O gosto pela observação minuciosa do meio envolvente está-lhe nos genes ou não fosse Miguel Bastos Araújo bisneto do jornalista e escritor Norberto de Araújo (1889-1952), autor, entre outras obras, do clássico da olisipografia Peregrinações em Lisboa. Mas se, desde muito jovem, trocou as observações em meio urbano pelo estudo da natureza, nem por isso se alheou do elemento humano e da sua interação com a paisagem, fazendo da biogeografia a sua disciplina de eleição, com tudo o que isso significa de ligações com a macroecologia, a biologia de conservação, a economia, a ciência política ou mesmo a filosofia..Licenciado em Geografia pela Universidade de Lisboa, doutorou-se em Londres e é, aos 51 anos, investigador-coordenador do Museu Natural de Ciências Naturais de Madrid, investigador convidado da Universidade de Évora e professor catedrático na Universidade de Copenhaga. Trabalhou com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, foi consultor do Conselho da Europa e dos governos português e espanhol no âmbito dos efeitos das alterações climáticas. Entre os muitos prémios que recebeu em Portugal e no estrangeiro, o destaque vai naturalmente para o Prémio Pessoa, em 2018, na primeira (e até agora única) vez em que este distinguiu um cientista que se ocupa do ambiente. A residir habitualmente em Madrid, esteve nesta semana em Portugal (primeiro no Porto, para intervir na conferência Ação Climática - Desafios Estratégicos, realizada pelo Ministério do Ambiente, e depois em Lisboa, na 4.ª Conferência de Lisboa, com o tema "A aceleração das Mudanças Globais e os impactos da pandemia")..Costuma definir-se a si mesmo mais como um realista do que um pessimista, acrescentando que evita o tom alarmista sempre que possível. No entanto, os temas de que se ocupa - o desenvolvimento sustentável, a conservação ambiental e a biodiversidade dos ecossistemas - colocam-nos perante questões muito graves, inclusivamente o futuro do planeta e o nosso enquanto espécie... Costumo usar a propósito a imagem de alguém que se está a afogar no meio de um lago. O que fazer em tal situação? Afundar-se ou, mesmo sabendo que há uma alta probabilidade de morrer, tentar chegar à margem? É evidente que a situação é muito grave e não podemos iludir-nos quanto a isso, mas está ao nosso alcance desenvolver pequenas ações e ficar na expectativa de que elas possam ter resultados a médio prazo, sabendo que tal não será simples até porque há muitos agentes envolvidos e muitos fatores interligados, em áreas tão delicadas como a política ou a economia..Mantém algum otimismo, ainda que moderado, mesmo em situação de pandemia e com as eventuais consequências (políticas, socioeconómicas, até culturais) que dela possam decorrer? Mantenho a mesma atitude. Os problemas da conservação dos ecossistemas e da biodiversidade estão relacionados com a nossa própria relação com o planeta e são mais profundos e também muito anteriores à pandemia. Hoje, ao participar na Conferência de Lisboa, tive a perceção clara de que a minha geração está a falar para um horizonte temporal, que é mais ou menos o do ano de 2050, mas, na verdade, nenhum de nós será um player da mudança nessa altura. Sê-lo-á eventualmente a Greta Thunberg e as pessoas da sua geração. Ou seja, estamos a trabalhar para o longo prazo enquanto a pandemia é um problema deste ano, do ano que vem, durará porventura até ao princípio de 2022, embora as consequências económicas decerto se prolonguem por mais algum tempo..A desaceleração da atividade económica a uma escala global trouxe-nos algumas lições? Antes de mais, levou-nos a tirar mais partido de tecnologias de que já dispúnhamos, mas que se tornaram mais importantes do que nunca, sobretudo na área da comunicação. Mas também impôs, de uma maneira que não esperávamos, a importância da aposta na economia local em detrimento do mercado global. Dou-lhe um exemplo: quando vamos ao supermercado e vemos alhos vindos da China mais baratos do que os produzidos em Portugal, isto significa que aquele preço não tem em conta a mão-de-obra muito mal paga, por um lado, nem as elevadíssimas emissões de carbono necessárias para trazer aquele produto da China. Isto é válido para um sem-número de artigos de primeira necessidade ou não. Este tipo de resposta local a desafios globais já vinha a ser equacionada há algum tempo, mas com as condições criadas pelo confinamento houve necessidade de as acelerar. Nos Estados Unidos e nos países europeus já há muitas empresas a redefinir as suas estratégias em função destes fatores de sustentabilidade. Mesmo no Extremo Oriente já há empresas japonesas a abandonarem a China para concentrarem a totalidade do seu trabalho em território nacional..Citaçãocitacao[A pandemia] impôs, de uma maneira que não esperávamos, a importância da aposta na economia local em detrimento do mercado global..Só podemos falar de desenvolvimento realmente sustentável se mudarmos de hábitos de consumo, contrariando, de certo modo, a lógica capitalista que nos incentiva a querer sempre mais? Estou a lembrar-me, por exemplo, da indústria da moda, em que, numa questão de 20 anos, passámos de ter duas coleções por ano para seis ou sete. A indústria da moda é um bom exemplo, até porque é seguramente uma das mais poluentes, já que ainda trabalha com produtos muito nocivos para o ambiente como tintas e certos tipos de fibras sintéticas. Mas até aí já aparecem alguns exemplos de mudança de atitude com um número crescente de designers a apostarem em "matérias-primas naturais, desenvolvidas de forma controlada e sustentada. No entanto, uma das indústrias mais gravosas para a biodiversidade, e onde ainda há um grande trabalho para fazer, é a alimentar. Falámos há pouco dos alhos vindos da China, mas também podemos falar do óleo de palma. Vemo-lo muitas vezes à venda e desconhecemos que a sua produção em massa foi responsável pela desmatação de vastas áreas de floresta tropical..Como é que se inverte esta situação? Penso que a chave da mudança está na informação ao consumidor. Se para além dos componentes de um alimento, no rótulo aparecer a descrição do modo como foi produzido, quem compra será também corresponsável. Parte-se erradamente do princípio de que o consumidor não é racional. Mas não. Pode ser manipulável, mas é muito mais consciente do que pensam alguns players. É evidente que, numa sociedade em crise, a diferença de preço tende a ser único critério. Mas, numa sociedade estável, com uma classe média consolidada, a preocupação ambiental é também um fator de escolha. Isto já aconteceu com a produção de madeiras. Informados, os consumidores deixaram de adquirir mobiliário de madeiras exóticas, cuja aquisição alimentava a destruição de várias espécies vegetais e animais..CitaçãocitacaoUma das indústrias mais gravosas para a biodiversidade, e onde ainda há um grande trabalho para fazer, é a alimentar..De um modo geral, os dirigentes políticos estão realmente despertos para a urgência da mudança? Ou em muitos casos é só cosmética eleitoral? Eu diria que estamos já num comboio em andamento, impossível de travar. Hoje as questões ambientais já são comuns à grande maioria das agendas políticas, sejam elas de esquerda ou de direita e, como tal, com diferentes paradigmas e modos, mais ou menos estatizantes, mais ou menos liberais, de abordar os problemas. Mas claro que as sociedades são estruturas muito pesadas e não se transformam facilmente nem sequer por decreto..Líderes como Trump ou Bolsonaro não abalam a marcha deste "comboio"? Quero acreditar que são episódios apenas pontuais, a reação negativa que sempre acompanha as grandes revoluções. Claro que nos preocupa o impacto que as decisões do governo brasileiro têm sobre a maior floresta tropical do mundo, boa parte da qual fica precisamente no Brasil. Claro que seria bom que os Estados Unidos voltassem a ser signatários do Acordo de Paris, mas não podemos perder de vista as experiências muito positivas de adaptação climática e energética que estão a ser desenvolvidas nos dois países em empresas como a Tesla, por exemplo. Faço um voto de confiança no engenho humano, que é de uma extraordinária resiliência..CitaçãocitacaoQuero acreditar que [Bolsonaro e Trump] são episódios apenas pontuais, a reação negativa que sempre acompanha as grandes revoluções..Quando o confinamento, decorrente da declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde, se estendeu um pouco por todo o lado, falou-se muito na diminuição das emissões de carbono, da redução da poluição sobretudo nas cidades (já se via golfinhos por todo o lado...). Até que ponto é que a nossa ida para casa teve realmente impacto ambiental? É uma falsa questão porque o que, na verdade, aconteceu (em países como a China, mas não só) foi uma retoma de atividade ainda mais intensa do que a verificada anteriormente. Se alguma coisa se ganhara, logo se perdeu. Não podemos iludir a questão de que, nos últimos 50 anos, o número de habitantes do planeta cresceu a um ritmo inédito na história humana. Estamos a chegar aos oito mil milhões de habitantes, e espera-se que até ao final do século, este número duplique. Em média, cada indivíduo consome muito mais do que consumiam os seus antepassados. A combinação destes dois fatores tem um potencial muito perigoso. Falamos de eficiência energética, mas a variável humana é, sem dúvida, a mais importante..Existe alguma relação entre as alterações climáticas e o aparecimento da covid-19? Tornámo-nos mais vulneráveis do que éramos? Não creio que haja uma relação direta, mas estamos mais expostos naturalmente. A história das doenças e das epidemias, da Idade Média até aos nossos dias, demonstra que os problemas surgem quando o ser humano ultrapassa as suas "fronteiras" naturais e invade os ecossistemas de outras espécies. A peste negra era causada pelos ratos que viviam com as pessoas nas cidades medievais na maior insalubridade (ou nos navios, com os marinheiros)..No caso da covid-19 sabe-se que a sua origem estará nos mercados alimentares do Extremo Oriente, nomeadamente na China, onde, ao contrário do que acontece na Europa, não existem ASAEs para inspecionar as condições de produção e distribuição dos bens alimentares. A certificação, pura e simplesmente, não existe. Em todos os grandes problemas sanitários da história há uma origem comum: a falta de respeito do ser humano pelo habitat das outras espécies e pelos limites que a natureza nos coloca. As doenças, as alterações climáticas, causem elas subida da temperatura, do nível do mar ou a redução das calotas polares, somos sempre nós e não podemos enjeitar tamanha responsabilidade. Na história do planeta, a humanidade é a única espécie realmente invasora..CitaçãocitacaoA história das doenças e das epidemias, da Idade Média até aos nossos dias, demonstra que os problemas surgem quando o ser humano ultrapassa as suas "fronteiras" naturais.