A primeira vez que ouvimos falar de Paulo Duarte ele já era "o comissário de bordo que decidiu ser padre". A história foi contada na Notícias Magazineem agosto de 2014, pouco depois da sua ordenação, e desde então o padre Paulo Duarte já perdeu a conta às vezes em que contou nos jornais, na televisão, na rádio, em encontros diversos, como é que decidiu mudar de vida, deixando a companhia aérea Portugália para se juntar à Companhia de Jesus. Esta é a sua viagem. Continua a servir os outros mas agora de uma maneira muito mais significativa: "Estou aqui para ajudar as pessoas a descobrir a profundidade do amor por elas próprias, porque, não tenho dúvidas, isso vai inevitavelmente levar a um amor ao próximo." Esse é o seu objetivo primeiro. Só depois, poderá ajudar alguém a encontrar-se com o amor de Deus..Hoje, Paulo Duarte já não é só o padre que foi comissário de bordo. É também o padre que teve aulas de dança contemporânea e que fez uma tese de mestrado intitulada Pistas para um estudo teológico da dança e do corpo. Que orienta retiros para padres onde procura ligar o corpo e a oração. É o padre que usa as redes sociais, publica selfies sorridentes no Instagram e responde às mensagens que recebe, até mesmo de desconhecidos. Que ainda esta semana esteve no Programa da Cristina, na SIC, e no As Três da Manhã, na Rádio Renascença. Que insiste que para ser padre não tem de ser sério nem chato, antes pelo contrário, até porque Deus é alegria..E é também o padre que escreveu dois livros, o último deles, Rezar a Vida, acabou de ser lançado: "Para pensarmos um bocadinho nesta experiência da fé no nosso dia-a-dia", explica. No livro propõe pequenas reflexões sobre temas do quotidiano, como as relações, o divórcio, o corpo, o medo ou a psicoterapia..Mudar de vida: ser padre.Paulo Duarte tem 40 anos e nasceu em Portimão, no Algarve. Os seus pais não eram especialmente religiosos e ele cresceu como uma criança tímida e quieta, que gostava mais de ler do que jogar à bola. Aos 15 anos, após a morte de uma amiga, acabou por procurar algum conforto e a resposta a uma série de dúvidas na religião, integrou um grupo de jovens, fez a primeira comunhão, a profissão de fé, o crisma. Mas estava muito longe de pensar dedicar a sua vida à religião. Pelo contrário. Tinha inúmeras atividades, amigos, o mundo à sua espera..Mas faltava-lhe alguma coisa. "Andei nas meditações da lua cheia, na cristaloterapia, andava à procura de alguma coisa. Ainda hoje sou um buscador", conta. Lembra-se de um dia, quando estava a estudar na faculdade, em Lisboa, ter visto um sem-abrigo numa rua e de se sentir particularmente tocado. "Senti uma dor física e comecei a questionar-me: onde estão os outros na minha vida?" Essa procura levou-o até ao CUPAV - Centro Universitário Padre António Vieira, onde tomou contacto com os jesuítas. Tornou-se comissário de bordo na Portugália e era feliz. Mas no tempo livre fez uma peregrinação a caminhar e depois outra a dar apoio, a ajudar os outros. A felicidade que sentiu era "uma coisa nova" e fê-lo pensar.."Fiz o meu discernimento, que é um processo composto por vários exercícios espirituais propostos por santo Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas, que nos ajudam a perceber qual a vontade de Deus numa decisão que temos de tomar", conta Paulo Duarte. Fez um primeiro exercício de três dias e depois um outro de uma semana e, ao longo de um ano meio, foi acompanhado por uma padre que lhe ia colocando dúvidas e propondo reflexões. "Temos de ter a certeza da nossa decisão, não pode ser um impulso mas também não podemos ter medo da mudança.".O padre que dança.Com o noviciado, começou a sua nova vida. Dois anos de reclusão, de meditação, de estudo. A avó de Paulo Duarte morreu no dia em que ele fez os votos. Podia ser coincidência. Ele viu-o como um sinal. "A morte e a ressurreição andam sempre juntos", diz. O funeral da avó foi a sua primeira celebração como padre jesuíta. Depois disso, estudou Filosofia em Braga e Teologia em Madrid e em Paris. Deu aulas num colégio e agora é colaborador da Casa da Torre, uma casa de silêncio e retiro em Soutelo..Pelo meio, começou a fazer psicoterapia e teve aulas de dança clássica, moderna e contemporânea com diferentes professores. Faz tudo parte da viagem de autoconhecimento. "A dança começou como um hobby, um pouco inspirado pelo Saju George, o jesuíta bailarino, mas depois começou a fazer sentido com aquilo que eu estava a estudar", recorda. "Comecei a fazer ligações com a encarnação, o que é isto de Deus que se faz carne, o que é a corporeidade, o que é o ser humano. A nossa espiritualidade evoluiu muito para a razão, a dimensão corporal foi esquecida. Mas não é um 'ou', é um 'e'. Não é uma dualidade, é uma totalidade. Não é ter um corpo, é ser corpo.".A religião católica tem castigado muito o corpo: o corpo do pecado, o corpo da vaidade, o corpo que deixaremos para trás. "Durante séculos, reprimiu-se o corpo, colocando tudo o que fosse sexual no âmbito do pecaminoso, sem se olhar e perceber a beleza do corpo, em especial nas suas dimensões afetiva e sexual", escreve Paulo Duarte naquele que é um dos textos mais extensos do seu livro. "Medo do corpo. Vergonha do corpo. Nojo do corpo. Como resultado: medo de si, vergonha de si, nojo de si." E isto, diz, não faz nenhum sentido. Nem tem nada que ver com aquilo que, do seu ponto de vista, deve ser a religião..Conhece-te a ti mesmo."Muitas pessoas dizem-me que não acreditam em Deus. Se calhar, não acreditam numa determinada visão de Deus - eu meio a brincar também digo: de algumas imagens de Deus também sou ateu. Não consigo acreditar num Deus que maltrata, que controla. Se calhar já acreditei nisso, mas o rezar, o escutar, o estudar, vai-me abrindo perspetivas de encontrar cada vez mais o Deus da vida e da misericórdia.".E explica: "Nós, enquanto sociedade, estamos muito marcados pelo lado negativo da religião, pelas proibições, pelo moralismo. Para muitas pessoas, a religião transformou-se numa coisa negativa, destrutiva. Mas a religião é um convite à ligação mais profundo, é um convite a religar e a reler. Como é que eu posso viver um encontro comigo que me leva a fazer novas relações, novas leituras da minha vida, e quando isso acontece há uma abertura do coração e há uma vida mais plena a acontecer. Que a meu ver é o transcendente, é Deus.".Voltamos ao início. Paulo Duarte não usa batina nem nos manda rezar pais-nossos, dá amplas gargalhadas e quando conversa connosco quase nos esquecemos que estamos a tomar café com um padre. Mas ele nunca se esquece que o é. Pode ser mais descontraído mas não há nada nas suas palavras que contrarie a doutrina da Igreja, nem mesmo quando falamos dos chamados temas fraturantes, como o aborto ou a eutanásia. "Temos de ver cada pessoa como sujeito, não como objeto", resume. A palavra que mais vezes diz é amor. E vida. Cita as escrituras e as muitas leituras que fez, partilha as suas reflexões, conta histórias e diz que cada um deve procurar a sua autenticidade e a sua espiritualidade. É também isso que faz no livro: "Partilho como é que eu próprio vivo, o que é que me inquieta, o que me desafia, isso provoca nas outras pessoas algo. E é muito bonito. Posso ajudar a transformar a vida de alguém ou a relação de alguma pessoa consigo mesmo. É isto que proponho. E é só isso.". Rezar a Vida A experiência da fé no quotidiano Paulo Duarte, SJ Editora Matéria Prima Preço 12,80 euros