O último dia nas escolas antes do isolamento nacional. "O ambiente já é outro"
Encostada às grades, de cigarro aceso na ponta dos lábios, cabeça vertida para o chão (presa num qualquer pensamento), bata verde e branca quadrilhada, no silêncio da escola que se ergue atrás de si. Foi assim que encontramos Eduarda, 45 anos, funcionária da EB1/JI Sacadura Cabral, na Brandoa (Lisboa), onde esta sexta-feira faltava "grande parte" das normais dezenas de crianças do pré-escolar e 1.º ciclo que ali estão diariamente. Um cenário familiar desde o início da semana, conta: os pais não esperaram para ouvir o governo decretar a suspensão das atividades letivas para todas as escolas até 9 de abril.
É interrompida pela colega de trabalho Eugénia, 53 anos. "Isto hoje... não há descanso", desabafa, enquanto corre porta dentro para "atender chamadas de mais pais". "Estão preocupados", perguntam-lhe vezes sem conta se a escola deve ceder alguma documentação que lhes permita ficar em casa com os filhos. "Nós sabemos lá", garante responder sempre. Num jogo de perguntas e respostas, as primeiras existem em maior número para todos - pais, professores, alunos e funcionários.
As dúvidas "têm sido reencaminhadas ali para a direção", diz Eugénia, levantando o indicador em direção à escola do outro lado da rua, a secundária Fernando Namora. Pedimos ao porteiro João Nunes que nos encaminhasse para a diretora. "Não podem, estão reunidos de urgência com professores para ver como isto corre daqui para a frente", diz-nos.
Um ring dá ordem para o primeiro intervalo da manhã e tudo fica às claras: há mais movimento neste recreio, mas "muito menos do que o normal", conta-nos Isabel, 17 anos, aluna do 10.º ano. "Não foi um dia de aulas normal", admite a jovem estudante. Houve quem já não viesse, mas ela teve de vir, "ou reprovaria por faltas". Isabel ainda não sabe como decorrem as avaliações nem se os professores vão garantir o ensino à distância.
Cá fora, um grupo de oito professores junta-se em debate. A professora Anabela Garcia comenta uma escola mais vazia, mas onde ninguém faltou, apesar de "alguns nem levarem livros". "Mas todos levaram o seu frasquinho de álcool, isso sim", conta. Certo é que "o ambiente já é outro" face ao que se tem visto nos últimos dias, onde o medo e as dúvidas tomam conta da comunidade escolar. Como se a ordem de António Costa viesse acalmar os ânimos, garantindo que tudo ficaria bem a partir do momento em que a decisão chegasse. Mas "os alunos estão mais curiosos ainda": perguntam como vai ser daqui para a frente. "Eu sinto-me desinformada, fazem-me perguntas para as quais não tenho resposta", desabafava.
Horas depois, o ministério enviava a todas as escolas uma série de orientações, entre as quais definia que "a avaliação sumativa do 2.º período será efetuada no período normal, com base nos elementos disponíveis nesse momento (incluindo os ainda a recolher) e no caráter contínuo da avaliação". Durante a interrupção letiva, como lembrou o ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues, a comunidade escolar não está de férias. Por isso, os professores devem garantir meios e instrumentos de estudo (e não aulas) para todos os alunos, mesmo àqueles que não tenham os instrumentos tradicionalmente necessários para o efeito - computadores e acesso à internet.
Na sala da professora de inglês Ana Cristina Almeida, 53 anos, dos 28 alunos que normalmente se sentam estiveram presentes apenas 14. E, olhando para a realidade que ali encontra todos os dias, tem uma certeza: "a maioria das escolas não está preparada para dar aulas aos alunos à distância". A tutela garante que "está em preparação um conjunto de orientações, instrumentos e ferramentas para coadjuvar o trabalho pedagógico das escolas durante a suspensão das atividades letivas presenciais" e que "permanecerá em contacto regular com as escolas".
"Não se falava em mais nada nos últimos dias. Todas as aulas serviam para falar do novo coronavírus", conta a estudante Isabel. Sente-se informada, os professores não deixaram nada por responder neste âmbito. Pergunta a um grupo de colegas de turma que saem em passo acelerado da escola: "já vais?". Um tempo letivo bastou, "vieram buscar as coisas do cacifo" e lá vão eles, à sua vida. "E não vão ficar em casa, vão andar por aí", garante. Ao contrário do que recomenda o governo.
No comunicado enviado pelo Ministério da Educação, a tutela recorda ser "muito importante que a comunicação feita às famílias sobre a suspensão das atividades seja acompanhada de uma recomendação forte da parte da escola para que sejam cumpridas as regras de higiene, de distanciamento social e, sobretudo, de contenção da participação dos alunos em atividades, iniciativas e deslocações a locais que potenciem o contágio".
Em contracorrente dos colegas, na segunda-feira, Isabel já estará em Tomar, onde tem uma casa. "A minha mãe diz que isto por lá estará melhor, é menos contagioso", conta. Promete manter as recomendações que tem ouvido nos últimos dias na sala de aula e na televisão: manter-se por casa, longe de eventos sociais.
Para já, na escola só estão obrigados a ficar todos aqueles que podem garantir a sua vigilância e o serviço administrativo.Para os professores, aconselha o ministério, "as reuniões e as atividades poderão ser realizadas à distância, sempre que possível". Mas Madalena e Rosária, funcionárias da Escola Básica das Laranjeiras, onde "mais de metade dos alunos não compareceu" esta sexta-feira, concordam que "há riscos" quando se pede a pessoas nas suas funções para continuarem a apresentar-se nos estabelecimentos de ensino". São horas de viagem para Rosária, obrigada a transportar-se todos os dias "em três transportes" até chegar à escola. "Depois, estamos aqui o dia todo juntos e contaminamo-nos", acrescenta a colega Madalena, preocupada.
"É preciso fruta". Uma mulher de avental vermelho dita a lista de compras ao telemóvel, abraçada a duas garrafas de óleo, em frente à EB1/JI Sacadura Cabral. A partir de segunda-feira, a escola encerra as suas atividades letivas, mas "há muitas crianças que dependem das refeições que fazem aqui", diz outra funcionária, Eduarda.
Estamos na Brandoa, "vive-se com muitas dificuldades por aqui", "há famílias que não têm possibilidades [económicas] para enviar lanche aos filhos todos os dias", relata. Um assunto que não ficou esquecido pela ministra da Saúde, que esta quarta-feira, na sua audição parlamentar, lembrou que a decisão de encerrar as escolas em Portugal dependeria de uma vasta ponderação, devido ao facto de haver crianças que podem ficar sem refeições porque é nas escolas que as têm.
Depois de o primeiro-ministro anunciar, esta quinta-feira, que o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino iria para a frente, o Ministério da Educação não deixou o problema sem solução. De acordo com a tutela, "o fornecimento de refeições escolares aos alunos com escalão A da ASE [Ação Social Escolar] deve ser garantido, devendo cada escola, em conjunto com as autarquias e os prestadores de serviço, encontrar a forma mais eficaz e segura de assegurar a refeição".
Mas ainda há perguntas à espera de resposta. O ministro da educação reúne-se esta sexta-feira à tarde com a com os representantes da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) e da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), para averiguar os próximos passos. Até lá, apela-se a uma vivência mais regrada, longe das multidões.