Numa das fotografias evoca-se a Central Térmica da Areia Preta, em Macau, bombardeada pelos americanos durante a Segunda Guerra Mundial e desativada em 2015. Noutra, fala-se do tráfico de cules (trabalhadores locais, quando Macau era uma colónia). Há uma fotografia que nos fala da importância do jogo na sociedade macaense. Outra explica o Ano do Cão. O passado está constantemente a ser revisitado nas obras - fotografia, vídeo e instalação - de YiiMa, a dupla macaense que se apresenta aos portugueses na exposição (Des)Construção da Memória, patente até 9 de fevereiro no Museu Berardo, em Lisboa. YiiMa são Ung Vai Meng e Chan Hin Io..Ung Vai Meng nasceu em Macau, onde estudou Desenho e Aguarela com o pintor Kam Cheong Ling. Em 1991, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e do Instituto Cultural de Macau, Ung Vai Meng estudou no Ar.Co, em Lisboa, regressando depois a Macau. A par da sua carreira artística, é professor e foi diretor do Museu de Macau e presidente do Instituto Cultural do Governo da Região Administrativa Especial de Macau..Chan Hin Io é natural de Zhongshan, província de Guangdong, na China. Depois de se mudar para Macau, em 1999, começou a fazer trabalhos fotográficos, registando as mudanças na cidade. Atualmente, é diretor da Galeria de Imagens de Macau da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau.."Eles são chineses e a cultura chinesa é predominante no Ung Vai Meng (que nasceu em Macau, fala português e conhece Portugal) e é exclusiva no Chan Hin Io, que nasceu na China continental e só fala chinês. Só recentemente visitou Portugal", explica João Miguel Barros, o curador desta exposição. "Os artistas têm uma grande cumplicidade no trabalho, nos ideais e na forma da sua produção. De tal modo que eles quiseram apresentar-se sob o nome YiiMa, em vez de colocarem os seus nomes na primeira linha." Começaram a trabalhar mais juntos em 2017 e a sua intenção é estar em "permanente ação, observando e registando a evolução da cidade, em todas as suas vertentes, e das suas dinâmicas". Sobre o nome escolhido para coletivo, YiiMa, os artistas dizem que significa "irmãos gémeos". Os dois "ii" de YiiMa são os dois irmãos gémeos. E "Ma" são as iniciais de Macau..Oriente e ocidente em diálogo.O cruzamento das culturas oriental e ocidental no território, assim como a preservação da memória, do património e da cultura estão no centro do trabalho de YiiMa. "Macau tem tradição na preservação do património cultural. Não é uma postura nova", explica o curador. Na verdade, diz, essa preocupação vem do tempo da administração portuguesa de Macau e foi depois assumida pelas autoridades de Macau e também do governo central de Pequim. "Há uma série de lugares, monumentos e tradições classificadas pela UNESCO e a opinião pública leva muito a sério esta situação. Mas a atitude das autoridades, para além de preocupações genuínas de índole cultural, encerra também uma componente pragmática e política: é o património e a forma de vida herdada que distingue Macau de outras cidades chinesas. E isso é um elemento crucial para a garantia da implementação da política 'Um país, dois sistemas'", explica João Miguel Barros..No entanto, o curador, que conhece bem o território onde vive há 32 anos, acredita que "o modo de vida secular de matriz portuguesa que deu origem a um modo de vida próprio e típico de Macau se vai diluindo e tenderá a perder-se". E justifica: "Há já sinais evidentes de uma sobreposição do modo de vida chinês, que é predominante na governação e nas estruturas públicas, e o tempo irá intensificar essa inevitabilidade. Acredito (mas isso sou eu a pensar não obstante o meu otimismo preocupado) que o modo de vida chinês tomará conta da sociedade civil, mesmo antes de terminar o período de transação de 50 previsto no acordo assinado entre Portugal e a China.".No trabalho de YiiMa, as duas culturas ainda estão muito entrecruzadas e a preocupação com a memória é notória. Num momento em que se assinalam vinte anos da transição de Macau para a Região Administrativa Especial da República Popular da China (a 20 de dezembro de 1999), este trabalho reveste-se de um significado ainda mais especial. "Existe uma grande tendência para a globalização, por isso, a perda da memória coletiva e o desmemoriamento são inevitáveis. Macau é apenas um dos exemplos evidentes", diz Ung Vai Meng numa entrevista publicada no catálogo da exposição. Chan Hin Io completa: "Hoje em dia, vivemos numa fase de um célere desenvolvimento económico e em que muitas coisas estão a desaparecer, silenciosamente, ou a tornar-se apenas uma memória coletiva. Isto é uma realidade inevitável. Tanto a fotografia como a produção artística são formas modernas e construtivas de registo. Como artistas, esperamos, através da nossa ação, assumir a nossa responsabilidade perante a sociedade.".Os dois artistas foram desenvolvendo, ao longo dos anos, "um trabalho silencioso, no sentido de documentar as transformações sociais e urbanas da cidade e aproveitando essas mudanças, por vezes significativas e violentas, deixando a sua marca artística nos diversos momentos em que a mutação era mais evidente. Não se limitaram a um trabalho de catalogação e documentação, que também têm feito, com a recolha de vestígios e documentos de todas estas fases". Isto é particularmente visível na série de fotografias dedicadas às casas das famílias mais tradicionais e às lojas da Rua dos Mercadores que, entretanto, têm vindo a encerrar a sua atividade.."Eles foram mais além. Bastante mais: intervieram artisticamente nesse processo de mudança. Mas foram fazendo este trabalho com uma enorme privacidade, sem a presença ou testemunho de mais ninguém, com raras exceções", sublinha o curador. O processo de trabalho é singular, geralmente só os dois: cada fotografia é o resultado de uma performance. "Os artistas encenam o lugar e o modo como o querem ver representado", explica João Miguel Borges. "E constroem a cena em frente de uma máquina fotográfica, colocada num tripé, que está programada para ir tirando continuamente fotografias a tempos predeterminados." Ou seja, são os dois artistas que aparecem na maioria das fotografias aqui expostas. Uma das imagens, Mãe Amorosa, centra-se na figura da mãe de Chan Hin Io (e aparecem também as duas irmãs do artista) e há duas imagens com o pai de Ung Vai Meng..Preservar a memória.Todas as fotografias são acompanhadas de uma extensa legenda que explica o contexto da imagem e os vários símbolos representados. Para eles, os símbolos (números, flores, tatuagens, velas, máscaras, as pedras, a areia, as árvores, etc.) são muito importantes. "O símbolo dentro da cena está em todo o lado", diz o curador. "O símbolo é uma metáfora para um segredo, um voto, um certo relacionamento, um desejo, uma jornada, um momento de pensamento, uma pilha de mentiras, uma farsa...".Como diz Ung Vai Meng: "Macau é um local onde as culturas chinesa e ocidental se fundem, sendo evidente a existência de uma diversidade cultural. Temos como objetivo atingir uma linguagem artística mais ampla e legítima para expressar o nosso pensamento. Por isso, durante este processo, recorremos à simbologia, a qual desempenha um papel muito importante na nossa criação artística." E Chan Hin Io acrescenta: "Desde o século XVI que em Macau, uma das primeiras cidades do Extremo Oriente onde também habitavam europeus, existia uma fusão clara entre as culturas chinesa e ocidental. Isso perdurou ao longo dos tempos. Nos dias de hoje continua a haver marcas dessa fusão na política, economia, cultura, vida dos residentes, etc... Por isso, a nossa inspiração vem do resultado desse background vivencial.".A simbologia está também muito presente na montagem da própria exposição, que está dividida em quatro salas. A primeira sala, em vermelho (que representa o fogo), é dedicada à memória. É nessa sala que estão as fotografias sobre património (por exemplo, aquela sobre a fonte de São Francisco de Assis que já foi demolida)..A segunda sala, em verde (que representa a natureza e a pureza), é dedicada ao ritualismo e tem como tema principal o bambu e o seu uso nas culturas oriental e ocidental. Aqui podemos ver a imagem Adro de Igreja, onde os dois artistas aparecem sentados numa igreja católica em recuperação, com os interiores cobertos de andaimes de bambus. A frase introdutória é a seguinte: "A Igreja ocidental tolera a moldura de bambu do oriente? A estrutura de bambu oriental suporta o adro religioso do ocidente?" No centro desta está a instalação Pavilhão de Culto, que foi inspirada na cúpula octogonal do Mosteiro da Batalha. Em cima de jornais portugueses e chineses (que simbolizam o conhecimento e o diálogo entre culturas) está um corpo com a cabeça dividida ao meio. Este trabalho é uma homenagem ao poeta Luiz de Camões e ao dramaturgo chinês Tang Xianzu. Os dois foram contemporâneos e viveram uma época de grandes dificuldades. Daí o corpo cravado de flechas de bambu, com as linhas vermelhas a simbolizar o sangue do sofrimento porque passaram..A terceira sala é preta (na cultura tradicional chinesa a água é representada pelo preto e não pelo azul) e é dedicada à leveza. Aqui se apresentam dois vídeos. A quarta sala, amarela (a cor do imperador, representa o poder, a autoridade e a prosperidade), é dedicada às cerimónias e aos rituais. Finalmente, a última sala, branca (a pureza), é dedicada ao paraíso. É nesta sala que temos as imagens nas casas de famílias, lojas e outros locais tradicionais de Macau.."Os trabalhos apresentados nesta exposição talvez não correspondam exatamente à ideia que os visitantes têm de Macau", adverte os textos dos artistas publicados na folha de sala, distribuída aos visitantes da exposição. "No entanto, em todas as cenas registadas cada detalhe e elemento é específico e autêntico. O que torna os trabalhos ainda mais significativos é o facto de muitas das imagens apresentadas revelarem lugares que já não existem ou que foram destruídos após a realização dos projetos. (...) Esses lugares são agora parte da nossa memória coletiva. O trabalho tem em vista recuperar um Macau que vai deixando de existir.". Exposição (Des)Construção da Memória De: YiiMa Museu Berardo, CCB, Lisboa Até 9 de fevereiro de 2020 Entrada: 5 euros Entrada gratuita ao sábado