Todos olhamos com horror e consternação para o que se passa nos EUA", acabou por dizer Justin Trudeau após um silêncio de 21 segundos, durante os quais o primeiro-ministro canadiano procurou as palavras certas para comentar os violentos protestos no vizinho do sul após a morte de George Floyd, um afro-americano de 46 anos, sufocado pelo joelho de um polícia. Se alguém duvida da proximidade entre os dois gigantes da América do Norte, basta ver os jornais canadianos, onde o assassínio de Floyd domina, relegando até para segundo lugar a pandemia de covid-19..Mas também na luta contra o novo coronavírus, os caminhos de Canadá e EUA não podiam divergir mais. Talvez graças ao seu sistema nacional de saúde, que tal como os europeus garante o acesso de todos, gratuito, aos cuidados de saúde, o Canadá conseguiu melhores resultados do que o vizinho no combate à pandemia. Se os EUA se aproximam a passo galopante dos dois milhões de infetados e já passaram os 110 mil mortos, o Canadá ultrapassou os 93 mil casos e aproxima-se das 7700 vítimas mortais. Uma diferença enorme, mesmo tendo em conta que os EUA têm mais de 330 milhões de habitantes, enquanto o Canadá não chega aos 38 milhões, espalhados por um enorme território que faz dele o segundo maior país do mundo..A relação entre Trudeau - um ex-professor primário com ares de estrela de cinema, filho de um ex-primeiro-ministro, campeão do liberalismo e reeleito em 2019 depois de em 2015 ter posto fim a mais de uma década de domínio conservador em Otava - e Trump nunca foi fácil. Sobretudo depois daquela cimeira do G20 em 2018, no Quebec, quando o anfitrião Trudeau criticou as tarifas americanas ao aço e alumínio canadianos. Trump virou costas e saiu da reunião, tendo tuitado já no avião a caminho dos EUA que o líder canadiano é "muito desonesto e fraco"..E depois de um encontro no mínimo frio na Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, em setembro de 2018, a cimeira da NATO em Londres, em dezembro de 2019, voltou a revelar a tensão entre os dois. Trudeau foi apanhado a gozar com o presidente americano, numa conversa com o britânico Boris Johnson, o holandês Mark Rutte e o francês Emmanuel Macron. "Hipócrita", reagiu Trump..Com o novo acordo de comércio livre entre EUA, Canadá e México, sucessor do NAFTA, assinado em janeiro, as coisas pareciam mais calmas. Talvez por isso, depois do silêncio desconfortável perante a pergunta sobre Trump e os protestos, Trudeau tenha optado por virar o foco para o Canadá. Afastando a tentação de fazer comparações entre os dois países ou de "acharmos que somos muito melhores por cá", o primeiro-ministro canadiano garantiu: "Os canadianos têm de admitir que temos os nossos desafios, que os canadianos de raça negra ou outras raças enfrentam a discriminação enquanto realidade todos os dias.".Tal como Trudeau, também Henry Vivian Nelles escolhe a cautela quando se trata de comparar Canadá e EUA. O historiador, professor na universidade de York e autor do livro A Little History of Canada admite que os canadianos sentem uma superioridade moral em relação aos vizinhos do sul que é "totalmente injustificada". Para ele, a "natureza da raça" é uma das grandes diferenças entre os dois velhos aliados. "Existe racismo no Canadá como disse Trudeau e a resposta dele mostrou que se quis centrar nisso, numa coisa que podemos resolver, e não no trágico problema nos EUA que não podemos resolver.".Afinal, ao melting pot americano, os canadianos respondem com o multiculturalismo, apoiado por políticas de Estado desde 1971. Uma realidade que muito orgulha um país em que 20% da população nasceu no estrangeiro, dando-lhe juventude, diversidade étnica, linguística e religiosa..O sistema de saúde faz a diferença.Se os protestos nos vizinhos EUA lhe vieram tirar algum protagonismo, a covid-19 continua a ser o grande desafio para Otava. "O sistema de saúde público fez a diferença no Canadá", garante Nelles. "A população estava mais saudável porque procura os cuidados médicos sem medo dos custos, como acontece nos EUA.".Mas o sistema de saúde não é a única explicação para o sucesso relativo do Canadá nesta luta. A própria geografia ajudou: "Muita da diferença de números do Canadá pode ser explicada por uma população dispersa, além claro de uma intervenção social agressiva e de um alto grau de obediência da população em relação às recomendações das autoridades de saúde", explica o historiador..Ao contrário de países como Itália ou Espanha, onde o sistema de saúde entrou em colapso, o Canadá conseguiu dar resposta a um surto que não foi tão intenso e, tendo começado na China e passado para a Europa, deu tempo às Américas para se prepararem. E, como lembra Nelles, "Toronto foi um epicentro da SARS e na altura o sistema quase entrou em colapso. Aprendeu-se muito com essa experiência e isso ajudou a lidar com esta crise.".E não é só no combate à covid-19 que o Canadá está a fazer melhor do que o vizinho do sul em termos de saúde. Basta olhar para a esperança média de vida que no Canadá está acima dos 82 anos enquanto nos EUA é de 78,5 ou para a mortalidade infantil - 4,3 por mil contra 5,8 por mil..Voltando à covid, o sucesso canadiano não é homogéneo. É no Quebec, a grande província francófona, que se registam mais de metade dos casos e a maioria dos mortos - quase 4800 dos 7600. As férias de primavera, que ali ocorreram antes do confinamento, um velho problema com os lares e ter feito muitos testes são algumas explicações, Mas Nelles prefere não tirar grandes conclusões, até porque nos últimos dias o Ontário, onde ficam Otava e a cidade mais populosa do país, Toronto, tem uma taxa de infeção maior..Uma resposta global à crise financeira.Membro do G7 e décima economia mundial, com um PIB de 1,7 biliões de dólares, o Canadá não deverá escapar à crise económica que se seguirá à crise pandémica. O FMI prevê que a economia canadiana encolha 6,2% em 2020. Só em abril, o país perdeu dois milhões de empregos e a taxa de desemprego mais do que duplicou para os 14% entre fevereiro e abril..Com a fronteira com os EUA, o seu primeiro parceiro comercial, ainda fechada e com todo o mundo a antecipar a pior recessão desde os anos 1930, o Canadá deverá sofrer na pele as consequências da sua dependência de uma economia altamente globalizada..Em finais de maio, Trudeau liderou um apelo à cooperação global na luta contra os efeitos da pandemia, sob a égide da ONU. Numa videoconferência com meia centena de líderes mundiais, o primeiro-ministro canadiano sublinhou a necessidade de trabalhar em conjunto para evitar os efeitos devastadores da pandemia, tanto em termos de saúde como económicos e sociais. O apelo, apadrinhado pelo secretário-geral da ONU, o português António Guterres, parece um bom augúrio para o Canadá que neste mês de junho vai disputar com a Noruega e a Irlanda um de dois lugares não permanentes livres no Conselho de Segurança.