"Esta vítima e apenas esta pode escolher prestar depoimento e contribuir para a descoberta da verdade material, ou recusar-se a fazê-lo. Como pode esta vítima, cujo poder decisório está, em muitos casos, afetado pelo trauma dos abusos sofridos, tomar esta decisão de forma plenamente livre e dando primazia aos seus interesses? Certamente não será fácil e em muitos dos casos a opção tomada não reflete esses interesses mas o medo de retaliação do agressor.".A Procuradoria-Geral da República apoia assim, no parecer que enviou à Assembleia da República, uma das propostas que o PSD vai apresentar esta terça-feira, e que consiste em poder obrigar as vítimas de violência doméstica a testemunhar mesmo quando não o queiram fazer. A PGR admite que tal poderá resultar em dupla vitimação, reforçando a sensação da vítima de que toda a gente toma decisões por ela, mas ainda assim considera que os fins o justificam.."Concordamos que deve ser respeitada a autonomia da vítima", diz o parecer, "no entanto a limitação do direito de recusa do depoimento não estaria a limitar a autonomia da vítima de forma inaceitável pois esta é uma questão de congruência do sistema. (...) O respeito pela vontade da vítima deve ter como limite as situações em que há risco para a vida e para a integridade física e moral da própria vítima, ou quando no seio familiar existem crianças. Nestas situações compreende-se que as autoridades tomem decisões sem a concordância ou consentimento da vítima, afinal está em causa o interesse público.".Ainda assim, a PGR defende que essa obrigação só deve ser imposta quando tenha sido a vítima a fazer queixa: "Obrigar a vítima a enfrentar um processo criminal contra a sua vontade será sujeitá-la a uma vitimização secundária, daí que se proponha que qualquer alteração a empreender terá de ser diretamente condicionada aos casos em que tenha sido a vítima a desencadear ab initio o procedimento criminal.".E admite efeitos perversos: "O facto de saberem que não controlam o processo e que não podem retirar a queixa também poderá implicar uma diminuição do número de queixas apresentadas pela vítima que temerá outras consequências com a acusação do agressor e a sua eventual prisão." Mas considera que "apesar de se vislumbrarem efeitos negativos na aplicação de políticas em que se secundariza a vontade das vítimas, não se deverá esquecer o importante efeito pedagógico de tais estratégias, perante os intervenientes diretos, mas fundamentalmente perante a comunidade. Assim sendo, no seguimento da política adotada pelo legislador de prosseguir independentemente da vontade da vítima [refere aqui o facto de a violência doméstica ser crime público desde 2000, o que significa que qualquer pessoa que tenha conhecimento desse crime o pode denunciar], a limitação do direito de recusa, na medida em que implica o depoimento da vítima contra a sua vontade, não parece ser desapropriado."."É uma ameaça às vítimas"."Como é que se obriga uma vítima a falar?" A pergunta é da advogada Elisabete Brasil, que como membro da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) trabalha com vítimas de violência doméstica há mais de 20 anos. "Acho que a vítima não pode ser obrigada a prestar declarações. Espero que isso nunca venha a ser imposto Querer obrigar vítimas a testemunhar se não o desejam fazer é uma ameaça às vítimas. Pode levá-las a não apresentar queixa.".Daniel Cotrim, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, concorda. "Não faz sentido. Obrigá-las a falar é pôr de novo o ónus do processo sobre as vítimas." Acresce que impor a obrigatoriedade de testemunhar implica penalizar quem se furte a fazê-lo. O que, como um procurador admite ao DN, significa que a vítima em causa seria acusada do crime de desobediência. "Não faz muito sentido", conclui..Mas o parecer da PGR, se não se detém na criminalização da recusa, explica longamente por que motivo defende a alteração. Para tal, refere o elevado número de processos em que a vítima se recusa a prestar depoimento, assim como a fraca taxa de processos levados até ao fim e resultando em condenação, e cita o autor José Leonardo, em Crimes Violentos em Contexto Familiar, Polícia e Justiça: "Sendo difícil a recolha de provas e não havendo testemunhas "terceiras" que assistam às ocorrências, por estas se darem em ambientes privados, torna-se complexa e infrutífera a investigação de crimes. É neste sentido que o direito de recusa funciona como mais uma barreira imposta às autoridades judiciais e policiais na medida em que a vítima, o sujeito passivo da conduta criminal, tem o direito de recusar depor como testemunha deixando de fornecer elementos de prova que poderão ser essenciais à condenação do sujeito ativo da conduta criminosa.".Esse direito, explica José Leonardo, "é-lhe atribuído não devido à sua qualidade de vítima mas pela sua qualidade de familiar ou afim do arguido acusado de ter cometido a conduta criminosa que a vitimizou. Se não houvesse qualquer tipo de conhecimento entre o sujeito ativo e passivo da conduta criminosa a vítima não gozaria do direito da recusa de depor, impondo o legislador que a vítima prestasse o seu contributo para a descoberta da verdade material, caso fosse convocada para tal. Enfim, a benesse atribuída não só desvirtua os fins do direito de recusa como tem efeitos negativos na investigação e ação penal.".O ponto, argumenta pois o parecer da PGR, é que sendo a regra a obrigatoriedade de depor, mesmo para as vítimas, este direito de recusa de testemunho, previsto no artigo 134º do Código de Processo Penal e outorgado aos familiares de um arguido, assenta num "conceito idealizado de família" e existe para proteger "a confiança ou a solidariedade familiar" (de acordo com o Tribunal Constitucional). Ora para que essa proteção se justifique e com ela a exceção que o direito de recusa de depor implica, crê a PGR, exige-se que "os laços emocionais e de confiança que unem os familiares a afins (...) sejam saudáveis". Só nessa condição deverão ser "legitimamente protegidos", conclui..E pergunta: "Se o meio familiar a proteger for obscurecido por fenómenos de violência justifica-se continuar a exigir que sejam protegidos pelo instituto, diretamente a vítima e indiretamente o agressor? É que, na verdade, essa proteção resultará num efetivo encobrimento de uma situação verdadeiramente tóxica e que é declarada intolerável para o Estado de Direito, designadamente quando reconheceu a imperiosa necessidade de consagrar a natureza pública ao crime de violência doméstica.".Argumentos que para Daniel Cotrim não colhem: "O que defendemos é que a questão da recusa de depoimento por causa da vítima pode ser acautelada com a obrigatoriedade das declarações para memória futura. Quando a vítima é ouvida a primeira vez tem de ser por um magistrado e em depoimento vídeo. Tentamos muitas vezes que as pessoas que estão nas casas-abrigo possam depor assim e não conseguimos.".Sendo já previstas na lei, as declarações para memória futura não são no entanto obrigatórias nos processos de violência doméstica. Uma alteração que o BE propõe e com a qual a APAV concorda. Mas, frisa Daniel Cotrim, "para nós o importante é que as leis que temos, que são boas, sejam aplicadas." E outra coisa: "Formação dos magistrados. Mas não em leis: em vitimologia. Para que percebam que uma vítima de violência doméstica tem características especiais. Não é igual a uma vítima de roubo. Porque para esta o roubo aconteceu, está no passado. Já para a vítima de violência doméstica esse facto está no passado, no presente e no futuro. Afeta toda a sua vida."