Abril acabou de romper e em Tavira o tempo não está frio, mas ainda não é de esplanada. O restaurante Três Palmeiras, na margem sul do rio Gilão, é a exceção. No exterior, as mesas enchem-se de estrangeiros que chegam ao Algarve à procura das praias de água morna, areia limpa e do peixe grelhado na hora. Não há forma, porém, de irem até à ilha Deserta, nesta altura do ano só ao alcance dos que têm barco próprio. "É o nosso pequeno paraíso", diz João Diniz, residente e surfista de presença habitual na ilha. Lá, a areia é "branquinha, branquinha" e a água "a mais límpida do Algarve", descreve..Há umas semanas, o cenário mudou. O vento levante que vem do estreito de Gibraltar e provoca ondas com mais de dois metros trouxe mais do que alterações de maré. Ferro velho, pneus, eletrodomésticos, carrinhos de compras e muito plástico deram à costa deixando um tapete de lixo no areal..O que teria acontecido? Logo se apontou o dedo à empresa Docapesca, que, em novembro do ano passado, iniciara trabalhos de dragagem no rio Gilão. O lixo dragado foi depositado a 400 metros da costa.Seria o que apareceu na praia o que foi retirado no Gilão? As versões são contraditórias. Enquanto a empresa garante que cumpriu a lei, ao abrigo de um relatório da Agência Portuguesa do Ambiente, as associações ambientais e os moradores estão convencidos do contrário..Os turistas podem passar ao lado da querela, mas não os tavirenses, revoltados com o ataque ambiental que presenciaram no seu pequeno paraíso. Os que mais sabem falar sobre o assunto serão os que moram ou trabalham mesmo em frente ao Gilão. "Foram esses que viram tudo", a dragagem a começar e a terminar, dizem-nos..Jaime Madeira, 47 anos, está sentado no degrau de entrada de uma casa da Rua Padre Evaristo do Rosário Guerreiro, de cigarro na boca e com os dedos a passear para cima e para baixo no ecrã do telemóvel. Mora do outro lado do rio e aqui espera os novos inquilinos turistas para a casa que, deste lado, arrenda durante todo o ano. Pouco sabe sobre o que deu à costa na Deserta e encolhe os ombros como se o caso não fosse tão surpreendente assim. "É a vergonha que temos", limita-se a dizer..Umas ruas à frente, João, 44, segue com a farda da empresa municipal Tavira Verde, ao mesmo tempo que aspira a rua. De sotaque e tez algarvias, residente em Tavira, João nem espera que a pergunta termine: "Eu avisei logo, 'deixem vir os levantes que aquela ilha há de ficar bonita'"." E assim foi. O funcionário municipal sabe bem o que vivia debaixo daquelas águas paradas, sem dragagem há mais de 30 anos. Os tavirenses não são os mais conscientes, muitas vezes "parece que não acertam nos baldes de lixo", embora a empresa municipal vá dando conta do recado, conta..Cidade de brandos costumes.Há 30 anos, nada era como agora. À volta do Gilão, além de casas, tinham morada várias oficinas automóveis e de conserto de embarcações, cujo lixo só tinha um destino: o rio. A consciência ambiental era outra. "Ali está o mal que deixamos, temos noção disso", confessa o surfista João Diniz..Combinamos o encontro na Tasca do Rato, em frente ao rio, e o que começou por ser uma conversa com o tavirense passou a uma mesa cheia de entrevistados, entre entusiastas e entendidos no assunto. João relata a sua infância na cidade, a maior parte passada na Deserta. Nasceu e cresceu no "paraíso", onde tantas vezes foi ver o pai pescar. Nada interessado por esta atividade, permanecia em terra, "a ver o que o mar trazia à costa" - muitas vezes lixo reciclável e reutilizado para outros fins, mas nunca lixo como este, garante. O lixo que deu à costa é urbano, o mesmo que durante anos os moradores atiravam ao rio sem qualquer consciência das consequências que teria para o ambiente. "Todos sabíamos que não era seguro mergulhar neste rio.".Nas imagens, pode ver-se o lixo recolhido por João, em 2018, que chegou à costa como resultado de um levante. Do lado direito, está o que este ano ali desaguou, também fruto do mesmo fenómeno. Deslize para ver a diferença..Jorge Corvo, membro da Assembleia Municipal de Tavira, conta como "há muitos anos os esgotos iam para o Gilão". Isto num tempo em que "a educação ambiental dos residentes não estava fomentada". Foi Jorge o primeiro a denunciar a situação que se verificou no areal da ilha Deserta. Durante meses, partilhou fotografias do estado da ilha nas redes sociais e levou o tema até à câmara municipal, até agora sem sucesso..Também João Diniz registou nas redes sociais a maré de lixo que deu à costa na zona onde tantas vezes vai surfar. Num dia, estava em cima da prancha a olhar o mar límpido. No outro, a água estava "preta" e o lixo dava-lhe "pelos joelhos". Nunca questionou que se tratava do material dragado do rio Gilão. Todos os anos, recolhe o lixo que chega à costa pela força das marés provocadas pelo vento levante. Normalmente, é plástico limpo, com validade recente, e artes de pesca. Desta vez, além do lodo que envolvia os objetos, João registou caixas de margarina datadas dos anos 70, eletrodomésticos partidos, rodas de bicicleta, brinquedos, pneus, entre outros..Docapesca nega qualquer culpa.Face às denúncias dos residentes, a Docapesca negou que aquele lixo fosse resultante da dragagem que realizou entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano. Contactada pelo DN, a empresa disse "não existirem evidências de qualquer deposição de resíduos no local"..Confirma que "o destino final dos dragados foi a deposição ao largo da praia de Cabanas-Mar, de acordo com as orientações da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e parecer positivo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF)". Ambas as entidades preveem que os sedimentos dragados de classe I (como foram avaliados os recolhidos no rio Gilão), considerados não tóxicos, possam ser depositados em meio aquático ou utilizados para alimentação de praias..A Docapesca adianta ainda que o material foi anteriormente submetido a uma triagem, para que os objetos de maior dimensão não fossem parar ao mar. A verificar-se esta triagem, não poderia de facto ter passado o lixo urbano de dimensões consideráveis, e envolvido em lodo, que apareceu na praia..Na mesma mesa em que se sentava João Diniz e Jorge Corvo encontrava-se também uma arqueóloga subaquática (cuja identidade preferiu manter anónima) que esteve envolvida numa fase preliminar do processo de dragagem no Gilão. "Maria" conta que foi chamada pela autarquia como especialista para mergulhar no rio e perceber o que se encontrava no fundo do mesmo. "A todas as obras portuárias precede o caderno de encargos e esse tem uma série de trâmites legais, em que têm de ser chamados especialistas em geologia, que fazem as sondagens geológicas, especialistas em ambiente que fazem a avaliação do tipo de sedimento e se esse pode ir para mar ou deve ir para aterro", explica..Quando mergulhou, "Maria" verificou que o que se encontrava no fundo do rio Gilão era lixo urbano, idêntico ao que deu à costa da Deserta. Mas o seu trabalho não exigia que elaborasse um relatório oficial. A informação ficou com ela apenas. Mesmo quando, numa fase inicial, detetou "um erro". E não era um erro qualquer..O relatório preliminar elaborado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) "definia os dragados como sendo de classe I" (ao nível da toxicidade), mas o lixo que ali caiu, e que a especialista viu com os próprios olhos, fê-la duvidar de que esta classificação estivesse certa..Não só por causa do que viu, mas também porque é de conhecimento geral que durante anos a população de Tavira escoou os seus esgotos neste ramal hídrico, poluindo o rio. Além disso, a lixeira depositada no fundo do rio proveniente das oficinas em redor muito provavelmente tinha metais pesados - como chumbo, cádmio e arsénio, usados em baterias, eletrodomésticos, entre outros objetos domésticos ou de metalúrgica..E "Maria" levanta ainda outra suspeita sobre as razões por detrás desta questão da classificação dos resíduos: "Fica baratíssimo classificar como classe I. Um camião de carga normal, não contaminada, pode ficar à volta de três mil euros e uma carga contaminada 30 mil euros. Depois de retirarem tudo do rio, teria de ser tudo levado para aterro. E isto fica muito caro.".Crime ou "atentado ambiental"?.Francisco Ferreira, presidente da associação ambiental Zero, prefere ser cauteloso. Para o ambientalista, "é possível que aquele lixo nem estivesse contaminado", dando razão ao parecer positivo da APA, mas "a forma como foi depositado" fá-lo acreditar que "houve sem dúvida uma negligência" da Docapesca. "Não sei se configura um crime, em termos legais, mas é um atentado ambiental", sublinha. Principalmente porque o lixo dado à costa acontece "num ecossistema muito sensível, o da ria Formosa"..Por outro lado, Ana Cristina Figueiredo, jurista e fundadora da Zero, não tem dúvidas de que se trata de um crime ambiental. Não se lembra de "ver um caso com esta dimensão". Desconhecia que as "imagens aterradoras" que tem visto nas redes sociais poderiam decorrer de uma operação de dragagem e garante que tal "contraria princípios essenciais ambientais". "Mesmo que não seja material tóxico, até porque isso será bastante discutível, inócuo não será. Salta à vista e é empírico que inócuos não são", sublinha..Quanto à lei, recorda que há princípios genéricos de proibição de poluição, "quando suscetível de colocar em perigo a saúde pública e outros valores ambientalmente relevantes", mas também uma Lei de Bases do Ambiente que penaliza estas ações. De acordo com o artigo 21.º desta legislação, "são causas de poluição do ambiente todas as substâncias e radiações lançadas no ar, na água, no solo e no subsolo que alterem, temporária ou irreversivelmente, a sua qualidade ou interfiram na sua normal conservação ou evolução". A mesma lei contempla "o dever de o proteger, de o preservar e de o respeitar, de forma a assegurar o desenvolvimento sustentável"..Dias depois de as queixas terem chegado à Docapesca, a entidade delega numa equipa de mergulhadores a missão de fotografar o fundo do troço onde foram depositados os dragados. Neste relatório, mostram imagens subaquáticas de um fundo de areia branca limpa, sem lixo, à exceção de um pedaço de vaso e de um isqueiro..Ainda no passado sábado, a mesma empresa procedeu à conclusão da limpeza do areal, iniciada por moradores e, numa fase posterior, pela própria autarquia..A estratégia do presidente da Câmara Municipal de Tavira prefere não debater muito o assunto. A estratégia do autarca tem sido mesmo esta: "Falar pouco, agir mais", justifica. Jorge Botelho diz que não considerou "nada estranho" o relatório que classificava os sedimentos do fundo do rio como não contaminados e acrescenta que "é preciso confiar na competência das entidades". "Não tenho de questionar um relatório técnico", reitera, embora diga não ter também intenção de "minorar a situação"..Garante que nada neste processo, a não ser o aval para as obras, passou pela autarquia. É a Docapesca que tem jurisdição sobre este tema. Depois das denúncias dos moradores sobre o lixo, pediu a uma equipa para o limpar. Admite que aquele material não estava no seu devido lugar e espera que tal "sirva de exemplo" em futuras intervenções..O algarvio João Diniz não desiste de tentar encontrar o verdadeiro responsável e lançou uma petição online , que já ultrapassa as duas mil assinaturas. Quer que a discussão chegue à Assembleia da República..Destruição da atividade piscatória.Neste mar, que há semanas trouxe à costa uma maré de lixo, navega muitas vezes Duarte Fonseca, pescador há 22 anos. O tavirense não tem dúvidas de que há aqui um crime a vários níveis. Primeiro porque "o local onde foram depositados os dragados não é o mais indicado para colocar seja o que for", areias ou resíduos, "pois trata-se de um sítio muito perto de uma barra já de si muito assoreada e que é um perigo para a navegação, mesmo com uma ondulação fraca"..Também o seu meio de sustento sai prejudicado. Segundo Duarte, quando a APA validou o local onde poderiam ser depositados os dragados, "não tomou em conta que aquele sítio é um dos melhores pesqueiros de bivalves, nomeadamente conquilha e amêijoa da areia" e, por isso, "o local de trabalho de muitas embarcações da arte da ganchorra e do tresmalho para o choco". O DN contactou a APA, que não respondeu em tempo útil..As limpezas no areal até podem ter dado ao cenário negro o aspeto que sempre teve, mas os moradores acreditam que bastará um novo levante para que seja necessário intervir mais uma vez. Todos temem este momento. Enrugam a expressão, quase nos fazendo adivinhar o desespero pelo que aí virá. O pescador acredita mesmo que "aquilo que dá à costa é só a ponta do icebergue do problema dos plásticos no mar", pois hoje em dia já passa mais tempo a limpar as redes do barco, cheias de lixo, do que a apanhar peixe.