Contas feitas, o essencial do sistema partidário português não mudou muito desde as eleições da Constituinte em 1975 e as últimas legislativas: no "bloco central" do sistema - PS + PSD, os únicos partidos a fornecerem primeiros-ministros de há 40 anos para cá - o sistema não mudou nem dez por cento nem sequer um por cento..Mudou, exatamente, 0,1 por cento. Em 25 de abril de 1975, nas primeiras eleições pós-25 de Abril, que elegeu a Assembleia Constituinte, PS e PSD somaram 64,2%; em 6 de outubro passado somaram 64,1%..As principais forças continuam a ser as de 1975: PS, PSD, CDS e PCP (na aliança agora CDU, que em tempos foi a APU e antes a FEPU). De 1975 para cá houve outras formações que elegeram deputados - a maior dos quais o PRD, em 1985 -, mas nenhuma sobreviveu. Há porém uma exceção..Chama-se Bloco de Esquerda. Nasceu em 1999 com dois deputados (Francisco Louçã e Luís Fazenda). Hoje, 20 anos passados, tem 19 deputados e é desde 2015 consolidadamente a terceira maior força, atrás do PS e do PSD e à frente de dois outros partidos fundadores do regime, o PCP e o CDS. O Bloco recolheu em si herdeiros de forças que tiveram uma pequena representação parlamentar logo em 1975 e depois faleceram: a UDP e o MDP-CDE.."Grande plasticidade".Na verdade, o Bloco foi uma maneira de juntar num só partido a partir de 1999 movimentos que já há muito existiam dispersos: a UDP + o PSR trotskista de Louçã + dissidentes do PCP liderados por Miguel Portas. À fragmentação da extrema-esquerda sucedeu-se um processo de fusão e aquisição que gerou um produto novo - e que parece definitivamente instalado no sistema. A isto houve alguém que chamou a "grande plasticidade" do sistema político português..Esse alguém foi desde os anos 90, na rádio, nos jornais e sobretudo na televisão, o mais popular comentador da política portuguesa. Em setembro de 2015, com 66 anos, arriscou pela primeira vez na vida uma candidatura a um alto cargo na política nacional. Hoje é Presidente da República e não há quem não lhe antecipe uma recandidatura esmagadoramente popular em 2021..No passado dia 19, depois de receber uma delegação do Parlamento para cumprimentos de Natal, Marcelo Rebelo de Sousa entreteve-se a fazer exercícios de análise política histórica - mas como quem tira do passado lições para o futuro.."É um facto, e que mostra a sabedoria do povo português. O povo português, em várias circunstâncias - e estive a recapitular isso em termos de história constitucional -, foi encontrando maneira de exprimir, através de novas formações políticas, aquilo que enriquecia o quadro das principais formações político-constitucionais que vêm dos primórdios da democracia", considerou..Ora, isso aconteceu "logo na Constituinte com a ADIM, de Macau, também com a UDP, durante legislaturas com o MDP/CDE, mais tarde com o PPM, de um lado, mas também com a UEDS e com a ASDI, de outro lado" e "mais tarde com o PRD" e "com associações integradas em coligações, como a Intervenção Democrática"..Ou seja: "Em vários momentos da vivência da nossa democracia, a juntar às formações que faziam parte da matriz originária, houve outras, que se transformaram - o caso da UDP, que veio a incorporar-se no que é hoje o Bloco de Esquerda -, cumpriram uma missão muito importante e permaneceram ou obrigaram o sistema político-partidário a mudar alguma coisa e o Parlamento a mudar também", acrescentou. "Isto significa que os portugueses querem dizer que o nosso sistema tem uma grande plasticidade, acrescentando novas formações políticas em momentos cruciais ou em momentos diferentes destas décadas de democracia.".Incerteza toda à direita.Marcelo tentava assim desdramatizar o facto novo das últimas eleições: ao novo partido das legislativas de 2015, o PAN, somaram-se em outubro três outros: o Livre (esquerda socialista), a Iniciativa Liberal (o nome dispensa explicações) e o Chega (nacionalista de direita). O Parlamento tinha sete forças em 2015 (contando com o PEV). E agora tem dez..António Costa Pinto (politólogo) e Nuno Garoupa (académico especializado na relação entre a justiça e a economia) concordam num ponto: o sistema está em mutação mas é na direita que reside, como diz Costa Pinto, "o grande polo de incerteza"..Ambos afirmam que à esquerda o cenário está relativamente "consolidado". O PS está no máximo e dificilmente irá mais longe (Costa, com as melhores condições possíveis, não conseguiu ir além dos 1,9 milhões de votos); o Bloco, que em 2015 tinha tido 19 deputados eleitos, manteve exatamente esses mesmos 19 eleitos. E o PCP está num "lento declínio"..Assim, dizem os dois analistas, o que à esquerda poderá acontecer, a muito longo prazo, é um processo de fusões e aquisições, que leve, por exemplo, a uma certa conjugação de forças entre os eleitorados do PCP e do Bloco, a qual poderá ter a certa altura alguma tradução orgânica..CDS "não vai a lado nenhum".Ou seja, à esquerda o caminho poderá ser o de uma certa espanholização da política: por um lado, o PS (equivalente ao PSOE espanhol); por outro, uma espécie de Unidos Podemos formado entre o BE e o PCP..À direita, os dois analistas concordam também numa visão muito pessimista sobre o futuro do CDS. "É o que enfrenta tempos mais desafiantes", diz, suavemente, Costa Pinto. "Não vai a lado nenhum", sentencia, categoricamente, Garoupa..Este acrescenta uma explicação. É certo que o CDS já foi um "partido do táxi" (quatro deputados nas legislativas de 1987), mas isso foi por "um efeito de voto útil" no PSD de Cavaco Silva (que obteve então a sua primeira maioria absoluta). Mas voltou à normalidade porque à sua direita "não tinha concorrência". E, além do mais, "não tem no terreno a força que o PCP tem, em termos autárquicos", pelo que o declínio poderá ser neste caso muito mais rápido..Assim o que se afigura incontornável é o crescimento do Chega (que aliás as primeiras sondagens pós-legislativas apontam). O qual, não havendo em Portugal um problema de imigração, tenderá a escolher outras bandeiras, por exemplo a do combate à corrupção. "Em 2020, a Operação Marquês poderá chegar a julgamento e isso só vai dar ao Chega lenha para queimar", diz Nuno Garoupa. E foi por isso, afirma ainda, que António Costa lançou os trabalhos de produção de um novo pacote legislativo anticorrupção..PSD e Chega. "A quadratura do círculo".Segundo o comentador, assim, à direita, o grande tema do futuro, confirmando-se o desaparecimento do CDS e não se perspetivando grande (ou nenhum) crescimento à Iniciativa Liberal, será ver como o PSD vai resolver a sua "quadratura do círculo". E qual é?."A relação do PSD com o Chega. Das duas, uma: ou dialoga com o Chega e arrisca-se a perder ao centro; ou não dialoga e assim não gera estabilidade governativa.".Costa Pinto e Nuno Garoupa antecipam portanto, no médio e longo prazo, um sistema partidário a quatro: à esquerda, o PS e uma qualquer fusão entre o BE e o PCP, e, à direita, o PSD e o Chega..Pelo meio, o PAN - ao qual ambos não adivinham grande crescimento -, mas que nalguns momentos, consoante a aritmética, poderá servir como partido de charneira. Não é obrigatório ter muitos deputados para ser grande em influência. E o PAN é do século XXI: esquerda ou direita são etiquetas que recusam. Alinhará com uns ou com outros. Sem estados de alma..(Artigo publicado originariamente na edição impressa do DN de 28 de dezembro, especial aniversário)