Lembram-se do cartoon da tenista Serena Williams a fazer uma birra, como se fosse uma criança, saltando em cima da raqueta e com uma chucha caída ao seu lado? Rapidamente surgiram acusações de que o seu autor, o cartoonista australiano Mark Knight, estava a ser racista uma vez que recorria ao estereotipo de representação dos negros. No entanto, depois de toda a polémica, esta segunda-feira o Australian Press Council deu um parecer no qual afirma que a imagem satírica publicada em setembro passado não violou os padrões da imprensa australiana, ao ilustrar a "birra no court" na final do Open dos Estados Unidos "usando sátira, caricatura, exagero e humor"..Mas a discussão não termina aqui. No início do ano, na edição que assinalava os quatro anos do atentado na redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, o cartoonista Riss admitia que "a situação piorou bastante desde 2015. A hostilidade já não vem apenas dos extremistas religiosos, mas também dos intelectuais", escreveu no editorial. "Tudo se tornou blasfemo." Como ele, outros se têm queixado da "ditadura" do politicamente correto. Existem limites para a liberdade de expressão? E estão os cartoonistas mais sujeitos a este policiamento do que outros artistas?."Sempre houve assuntos melindrosos, que nos fazem pensar duas vezes", diz o ilustrador André Carrilho. "Em Portugal, por exemplo, era a Igreja Católica. Há aquele cartoon conhecido do António, que pôs um preservativo no nariz do Papa, o assunto até chegou à Assembleia da República. O que acontece é que as sociedades vão evoluindo e os assuntos vão mudando. Se calhar esse cartoon hoje já não seria tão polémico", diz o ilustrador André Carrilho..E tem razão. Em 1993, o cartoon de António deu origem a um abaixo-assinado com 28 mil assinaturas e foi, de facto, discutido no Parlamento. Em 2009, António fez um novo cartoon para o Expresso em que o Papa tinha um preservativo enfiado na cabeça toda e já não houve polémica, apenas duas cartas enviadas de leitores incomodados..Uma questão de "boa educação"."Eu acho que há uma confusão enorme sobre o que é o politicamente correto", começa por dizer Hugo van der Ding. "O politicamente correto tem sido usado, sobretudo pela extrema-direita, como se fosse um policiamento doentio daquilo que se pode dizer. E essa ideia tem passado, é isso que as pessoas julgam que é." Mas não é isso, defende o autor de tiras humorísticas. "O politicamente correto é um conjunto de normas que protegem as pessoas que historicamente têm sido menos protegidas. As pessoas queixam-se: ah, agora já não se pode fazer piadas sobre negros ou sobre homossexuais? E o que eu posso responder é: sim, antes fazia-se mas agora já não se pode. Antes fazíamos mal, agora estamos a fazer o correto." E recorda uma definição que ouviu a Miguel Esteves Cardoso: "O politicamente correto é apenas aquilo a que antes chamávamos boa educação.".Portanto, apesar de ter um humor muito corrosivo, Hugo van der Ding não sente que o politicamente correto seja uma limitação. Aliás, considera que o seu trabalho é politicamente correto e que isso é positivo: "Porque é que se há de fazer piadas com os que são mais frágeis? Eu gosto é de fazer piadas que atacam o status quo, que gozam com os mais fortes e poderosos.".No caso concreto do cartoon de Serena Williams, Van der Ding diz: "Antes de sermos artistas ou cartoonistas somos pessoas. E pomos naquilo que fazemos aquilo que somos. Acredito que ele não estava a ser racista, não o fez intencionalmente. Mas a verdade é que nós, por sermos brancos, temos de ter cuidado com estes assuntos que são muito sensíveis. E se as pessoas negras nos dizem que isto é racismo, então temos de aceitar isso. Historicamente estamos agora pela primeira vez a receber o feedback do outro lado, que nesse caso são os negros, e são eles os 'especialistas' sobre se alguma coisa é ou não racista. Independentemente da intenção original ser ou não racista. Já não é aos brancos que cabe decidir se uma coisa é racista ou não. Nós, como brancos e privilegiados, temos de estar mais atentos a estas subtilezas que nem sempre são óbvias para nós."."Insuportavelmente castrador".Opinião bem diferente tem o ilustrador Nuno Saraiva: "O politicamente correto é insuportavelmente castrador. Ainda por cima porque não existe um politicamente correto mas vários. O politicamente correto do Dubai é diferente do de Madrid ou de Moscovo. Tem que ver com as pessoas, com as culturas." Portanto, é impossível ser "politicamente correto", conclui..Quando faz cartoons para o Inimigo Público, Nuno Saraiva não só tem liberdade total como recebe exatamente o incentivo contrário: "Dizem-me para não ser tão dócil", ri-se. "Já nas ilustrações para entidades mais institucionais já me chamaram a atenção, por exemplo, pela forma como desenho as mulheres, demasiado despidas. Mas eu também desenho homens muito sexuais, com músculos salientes, pouca roupa e muito pouco pudicos e nunca ninguém me disse nada", conta, para mostrar como as regras do politicamente correto não são assim tão claras. Também já lhe pediram para tornar os "negros mais caucasianos" nos seus desenhos: "Isso é algo que me aflige porque isso, sim, é uma atitude racista.".E conclui: "Eu não acho que a representação de Serena Williams seja racista, se existe um elemento racista naquele cartoon está precisamente na representação demasiado caucasiana da adversária, que é japonesa. Se eu alguma vez desenhasse a Serena Williams iria desenhá-la assim porque é assim que eu a vejo: é uma grande atleta mas é feia e birrenta. Acho até que está muito bem apanhada.".Os perigos da internet.Na opinião de André Carrilho, que trabalha para várias publicações norte-americanas, "os EUA são mais sensíveis à representação dos afro-americanos porque têm uma história de esclavagismo. Há uma série de assuntos que foram silenciados durante muito tempo e que agora estão a ser falados. É uma purga que é preciso ser feita. Mas, por outro lado, acho que os EUA são dos países com mais liberdade de expressão, todos os dias há programas de humor e cartoons que criticam o governo. É um país de contradições"..O cartoonista do DN acredita que o humor "é sempre um lugar onde se exprimem discordâncias e testam os limites do que é aceitável. E é, por excelência, um sítio de liberdade". Mas sente que hoje em dia a grande ameaça a essa liberdade não é o politicamente correto mas antes as reações exageradas ao humor: "Eu percebo que a Serena Williams não goste do cartoon e até que se sinta ofendida. Está no seu direito. Mas também acho que não podem condenar o autor do cartoon por isso, quase querem acabar com a carreira dele. Acho que a internet por vezes serve como arma de lançamento de coisas que na verdade não são assim tão graves, há uma matilha de linchamento. No caso da Serena Williams, acho que ele foi infeliz mas não acho que tenha sido por racismo. Mas hoje em dia as consequências de um erro podem ser muito graves. E os artistas têm o direito de errar. Se não é permitido as pessoas errarem e aprenderem com o erro, então não conseguimos ter liberdade."