winston e de Clementine, de quem se tornou amiga e confidente.

Continuou a trabalhar com eles, sem vacilar, após a derrota nas eleições de 1945 e, com o triunfo de 1951, regressou a Downing Street. Tinha agora 70 anos e tornara-se uma lenda doméstica. Quando Charlie Chaplin foi jantar ao n.º 10, quis conhecê-la, e vice-versa.

Várias vezes tentou reformar-se, mas ora sentia saudades dos patrões ora estes lhe suplicavam que voltasse. Acabou por permanecer até 1954, aposentando-se oito dias antes de terminar o racionamento (que, para quem não saiba, em Inglaterra durou quase dez anos após o fim da guerra). Em 1955, quando Winston se retirou da vida pública, ainda a chamaram para cozinhar o banquete de despedida. Três anos depois, publicou Recipes from Number Ten, com prefácio de Clementine.

Os últimos anos de vida, porém, não foram felizes. A filha, Yvonne, o primeiro membro da família a concluir a escola, tornou-se dactilógrafa de um contabilista e casou-se. Ela e o marido tinham simpatias à esquerda e desprezavam tudo o que Georgina representava e o mundo no qual vivera - o que não os impediu de ficarem com as suas poupanças quando esta decidiu ir para uma casa de repouso.

Georgina não os compreendia, nem à sua preocupação com o preço da gasolina, nem à sua obsessão em terem um automóvel melhor do que o dos vizinhos. Clementine visitava-a regularmente, mas morreu em 1977, o ano em que uma das antigas secretárias de Churchill, também ela uma visita habitual, convenceu Georgina a escrever as suas memórias, que a filha e o genro disseram não terem interesse algum e que ela praticamente destruiu, numa manhã de tristeza e lágrimas.

Georgina Landemare teve uma vida longa, quase sempre feliz, e morreu em 1978, aos 96 anos, durante o sono. Em 1985, quando os Cabinet War Rooms foram abertos ao público, com a cozinha recriada tal qual como nos tempos árduos da guerra, muitos dos utensílios expostos pertenciam a Georgina, tendo sido oferecidos pela neta, o único membro da sua família que verdadeiramente a compreendeu. Destacava-se a caçarola do marido, Paul Landemare, com a marca do Café Voisin, o tal que, como ela, sobrevivera com garbo aos desastres da Comuna e aos avanços prussianos.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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