O título do livro, Génio e Ansiedade, só se compreende com a leitura do subtítulo: Como os judeus mudaram o mundo - 1847-1947. É disso que se trata, desses homens e mulheres que se impuseram nesse século entre séculos devido à importância do seu trabalho. O autor, Norman Lebrecht, justifica esta odisseia intelectual com a seguinte afirmação: "Eles não esperavam ser aceites. Pelo contrário, sabendo que as suas ideias iriam ser rejeitadas, sentiam-se livres para pensar o impensável.".Daí que em mais de 500 páginas arrole muitas das figuras que conhecemos e em que, na maior parte, se esquece a questão da "proveniência" religiosa: Freud, Einstein, Kafka, Sarah Bernhardt, Proust, Marx, entre mais umas dezenas de famosos que Lebrecht encaixa numa espécie de gueto para justificar o mote do volume. Olhando com distanciamento, podia ver-se o volume como propaganda, no entanto o génio do autor, aliado à ansiedade em se libertar de tal rótulo, resulta numa obra não questionável a esse respeito. Nada que obstasse Hitler a enviá-lo para a fogueira nazi noutros tempos..Não se pode deixar de começar por lhe perguntar na entrevista a propósito da tradução em Portugal se só um judeu poderia escrever este livro. "Provavelmente" é o que responde de imediato. Acrescenta: "Contudo, só quem pensou nisto durante metade da vida é que o faria, afinal não é uma proposta fácil e terá sempre de vir do interior do autor. Além disso, é necessário ter um conhecimento do que se poderia chamar de uma "cultura coletiva inconsciente" e do passado dos judeus de forma a perceber certas implicações." Dá um exemplo: "Admiro Freud desde sempre, mas não desconfiava que os princípios da psicanálise teriam algo em comum com explicações que estão no texto da Bíblia. Quando os ponho lado a lado, confirmo isso. Freud recusaria esse legado da cultura judia e diria que não era verdade, mas creio que desconhecia certos princípios que existem na Bíblia em que sustento a minha opinião e tê-lo-á feito de forma inconsciente.".Génio e Ansiedade não é o tipo de livros que Norman Lebrecht tenha escrito ao longo da vida e que lhe deram sucesso mundial, pois a dúzia de edições já publicadas são mais na área da música clássica e só três dos mais recentes são romances. Esta viragem foi uma decisão tardia mas consciente, diz: "Quando entrei nos 60 prometi que só iria escrever livros que estivessem na minha cabeça há muito tempo. Foi o caso de Porquê Mahler?, em que descrevo as razões por que é considerado importante nos nossos dias enquanto no seu tempo de vida foi menos valorizado. Foi assim que cheguei a esta investigação, ao reparar que desde metade do século XIX e o mesmo período do XX existiam dezenas de indivíduos que mudaram a forma como se via o mundo e que permitiram viver como se o faz atualmente. Ao fazer as contas vi que metade eram judeus e perguntei: como é possível se são uma percentagem ínfima da população mundial? O que une Marx, Sarah Bernhardt e Einstein neste século?".Encontrar as personalidades da lista final que preenchem os capítulos obrigaram Lebrecht a fugir aos suspeitos do costume, como os que acaba de referir: "O grande problema foi excluir nomes e encontrar um equilíbrio entre os mais famosos e os completamente esquecidos, apesar de o seu trabalho ter os efeitos que destaco. É o caso de quem possibilitou as transfusões de sangue ao descobrir que existiam diferentes tipos de sangue e que é completamente ignorado até por especialistas: Karl Landsteiner. É certo que se converteu ao cristianismo, mas decerto que no seu inconsciente existiam várias narrativas inscritas no Talmude que referem que o sangue não é igual em todas os seres humanos.".Para Norman Lebrecht era preciso interromper o livro num ano e escolheu o de 1947. Primeira razão: "Tinha de parar em algum ano!" Segunda razão: "1948 foi o ano em que tem início o Estado de Israel e é tanto o fim de uma história como o princípio de outra. Os judeus deixaram de estar como nos anteriores dois mil anos e começaram um novo capítulo." Admite: "Poderia ter continuado pois houve vários contributos de judeus para a civilização até aos dias de hoje, contudo a concentração, que é o propósito do livro, seria difícil de encontrar.".Citaçãocitacao"Para alguém que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, posso dizer que nunca vi durante a maior parte da minha vida tanto antissemitismo como nos últimos sete anos.".A data de início, 1847, foi devido à publicação do Manifesto Comunista por Karl Marx: "Foi fácil, mesmo que a maioria dos historiadores optasse pelo ano seguinte, de várias revoluções." Questiona-se a escolha de Marx porque, refere no livro, "via-se a si próprio como um falhanço". Teriam na sua época noção do trabalho feito? Concorda, ressalvando a herança judia: "Alguns deles sim, mesmo que Marx negasse em público qualquer ligação ao judaísmo, até atacava os judeus como sendo a fonte do capitalismo, mas sabe-se que em cartas às filhas pedia-lhes para quando se dirigiam aos trabalhadores, como muitos eram judeus, dizerem-lhes que eram comunistas e judias.".Uma afirmação inicial no livro descreve muitas destas figuras com a faculdade de "pensarem rápido". O que significa? "Eles trabalhavam sob uma grande ansiedade por serem judeus e não terem segurança no emprego, poderem ser expulsos e até mesmo mortos. O génio neste tempo é temperado por ameaças e sabiam que estavam vivos devido à graça de Deus", explica..Para defender a tese do livro, Lebrecht recupera ataques a judeus, como o de Wagner a Mendelssohn: "Sim, Wagner foi o primeiro indivíduo que quis a legitimação cultural antissemita. É um grande compositor, mas detestava judeus e queria que fossem removidos da civilização europeia, o que era um passo para chegar ao que Hitler fez. Não creio que eu o faça como ataque, é apenas a descrição de como era e do que Mendelssohn sofreu.".Génio e Ansiedade não escapa ao regresso de um antissemitismo muito forte nos dias que correm e Lebrecht prefere dar um testemunho pessoal: "Para alguém que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, posso dizer que nunca vi durante a maior parte da minha vida tanto antissemitismo como nos últimos sete anos. É uma situação que parece impossível após o Holocausto a de alguém manter este tipo de comportamento, mas regressou. Essa foi uma sombra sobre mim enquanto escrevia e fez-me lembrar o que teriam sentido Mendelssohn e Mahler, por exemplo, criando em mim uma grande afinidade para com eles. Felizmente, em Portugal isso não se vê, também por os judeus serem minoria.".Ao referir essa sombra, questiona-se Lebrecht porque quase passa ao lado do Holocausto no livro? "Tenho um capítulo que trata do Holocausto, no entanto este é um assunto demasiado grande para um livro deste género - já o tratei num romance - e distorceria a temática. Olho apenas para a questão teológica de onde estava Deus em Auschwitz e de como cada judeu interpretou a sua existência ou não existência durante esse tempo terrível", explica..Para Norman Lebrecht, essa foi uma situação que moldou os milhões de judeus que sobreviveram: "Mais do que moldar, fez desaparecer muitos valores. Um dia em conversa com um amigo do mundo da música, ele disse-me que faltavam novos violinistas nas orquestras porque duas gerações tinha desaparecido em Auschwitz e quase eliminado a grande tradição de violinistas entre os judeus. Tal como se matou ainda em criança futuros médicos, cientistas, pensadores.".Será que a versão final do livro foi a que Lebrecht imaginava? "Não, fui conduzido para direções inesperadas e em Einstein, por exemplo, foi difícil encontrar o foco." Se tivesse de eleger uma destas personalidades qual seria? "Teria muito para conversar com Mahler e queria conhecer melhor Modigliani. Ou Max Brod, de quem vivi perto e não conversei sobre Kafka - de que me arrependo muito.".Génio e Ansiedade.Norman Lebrecht.Bertrand Editora.567 páginas. Uma História da Leitura, de Alberto Manguel, foi editado no fim do ano passado em Portugal, como que a registar a sua transferência para o nosso país, alteração na sua vida que o autor refere na nova introdução exaustivamente e que, por ser um tempo em que os livros estão confinados por lei, é importante. Aliás, a biblioteca que Manguel traz para Lisboa ainda está em muito encaixotada, situação que numa segunda introdução poderá servir para um paralelo com o recente fecho das livrarias efetuado a nível oficial - até nas grandes superfícies. E se o livro recentemente lançado data do final do segundo milénio, 1998, ainda vai a tempo de ser oferecido a quem não lê ou não dá importância a esta tão antiga forma de conhecimento humano..É muito sobre o valor do livro que Uma História da Leitura trata, bem como do quanto se aprende e ensina através desta invenção que foi passada das tabuinhas de argila para papiros, peles e volumes que anteciparam o que nos últimos séculos o leitor pode ter em mãos para que tudo lhe aconteça sem sair do lugar. Conta Manguel que tinha 4 anos quando descobriu que conseguia ler, relata depois que as letras dos livros se replicaram num cartaz e soube melhor o que representavam. Seguiu-se uma fase: "Cada livro era um mundo em si mesmo." A encaminhar-se para o fim das mais de quatrocentas páginas desta história, Manguel tem um capítulo intitulado "Leituras proibidas", onde recorda que o general Pinochet interditou o Dom Quixote no Chile porque o "livro advogava a liberdade individual e atacava a autoridade convencional". A História da Leitura, felizmente, não tem fim" diz na última frase deste livro..Uma História da Leitura.Alberto Manguel.Editora Tinta da China.Um ano após morrer, 2017, o romance de William Melvin Kelley foi de novo um sucesso, tanto assim que chega agora ao mundo literário português. Intitulado Um Tambor Diferente, foi o seu primeiro trabalho publicado e o maior sucesso entre a meia dúzia de títulos que viram a luz do dia..Na capa da edição nacional está uma citação da The New Yorker: "O gigante perdido da literatura americana". É forte, mas o artigo que está na base desta caracterização também não se fica por menos e a grande pergunta da autora, Kathryn Schulz, é "Como é que ele desapareceu?" Confessa que "tal como milhões de americanos" desconhecia quem era William Kelley até ter encontrado este seu livro numa espécie de alfarrabista ao custo de um dólar..O relativo sucesso de Kelley fora em 1962, aos 24 anos, momento em que foi comparado aos grandes autores antes de ser esquecido: William Faulkner, Isaac Bashevis Singer ou James Baldwin. A razão, como diz Schulz, era simples: "Quando li Um Tambor Diferente percebi o porquê.".Tudo começa em 1957, quando numa tarde infernal de calor um jovem agricultor negro, Tucker Caliban, mata o seu cavalo, pega fogo à casa e parte em direção ao norte com a família. A repercussão na população negra é grande e o livro relata-a sob vários pontos de vista. Como refere o tradutor Salvato Teles de Menezes, "com uma trama (aparentemente) simples, quase esquelética, é um romance de dimensão coral. (...) Torna-se difícil acreditar que o autor escreve o livro com 23 anos"..Um Tambor Diferente.William Melvin Kelley.Editora Quetzal.A história de Portugal contém tantos crimes como feitos heroicos, nem que aqueles se transformem em gestos de que ninguém se esquece, como será o assassínio de Inês de Castro e o lugar com que Pedro ficou nos anais. Mas nem toda a maldade portuguesa ao longo dos séculos teve direito a ficar registada de forma enciclopédica, daí que certos livros como este, Almanaque do Crime Português, tenha um lugar próprio..De leitura rápida e com várias camadas de leitura, Maria João Medeiros investiga e remete essas situações para uma longa lista de casos. Não deixa de repescar a "criatividade" com que muitos deles foram cometidos, o que espanta por várias vezes. A maioria ficou resolvida, teve direito a linchamento, investigação policial e julgamento oficial - até fugas espetaculares -, alguns estão até ao momento por esclarecer. Entre os últimos, o caso Maddie tem um destaque absoluto. Entre os primeiros, o desfile é um nunca acabar de exemplos. Distribuído pelos meses em que foram cometidos, encontramos exemplos que merecem uma releitura..Diz a introdução que o leitor tem direito a uma participação enquanto detetive em causa alheia; se não quiser entrar no jogo, basta ler e, principalmente, recordar a enormidade de crimes com que temos convivido nos últimos anos e que a vertigem dos tempos nos faz esquecer. O primeiro data de janeiro de 2011, protagonizado por portugueses em Nova Iorque, e o último, de dezembro de 1869, conta uma fuga da Cadeia do Limoeiro. Pelo meio, não faltam surpresas e recordações que vão pulando de época para época, confirmando que o crime não tem fim..Almanaque do Crime português.Maria João Medeiros.Editora Guerra & Paz