Há 103 anos, o dia estava soalheiro. Da varanda da casa construída em pleno areal da praia de São Pedro de Moel, o poeta Afonso Lopes Vieira faz o de sempre: admira o infinito (que às vezes fotografava), inspira-se ali, "onde a terra acaba e o mar começa". Já lhe chegaram relatos do que anda a acontecer em Fátima desde maio, mas um ateu como ele não dá grande importância. Por volta do meio-dia, o fenómeno do Sol - que terá acontecido igualmente na Cova da Iria - há de mudar para sempre a visão que tinha da religião, e até da vida. "Embora eu não tenha encontrado nada escrito por ele em que deixe explícito esse acontecimento e essa mudança, segundo o historiador Costa Brochado, foi o que aconteceu." Quem fala ao DN é Cristina Nobre, que tem dedicado toda a vida académica à obra do poeta. Há até um sobrinho-neto dele que brinca com ela e lhe chama "a viúva de Afonso Lopes Vieira". Cristina diverte-se com o epíteto, embora reconheça que desde a descoberta, no doutoramento, estabeleceu com ele uma ligação eterna: "Eu apaixonei-me por Afonso Lopes Vieira, é verdade.".Cristina Nobre conhecia aquela vista da casa desde bebé. Natural da Marinha Grande, não tem memória de outras férias na infância que não ali, junto à casa-nau (o edifício faz lembrar um barco, como se entrasse pelo mar adentro), o paredão, a capela, a colónia balnear - que ele manda construir para oferecer dias de férias aos filhos dos trabalhadores da região. E o Ave de Fátima escrito em conchas, na parede caiada. Haveriam de passar muitos anos até mergulhar, também ela, no universo que a casa (hoje museu) encerra..É já na idade adulta que a investigadora descobre aquilo que o próprio Santuário de Fátima demorou décadas a divulgar: o servita, autor do Ave de Fátima - o cântico mais conhecido entre os peregrinos - era, afinal, Afonso Lopes Vieira, que optou então pelo anonimato. O Santuário confirma-o em setembro de 1981, quando um rascunho lhe é oferecido por Helena Barradas, afilhada do poeta, e destaca-o na edição da revista cultural Fátima XXI, em 2014. Os versos são de agosto de 1929, numa altura em que ele era já um devoto e, mais do que isso, um servita..Regressemos a 13 de outubro de 1917. O poeta está sozinho na varanda quando se apercebe do "milagre do Sol". Chama a mulher, Helena de Aboim, e os convidados que tinham em casa, para admirarem o fenómeno. Cristina Nobre acredita que poderia bem ser Leonor Rosa (mulher do ator Augusto Rosa) e Raul Lino, o arquiteto que lhe desenhou os cadeirões onde agora conversamos, excecionalmente. Descem ao alpendre e ali ficam a observar o que se está a passar. "A partir dessa altura, ele torna-se crente. Costa Brochado sustenta tudo isso. E há fotografias de Afonso Lopes Vieira a segurar o andor de Nossa Senhora nas procissões, e a dar assistência aos peregrinos, na qualidade de servita"..Em 1929, antes de o culto à Senhora de Fátima ser reconhecido pela Igreja, manda erguer uma capela, junto à casa de São Pedro de Moel, onde residia de maio a novembro. "Consegue que seja o bispo de Leiria-Fátima a inaugurá-la. E é para essa ocasião que escreve o Ave de Fátima. Uma das sobrinhas tocava órgão. Viana da Mota terá escrito o cântico, e haveria alguém a acompanhar com flauta", sustenta Cristina Nobre..Na capela, está em exposição a redação final. Mas na revista de Fátima foi publicado o rascunho inicial. "É ele e não pode ser outro. A capitular era a dele. Atestei-o de uma forma quase científica", acrescenta Cristina Nobre, que fala de um interesse atávico pela vida do poeta. E foi à volta da sua obra que fez doutoramento e pós-doutoramento, uma fotobiografia, e que talvez um dia venha a escrever a biografia. Foi também por causa dele que estudou (já depois do doutoramento) História do Jornalismo, à medida que descobriu nele "uma das primeiras personalidades mediáticas em Portugal: reuni todos os artigos, ensaios, entrevistas que tinham sido redigidos por ele ou sobre ele".."Ele era um homem que passou por várias fases: na juventude, era um contestatário e dizia-se ateu. Alguns teóricos consideram-no anarquista, porque era essa a ideologia dominante entre os contestatários." É verdade que era monárquico, mas Cristina Nobre entende que não há aí incompatibilidade. "Pode ser-se monárquico e ao mesmo tempo contestatário." E seria um revolucionário? "Ele foi amigo do José Relvas, foram colegas em Coimbra. Moraram na mesma república, tal como o Teixeira de Pascoais", conta a investigadora, certa de que a abrangência das amizades era diversa. Por exemplo, com a atriz Amélia Rey Colaço. De resto, as visitas encenadas à casa-museu, que decorrem no verão, em São Pedro de Moel, são à volta dessa relação próxima entre ambos, num trabalho dos atores Miguel Linares e Carolina Santarino.."Mas ele sempre foi amigo de vários diretores de jornais, que lhe pediam artigos ou se valiam da sua extensa rede de contactos." Entre esse rol estaria Eduardo Schwalbach, o jornalista que em 1932 dirigia o DN. Nessa altura, Afonso Lopes Vieira já entrara numa nova fase, a que Cristina Nobre chama de "vitalismo". Dedica-se então a uma outra vertente: "Não vai escrever literatura religiosa, mas sim sobre homens que viveram na fé religiosa, produzindo sobre obra escrita ou vivida. Escreve sobre Santa Teresinha e depois sobre Santo António de Pádua." A convite do DN, recria a viagem de Santo António em Itália. As crónicas são publicadas no jornal, e mais tarde, quando ele regressa, são compiladas em livro..Natural de Leiria, Afonso Lopes Vieira passou também a ser património da Marinha Grande pela estreita ligação a São Pedro de Moel. A presidente da câmara, Cidália Ferreira, faz parte de uma geração que decorava na escola os poemas dele, e sabe da responsabilidade maior "em preservar esse legado", como sublinha ao DN. A casa-museu (criada em 2005) pode apenas ser visitada mediante marcação..Cristina Nobre continua a estudá-lo, sempre. "Se eu fosse alguma coisa, eventualmente seria a filha sonhada por ele, pois teve uma doença em criança que o impediu de ter filhos. Ou a amante - no sentido de quem ama a sua produção. A obra. Li-a, interpretei-a, tive de o compreender. Por isso, Helena de Aboim não teria ciúmes nenhuns."