O acordo do Eurogrupo deixa mais dúvidas que certezas
Ao fim de mais de 16 horas de reunião (por vídeo-conferência), repartidas entre as noites de terça e quinta-feira, os ministros das Finanças da zona Euro chegaram a um acordo. E aplaudiram-no.
As principais decisões do Eurogrupo, presidido pelo ministro das Finanças português Mário Centeno, são aquelas que já estavam em cima da mesa há duas semanas: uma linha de crédito do Mecanismo de Estabilidade Europeu, que deve estar disponível dentro de duas semanas; um aumento da capacidade de empréstimo do Banco Europeu de Investimentos; e um novo regime de seguro de desemprego de 100 mil milhões de euros proposto pela Comissão Europeia.
Os ministros acordaram também criar um fundo de recuperação "temporário e específico" para ajudar a recuperação económica pós-crise do coronavírus, mas ainda não se sabe a dimensão e as fontes de financiamento desse fundo.
O economista Ricardo Paes Mamede conclui: "É um grande salto para a zona euro, mas um pequeno salto na resolução dos problemas que enfrentamos." E é esta recuperação dos termos da frase do astronauta Neil Armstrong (que por sua vez pode ter-se inspirado numa passagem do Hobbit de Tolkien) que revela a dimensão das expectativas que recaiam sobre a reunião do Eurogrupo, e a medida dos seus resultados.
Ricardo Cabral, economista e professor no ISEG, vai mais longe: "A minha recomendação é que Portugal não recorra a nenhum destes instrumentos." Por várias razões, mas sobretudo porque a condicionalidade será demasiado arriscada, quando o país pode recorrer aos mercados para se financiar (com o BCE a garantir a compra de dívida pública). "É um acordo péssimo. Uma vergonha. O risco da Europa se desintegrar é muito grande. As respostas à crise continuam a ser nacionais, e o risco também é nacional", conclui Ricardo Cabral.
Para o PCP, "contrariamente à propaganda que acompanha as suas conclusões, o que há a reter da reunião do Eurogrupo são as profundas contradições no seio da União Europeia, a ausência gritante de solidariedade e de medidas adequadas à dimensão dos problemas, e uma tão cínica como indisfarçável cedência aos interesses das principais potências europeias e dos grandes grupos económico financeiros", resume o eurodeputado João Ferreira.
Já o analista de política internacional Bernardo Pires de Lima salienta a importância do acordo, com uma ressalva. "Parece-me um bom acordo político numa situação de tensão in extremis. A história da integração europeia é feita disso. Mas provavelmente o acordo tem um alcance técnico e económico aquém da depressão que aí vem."
Este é um olhar mais político, e menos económico, que Pires de Lima graceja poder ser o de alguém que prefere "ver o copo meio cheio". Uma forma de o fazer é comparar a rapidez deste acordo com os anos de impasse que se viveram durante a crise da dívida.
Com as medidas aprovadas pelo Eurogrupo, Portugal poderia receber um empréstimo de quatro mil milhões de euros do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Ricardo Cabral duvida que esse apoio (condicionado, como veremos) possa ser útil. "Dará para um ou dois meses", aponta, mesmo que ainda persistam dúvidas sobre como pode o dinheiro dessa linha de crédito ser aplicado na economia, por exemplo.
Até o moderado The New York Times, num editorial, lança uma pergunta difícil sobre esta nova crise europeia: "A questão a colocar é a de saber qual é o sentido de qualquer união se não consegue encontrar a unidade quando é mais necessária, quando o que faz, ou não faz, irá moldar a sua identidade durante muito tempo e, possivelmente, o seu destino."
Por isso, a dúvida persiste: o que aplaudiram os ministros? A esmagadora maioria dos presentes na reunião (13, de 19) deve ter sentido que o acordo não chega nem perto do que seria necessário.
Portugal, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Espanha, Grécia, Eslovénia e Irlanda (a que se juntaram, no Conselho de chefes de Estado e de Governo, Lituânia, Eslováquia, Malta e Chipre) têm uma derrota clara. Estes países escreveram uma carta conjunta, a 26 de Março, exigindo que a UE "trabalhe num instrumento de dívida comum emitido por uma instituição europeia para angariar fundos no mercado na mesma base e para o benefício de todos os Estados membros". Não há qualquer dívida comum no acordo do Eurogrupo.
Mas também os países que se opõem a "coronabonds" (dívida europeia para financiar a resposta à crise) não parecem sair vencedores (com uma exceção...).
A Holanda, a Áustria e a Finlândia foram, desde que a negociação europeia começou, a minoria de bloqueio a qualquer plano ambicioso. Não só rejeitando o plano das "coronabonds", mas também qualquer mecanismo de empréstimo de dinheiro comunitário sem condições férreas que obrigassem os países devedores a planos de "ajustamento", ou seja de austeridade. O plano agora aprovado no Eurogrupo dá-lhes uma meia vitória - não há dívida comum, e os empréstimos do MEE são destinados ao setor da saúde. Mas não conseguiram valer o argumento da austeridade.
Na Holanda, a posição do ministro das Finanças Wopke Hoekstra não é consensual. A coligação de Governo chefiada por Mark Rutte tem quatro partidos (liberais, democratas-cristãos, de centro e de direita) e, claramente, nem todos defendem o mesmo que o ex-executivo da petrolífera Shell defende no Eurogrupo.
Quando Hoekstra sugeriu que a Comissão Europeia devia investigar por que os países mais atingidos pelo coronabonds (Itália e Espanha) não foram capazes de ter sistemas de saúde eficazes - a tal posição que António Costa considerou "repugnante" - houve um coro de protestos em Haia.
Rob Jetten, o líder do grupo parlamentar do D66 (um dos quatro partidos que formam a atual coligação de governo holandês), escreveu um texto muito crítico e pediu que fosse publicado em vários jornais do sul da Europa (como o DN).
"Enquanto hospitais alemães admitiram holandeses e quase todos os outros países europeus trocaram pacientes e equipamentos de proteção uns com os outros, a Holanda mostrou o seu lado mais mesquinho (...) Wopke Hoekstra, do CDA [partido da coligação de governo, democrata-cristão] aproveita este momento de crise humanitária para dar lições de disciplina orçamental aos europeus do sul gravemente afetados. É o dedo de um contabilista no meio de um sofrimento humano desolador."
Nessa carta, Jetten lança uma farpa cheia de sarcasmo: "Tal como este governo [da Holanda], apesar da boa vontade, não consegue acabar de uma vez com a reputação holandesa de ser um paraíso fiscal."
Além do conflito interno na coligação de Governo, vários economistas, professores universitários e banqueiros holandeses escreveram uma carta aberta muito crítica: "A posição holandesa sobre o financiamento conjunto de uma abordagem europeia à crise do coronavírus causou incompreensão e frustração sem precedentes nas últimas semanas. Como economistas holandeses, também nós consideramos a posição holandesa injustificável. Exortamos o governo holandês a mudar de rumo agora e a apoiar uma abordagem europeia."
O resultado do Eurogrupo não apazigua estas divergências internas na Holanda, nem permite aos "duros" clamar por uma vitória junto das suas bases: o MEE vai poder emprestar dinheiro sem memorandos prévios de austeridade.
Sobra o mais importante dos membros do Eurogrupo: a Alemanha. Em Berlim, a vitória é clara. O Governo de Angela Merkel defendeu, desde o início das negociações, que este não era o momento para criação de uma dívida comum (alinhando com a Holanda), mas nunca fechou essa porta, nem se opôs à primeira das reivindicações italianas, que era a de não haver qualquer condição especifica, acordada individualmente com os países (como os memorandos da troika, por exemplo), para os empréstimos do MEE. Se esse crédito europeu fosse acompanhado, como defendia a Holanda, por condições de ajustamento económico específicas e prévias, o Governo de Roma chumbaria a proposta - porque isso daria combustível ao discurso da oposição populista da Liga de Salvini.
A Alemanha jogou então toda a sua força diplomática para que o Eurogrupo decidisse como acabou por decidir: um plano moderado, capaz de convencer holandeses e italianos.
Foi, aliás, por isso que a reunião de quinta-feira se atrasou. A vídeo conferência formal deveria começar às 17h00, mas foi sendo adiada, enquanto os representantes da Alemanha, França, Itália e Holanda, negociavam um compromisso.
Hoekstra definiu o acordo pelo seu ponto de vista particular: "A Holanda manifestou um forte desejo de ajudar nos cuidados de saúde uma vez que estão relacionadas com o coronavírus". Com uma condição: "Mas por cada euro gasto na economia, aplicam-se as regras normais."
Já Roberto Gualtieri, ministro das Finanças italiano, afirmou que o acordo significa "que a condicionalidade está fora de questão quanto à utilização do financiamento do MEE".
No extenso, e intrincado, relatório final do Eurogrupo há uma frase que parece decalcada de um documento de trabalho do ministério das Finanças alemão (que o Investigate Europe consultou). Ali é dito que, embora não haja condições prévias específicas para cada país para os empréstimos do MEE, os estados que a eles recorram têm de se comprometer a seguir as orientações económicas da UE logo que a crise acabe. "Posteriormente, os Estados-Membros da área do euro continuarão empenhados em reforçar os fundamentos económicos e financeiros, em coerência com os quadros de coordenação e supervisão económica e orçamental da UE, incluindo qualquer flexibilidade aplicada pelas instituições competentes da UE."
No documento alemão, tudo isso já estava previsto: "A fim de assegurar que tal seja feito globalmente de uma forma coerente com uma política orçamental sólida e uma disciplina adequada, o Estado-membro deve, a médio prazo, abordar as vulnerabilidades identificadas nos Procedimentos Europeus de Supervisão, incluindo recomendações específicas por país no âmbito do Semestre Europeu, comprometendo-se assim a respeitar permanentemente as regras orçamentais da UE. Se a linha de crédito for utilizada, o apoio do MEE deverá ser utilizado especificamente para os custos da resposta ao surto de Corona, incluindo os custos de saúde e os custos económicos imediatos."
Além dos empréstimos do MEE, há outros pontos mais consensuais no acordo. A criação pelo Banco Europeu de Investimentos de um fundo de garantia de 25 mil milhões de euros que pode apoiar um financiamento de 200 mil milhões de euros para as pequenas e médias empresas.
Os ministros aprovaram ainda o plano da Comissão Europeia para criar empréstimos temporários destinados à protecção do emprego, conhecido como SURE.
Contudo, apesar dos esforços, públicos de entendimento entre Merkel e Macron, restam várias dúvidas para o futuro.
Berlim e Paris não estão perto de nenhum acordo para a criação de dívida comum, por exemplo. E isso continua a ser o elefante na loja de porcelanas em que se transformou, de novo, a UE.
Mário Centeno afirmou, há dias, ao DN, que as "coronabonds" não estão afastadas da discussão. "Não tiramos opções da mesa, pois não podemos deixar que esta crise de saúde se transforme numa profunda e prolongada crise económica e financeira. Também precisamos de pensar no futuro e preparar as nossas economias para uma estratégia de saída desta crise, um plano para a recuperação", deixou claro o Presidente do Eurogrupo.
Agora, no final da reunião do Eurogrupo, em respostas aos jornalistas, Centeno explicou: "Alguns Estados Membros manifestaram a opinião de que tal [a forma de recuperar a economia] deveria ser feito através de instrumentos de dívida comuns. Outros Estados-Membros disseram que devem ser encontradas formas alternativas."
Parece haver uma tímida menção a esse debate no relatório final do Eurogrupo, que fala na possibilidade de serem criados "instrumentos financeiros inovadores, coerentes com os Tratados da UE" para financiar a recuperação económica.
O ministro italiano Gualtieri interpreta assim essa referência, pelo menos, ao dizer, como Centeno nos havia dito, que as coronabonds "ainda estão em cima da mesa".
Já o ministro holandês Hoeskstra insistiu, no entanto, que não há qualquer acordo possível sobre dívida comum. "Não estou bem com isso [coronabonds]; nunca estive bem com isso nem nunca estarei. É injusto para os contribuintes holandeses. Vai aumentar os riscos para a União no seu conjunto; é insensato e deve ser evitado".