Balada triste, tristíssima sobre uma ideia de fim. Acabar com a vida, acabar com uma relação. Em I'm Thinking Ending Things, Charlie Kaufman, depois da animação Anomalisa, volta aos temas da angústia humana e de toda a complexidade dos traumas existenciais, mas desta vez a teia narrativa tem torpedos que tiram o tapete ao espetador: nada é o que parece e as camadas temporais fundem-se como um bizarro puzzle acerca do sentido da vida..Filme sobre o tempo e as marcas da sua passagem, é também uma experiência para testar a nossa capacidade de acreditar ou a suspensão da descrença como caldeirada metafórica. Mas se tudo é "meta", tal como nos argumentos mais badalados de Kaufman, Queres ser John Malkovich ou O Despertar da Mente, o surreal ganha uma proximidade àquilo que é mais real: as vidas falhadas, o medo da solidão, os fantasmas da morte e o sinistro do quotidiano..YouTubeyoutubeTO4QdS_kmoo.Em jeito de comédia desencantada vamos conhecer as neuroses de um jovem casal numa visita à casa dos pais, algures num cenário rural. Mas o aviso do nada é o que parece é mais literal do que se pensa: a protagonista chama-se Lucy mas também é Louisa ou, provavelmente, terá ainda outro nome, já para não falar que primeiro percebemos que é estudante de física-quântica mas depois já será uma especialista de estudos cinematográficos (delicioso o momento onde cita a crítica Pauline Kael acerca de John Cassavettes...) ou estudante de pintura. Depois, na casa dos pais, surgem uma série de acontecimentos absurdos: desde uma cave sinistra, passando por uma fotografia do namorado na infância que pode ser uma fotografia sua, já para não falar da mudança de idade permanentemente dos pais....O mais surreal neste quebra-cabeças metafísico a partir do livro homónimo de Ian Reid são as pequenas ideias geniais de contra-narrativa de Kaufman, capaz de por exemplo guinar a história para o musical ou incluir um excerto imaginário de uma drama de Robert Zemeckis. São coisas nunca dantes vistas num sistema de "storytelling" e aí o efeito de estranheza consegue uma abrangente e significativa sensação de sonho e pesadelo. Não tem nada a ver com os universos de David Lynch, se há aproximação a uma certa bizarria é à de Buñuel, mas pela complexa claustrofobia pensamos ainda em Mãe!, de Darren Aronofsky e na penumbra de Sinédoc, Nova Iorque, o seu primeiro filme....Com um formalismo singular, Tudo Acaba Agora é um convite para um jantar filosófico daqueles cuja ementa é uma oportunidade para meditar sobre o sentido inverso da vida e de como o tempo nos desfaz. Tem um estofo estético que joga com papéis de parede floreados, neve noturna e um ratio (4.3) de ecrã invulgar. Trata-se de um universo estético de uma beleza que paralisa, quase em modo de pequeno mundo secreto, em que um corredor de um liceu e uma gelataria de autoestrada podem ser cenários para uma construção cénica lindíssima. Charlie Kaufman terá feito um dos mais desafiantes filmes dos últimos anos do cinema americano e onde a miséria humana é tão lúdica como a carga intelectual pesada. Quem somos, para onde vamos com a desconcertante bicada de um autor único no panorama americano. Salve-se quem puder....**** (Muito Bom)