O carrasco de homens que protegia abelhas
A detenção de Radovan Karadzic, um dos homens que são responsáveis por terem ajudado a semear a morte em Srebrenica e Serajevo, surpreendeu não só a Sérvia mas também o mundo. Tal o cepticismo com que já se encaravam as várias tentativas do Tribunal Penal Internacional para a ex- Jugoslávia (TPI), em Haia, para conseguir que Belgrado entregasse os dois "criminosos de guerra" que faltavam: Karadzic e Ratko Mladic.
Detido o primeiro, há que extraditá-lo para o TPI em Haia. Algo que o advogado de Karadzic tenta adiar a todo o custo. "Excluiria a possibilidade de que possa ser extraditado para Haia hoje. Tenho as minhas razões para o afirmar", disse ontem aos jornalistas, Svetozar Vujacic, advogado do 'doutor' que a polícia deteve no passado dia 18.
A captura
"Quero despedir-me. Vou de férias. Preciso descansar, tenho andado a trabalhar muito", disse o ancião à jovem caixa do supermercado Leotar, onde acabara de fazer algumas das suas habituais compras, como um iogurte, cereais, o diário nacionalista Pravda e uma garrafa de vinho tinto, sérvio e barato. Despediu-se e partiu para, ao virar da esquina, apanhar o autocarro nº73, onde seria detido pouco depois.
O "idoso cavalheiro" de barba e cabelo branco - a quem as crianças do bairro chamavam de "Pai Natal" -, tinha então em seu poder dois telemóveis, um computador portátil, algumas roupas, entre as quais uns calções de banho, e 660 euros. Segundo uns, dirigia-se para um spa onde iria passar duas semanas, mas na opinião de responsáveis sérvios, Karadzic preparava-se para se juntar à mulher e aos filhos que vivem na Bósnia.
Clandestinidade
"Viver em fuga não foi difícil, excepto o facto de estar separado da minha família", afirmou Radovan Karadzic ao seu advogado. Aliás, o antigo líder sérvio garantiu ainda estar convencido de que nunca seria apanhado e lembrou o facto de "proferir conferências, aparecer na televisão, escrever artigos" e nunca ter sido incomodado por qualquer polícia ou elemento das forças de segurança da Sérvia.
Médico e cavalheiro
A ilação de Radovan Karadzic, de 63 anos, estava correcta. Tendo em conta que no "simpático cavalheiro" de barba e cabelo branco, trajando como se de um monge ortodoxo se tratasse, ninguém vislumbrava o homem que ajudou a incendiar e a manchar de sangue os Balcãs. Dragan David Dabic, o médico de medicinas alternativas, que curava através da energia - que dizia receber "através" do nó de cabelo preto que tinha no alto da cabeça -, dificilmente estabeleceria qualquer ligação com um tal militar e político chamado Karadzic. Quem o imaginaria, por exemplo, a levar flores à mulher de um "camarada de profissão" ou preocupado com o menino autista?
Carisma...
As várias reportagens feitas em Belgrado junto de quem lidou com Karadzic, melhor, com o dr. Dabic têm todas um denominador comum: ele tinha carisma. E parte desse carisma passava pelas atitudes que tomava e a forma como o antigo psiquiatra e poeta se impunha. Entre os vários casos relatados pela imprensa estrangeira, há um verdadeiramente paradigmático: o das abelhas. No verão passado, um enxame de abelhas poisou numa árvore junto ao bar Luda Kuca e tão pesado era que acabou por cair; as pessoas temeram ser picadas e algumas trouxeram insecticida mas Karadzic que estava no bar proibiu terminantemente que se fizesse uso do mesmo: "Não matem as abelhas. As abelhas são sagradas, são seres vivos e merecem ser salvas". E todas as abelhas foram salvas ... pelo homem que é procurado por ser responsável pela morte de milhares de muçulmanos.
e Srebrenica ...
Todo o "carisma" que se possa encontrar no dr. Dragan David Dabic - a identidade que os "amigos" lhe conseguiram, usurpando a do verdadeiro Dragan Dabic, o camponês e operário da construção civil que vive na Sérvia - ele nunca conseguirá fazer esquecer as acções praticadas por Radovan Karadzic, o homem que provocou a guerra da Bósnia (1992-1995) ao declarar em 1991 a independência para os sérvios da Bósnia. No último ano do conflito, mais de oito mil bósnios, na sua maioria homens e jovens muçulmanos, foram mortos em Srebrenica. Karadzic é considerado responsável por esse massacre que o TPI não teve dúvidas em classificar de genocídio.
Serajevo
Mas Srebrenica não está só. No seu destino acompanha-o a já tristemente célebre cidade de Serajevo, a mesma que foi palco do crime que deu origem à I Guerra Mundial - a morte do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro. Karadzic e o seu general Ratko Mladic, ainda em fuga, mantiveram um cerco de 43 meses à cidade, durante o qual 12 mil civis, entre eles mil crianças, foram mortos pelos bombardeamentos sérvios e pelos atiradores furtivos. Daí que os dois responsáveis sejam acusados de crimes de guerra e contra a humanidade, pelos quais terão de responder em Haia. Há ainda o caso dos 284 capacetes azuis que Karadzic utilizou como escudos humanos em Maio e Junho de 1995, e muitos outros casos que enformam as 11 acusações que contra ele tem o TPI .
O início do fim
O homem que supostamente esteve em Viena, em 2007, sob o nome de Petar Glumac - o verdadeiro Glumac desmentiu ontem essa eventualidade - é procurado pelo TPI desde 1996. Enquanto o líder sérvio, Slobodan Milosevic, se manteve no poder, Karadzic e Mladic nada tinham a temer, mas a vitória eleitoral de Vosjislav Kostunica sobre Milosevic, em 2000, indiciam que algo pode mudar. Não por Kostunica, que é um nacionalista, mas pelos outros membros da coligação. A entrega de Milosevic, segundo analistas, foi disso prova. Derrotado Kostunica em Maio último, remodelados os serviços secretos e Karadzic é capturado. E enquanto aguarda a ida para Haia, lê a Bíblia e bebe água mineral.