"Horrível, eles abrem a porta dos quartos sem bater, não tem educação, falta água, barato sai caro, quem não puder outro lugar, melhor dormir na rua ou na estação de trem, precisa melhorar muito, abrem os quartos de uma vez, tem mulheres nuas, coitadas"; "Hostel mal frequentado com muitos indivíduos na porta da rua a ingerirem bebidas alcoólicas e a meterem-se com quem passa. Segundo informações serve para albergar refugiados..."; "O quarto era super apertado, beliches dentro de caixotes, o acesso a algumas camas eram por um corredor super estreito que mal passava uma mala. Não tinha aquecedor em nenhum local, sendo bastante frio na época do inverno. Os chuveiros esquentavam pouco em horários de pico e o banheiro não era muito limpo.".Os três comentários, datados de há três meses, seis meses e um ano, apresentam-se como sendo de clientes do hostel Aykibom, evacuado no último domingo depois de um dos ocupantes, um requerente de asilo, ter testado positivo para Covid-19. Veio a verificar-se que mais 136 - num total de 170 requerentes de asilo ali instalados - estavam infetados..Nas centenas de comentários que se encontram na net sobre este hostel são referidas camas sujas e "cheias de insetos", toalhas manchadas, casas de banho mal limpas cujas portas não fecham, vidros partidos, ausência de fechos nos armários. Também há elogios, sobretudo a frisar a relação qualidade/preço e a simpatia dos funcionários. Mas nas páginas de sites de reserva as fotografias do hostel, que se distribui por três andares de um prédio do início do século XX, mostram corredores estreitos e beliches numerados, evidenciando a impossibilidade de distanciamento social..Depois de três declarações de estado de emergência - a primeira, recorde-se, teve lugar a 18 de março - seria de esperar que quer as entidades responsáveis pelo alojamento dos citados requerentes de asilo (no caso, a organização não governamental Conselho Português para os Refugiados mas também o Estado português, que protocolou com o CPR essa tarefa) quer as autoridades de saúde tivessem posto em prática um plano de contingência para esta população..Aliás na página digital do CPR encontra-se uma nota, datada precisamente de 18 de março, na qual se afiança que "na sequência das recomendações da Direção-Geral da Saúde sobre o Covid-19, o Conselho Português para os Refugiados tem vindo a implementar medidas de prevenção dirigidas aos seus colaboradores, bem como à população refugiada a que presta acolhimento e apoio. (...) Estamos a desenvolver todos os esforços para que seja mantida a segurança, saúde e bem-estar dos residentes e trabalhadores nos Centros de Acolhimento e equipamentos do CPR.".Aparentemente o CPR terá limitado esses esforços aos requerentes de asilo e refugiados alojados nos seus três centros de acolhimento, já que só o diagnóstico de infeção num dos alojados no hostel Aykibom chamou a atenção para as centenas que estão, de acordo com o próprio CPR, em situação semelhante. Segundo esta organização serão cerca de 800 os requerentes de asilo e refugiados alojados em hostéis e pensões, enquanto o ministério da Administração Interna indica poderem chegar aos 1100..Assim, foi só esta quarta-feira que o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, anunciou estar a ser preparada, para os próximos dias, uma intervenção noutros alojamentos do mesmo tipo, e as pessoas que ali se encontram incluídas no grupo prioritário de testes para a Covid-19. Já a diretora geral da Saúde, Graça Freitas, garantiu na conferência de imprensa do mesmo dia que está a ser levado a cabo "um trabalho entre múltiplas entidades" para "pôr em prática as regras e a recomendação de que nos sítios onde as pessoas possam estar em concentração, a tendência é para as desconcentrar ao máximo.".Logo quando o hostel foi evacuado e obtidos resultados dos primeiros testes efetuados aos seus ex-ocupantes Graça Freitas frisara a altíssima taxa de contágio entre os 185 ocupantes do estabelecimento: "Reflete mais uma vez aquilo que nós tínhamos dito que é a concentração de pessoas dentro de um espaço. É isso que define o contágio. (...) Muitas pessoas na mesma unidade residencial e em condições de contacto que não sejam as ideais geram estas circunstâncias"..Que critérios existem para estes alojamentos? Quem fiscaliza?.Se parece então evidente que o Aykibom, onde em 36 quartos/camaratas se encontravam pelo menos 170 pessoas (o que dá uma média de 4,7 indivíduos por acomodação) e que de acordo com as avaliações de clientes não primaria pela higiene, gerava as circunstâncias que a Direção Geral da Saúde considera propícias ao contágio, o que faltou para que as campainhas soassem antes de um dos seus ocupantes testar positivo?.Ninguém ainda respondeu a esta pergunta. Como não é claro quando foi testada a primeira pessoa do Aykibom a ser diagnosticada, e quanto tempo mediou entre esse diagnóstico e a evacuação do hostel e testagem de todos os que o ocupavam..O que se sabe é que o ministro da Defesa, João Cravinho, afirmou esta quarta-feira, ao visitar a base aérea da Ota, onde ficaram alojados, depois de passarem pela mesquita de Lisboa, os requerentes de asilo provenientes do Aykibom, que a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) está a fazer fiscalização do hostel e "tudo indica que as condições não estavam de acordo com os critérios que estabelecemos"..A que critérios se estará a referir o ministro? Os normais de estabelecimentos hoteleiros ou os específicos para pessoas alojadas a expensas do Estado e sob sua proteção - durante uma pandemia? E quem responde por esses critérios? Se, como reconheceu o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita esta quarta-feira, é o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sob a sua tutela, que custeia o alojamento dos requerentes de asilo, não cabe ao SEF ou a outra instância do MAI fiscalizar a forma como esse alojamento é efetuado, certificando que decorre de acordo com os critérios que este impõe? E que critérios serão esses? .O DN tentou esta quarta-feira esclarecer algumas destas questões. Nomeadamente, se o SEF faz algum tipo de controlo das condições de alojamento em que encontram as pessoas cuja instalação delega no CPR; se tomou alguma medida para certificar que as condições em que essas pessoas estão alojadas permitem tomar as medidas de afastamento social impostas pela pandemia; se recebeu alguma denúncia relativa às condições de alojamento dessas pessoas. Mas até ao fim do dia o mail com estas perguntas, enviado ao SEF e ao MAI, não obtivera resposta.."Autoridades sabem onde as pessoas se encontram e em que condições".João Cravinho, o ministro da Defesa, também afirmou, ao visitar a OTA: "Não temos conhecimento de nenhuma situação como esta." O governo alega igualmente, através do MAI e em resposta a uma pergunta do Público, "desconhecer a existência de denúncias sobre as condições de alojamento dos requerentes de asilo"..Isto apesar de Alexander Kpatue Kweh, coordenador do Fórum Refúgio, ter asseverado ao mesmo jornal que "ainda em dezembro" alertara "todas as instituições para as queixas que recebemos de sobrelotação dos hostels", sublinhando: "Os refugiados não conseguem falar com as instituições, então vêm falar connosco. Infelizmente, chegou a este ponto." O DN tentou saber junto de Kpatue Kweh, que esteve esta quarta-feira na OTA, quando exatamente, a que instituições em concreto e por que meio fez as ditas denúncias, assim como se conhece outros locais onde os requerentes estejam nas mesmas condições do hostel evacuado, mas apesar da insistência telefónica e do envio das perguntas por escrito este acabou por não responder, remetendo esclarecimentos para um comunicado posterior..Porém o coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados e diretor-geral do Serviço Jesuíta aos Refugiados, André Costa Jorge, não hesitou, em declarações à Lusa também esta quarta-feira, em dizer nomes: "As autoridades responsáveis nesta matéria, nomeadamente a própria tutela, o MAI, através do SEF, sabem onde é que estas pessoas se encontram e sabem em que condições se encontram. Aliás, a própria Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, para além do Conselho Português de Refugiados, sabem da situação e não é uma situação nova, é de há muito tempo.".Costa Jorge sublinha que a ausência de infraestruturas do Estado para este efeito leva a que dos cerca de 1.100 a 1.200 requerentes de asilo que chegam em média anualmente a Portugal a maioria - uns 900 - sejam colocados em unidades hoteleiras, já que o centro de acolhimento do Conselho Português para os Refugiados só tem capacidade para 60. E que a situação específica do hostel Aykibom "é há muito conhecida das autoridades e não será muito diferente de outras situações semelhantes em outras unidades hoteleiras", ou seja, também nessas outras unidades não haverá condições que assegurem distanciamento social, criando então, pela concentração de pessoas, aquilo que Graça Freitas descreve como um meio favorável ao contágio em larga escala.."Passou-se aquilo que era inevitável, a contaminação, porque aquele hostel não tem as condições mínimas. Aqui há uma responsabilidade política, de falta de políticas públicas viradas para os candidatos a refugiados", conclui Timóteo Macedo, presidente da Solidariedade Imigrante, ao DN. "As pessoas são encaixotadas em hostels e apartamentos durante anos. Um jovem iraquiano chegou a dizer-me que o tinham posto num lar de terceira idade."."Era assim ou estariam na rua"?.Os 170 cidadãos - contando com o que primeiro testou positivo para Covid-19 - de 29 nacionalidades, a maioria de origem africana, e um apátrida, foram colocados no Aykibom, como já referido, pelo Conselho Português para os Refugiados. Esta organização não governamental que representa em Portugal o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados tem protocolos estabelecidos com o Estado Português para se ocupar do acolhimento dos requerentes de asilo e agir na integração dos refugiados..Até agora, o CPR, cujo vice-presidente, Tito Campos e Matos, não respondeu às chamadas nem sms do DN, tem justificado a instalação destas pessoas em hostéis com o facto de os seus três centros de acolhimento - um para menores, outro para refugiados e outro para requerentes de asilo - não comportarem mais gente..De resto basta visitar a página do CPR para encontrar um apelo, datado de 15 de abril - quatro dias antes da evacuação do Ayqibom - a "propostas de entidades hoteleiras / proprietários privados para alojamento de requerentes de proteção internacional em Portugal, preferencialmente no distrito de Lisboa. O objetivo é criar uma bolsa de disponibilidades que permita a gestão de vagas para esta população sempre que necessário.".Mónica Farinha, a presidente do CPR, ouvida pela Lusa, reconhece que a situação "não é a ideal em termos de acolhimento, mas tendo em conta o aumento dos pedidos desde há uns anos e a demora na transição dos requerimentos, foi a forma encontrada para ultrapassar a sobrelotação dos centros de acolhimento oficiais". Assume no entanto que no contexto de pandemia há "uma grande preocupação", por não se garantir "o isolamento social, pois há vivência comunitária, nas cozinhas e WC partilhados, e nos espaços comuns. Sabemos que as pessoas não estão confinadas nos quartos." Mas considera que "era assim ou os requerentes de asilo "estariam na rua"..Na verdade, sendo os quartos, como se vê nas fotos que acompanham este texto do DN, camaratas com beliches, mesmo se as pessoas estivessem fechadas neles continuariam a não ter forma de manter o afastamento das outras. Quanto à conclusão retirada - que ou estavam em locais como o Aykibom ou na rua - parece questionável. Afinal, quando se descobriu que uma das pessoas ali instaladas estava infetadas, foi possível arranjar uma alternativa e colocar todos, incluindo os que testaram negativo, em instalações do Estado.."Há responsabilidade direta do Estado português".Será que o CPR fez tudo o que podia para alertar o SEF e as outras instituições envolvidas para o perigo de contágio? Numa altura em que se retiraram condenados das prisões para evitar esse risco, como é que a situação daquelas pessoas não foi tida em conta?.Ironicamente, na referida página digital do CPR uma nota de 19 de abril, o mesmo dia em que foi publicada uma outra sobre o diagnóstico Covid-19 de um dos alojados no Aykibom, cita as orientações da Organização Mundial de Saúde "para a inclusão de refugiados e migrantes nos esforços de prevenção ao Covid-19". Nestas orientações, os "alojamentos sobrelotados" são indicados como fator de risco, sublinhando-se que a comum exclusão destas populações dos programas de saúde e prevenção "torna a detecção precoce, teste, diagnóstico, rastreamento de contacto e procura de atendimento para COVID-19 difícil para refugiados e migrantes, aumentando assim o risco de surtos em populações, e que tais surtos não sejam controlados (...).".Ao DN, o advogado José Gaspar Schwalbach, que já representou vários requerentes de asilo, diz não ter dúvida de que "o Estado português tinha de ter zelado pelas condições em que aquelas pessoas estavam alojadas. Há responsabilidade direta. E um universo de mais de 100 pessoas infetadas, que podiam não estar." Caso uma daquelas pessoas viesse a ficar seriamente doente ou a morrer, poderia haver lugar a indemnização, considera o jurista. "Se se provasse que houve falta de ação, sim. A questão seria quem escolheu o sítio, mas no final a responsabilidade é sempre do Estado português.".Uma responsabilidade partilhada no governo; além do ministério da Administração Interna, também a secretaria de Estado para a Integração e as Migrações, que tutela o Alto Comissariado para as Migrações, está envolvida. A secretária de Estado Cláudia Pereira esteve igualmente esta quarta-feira na Ota, adiantando que "o governo está a rever o modelo de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados. (...) Estamos a analisar estas condições e foi criada uma secretaria de Estado para melhorar estas condições.".Em mail enviado esta quarta-feira, o DN tentou junto desta secretaria de Estado saber quantos ministérios partilham a responsabilidade pelas condições em que os requerentes de asilo se encontram em Portugal, e se o dito "processo de revisão dos modelos de acolhimento", não implicou conhecimento das atuais condições dos mesmos e quais as conclusões retiradas. Até ao final do dia, não houve resposta.