Eis um filme que troca as voltas do espectador: La Syndicaliste, de Jean-Paul Salomé, com uma distante Isabelle Huppert. O que à partida parece uma obra de género: o filme-de-tribunal mais tarde torna-se numa câmara de desconforto para quem o vê. Aqui, de forma imprevisível é o público quem é posto em dúvida: em quem acreditar: numa mulher que se diz violada ou num inquérito policial masculino que diz que ela inventou?.O caso é real: Maureen Kearney, delegada sindical de uma companhia de energia nuclear é encontrada no seu apartamento amarrada a uma cadeira e com tenebrosos sinais de agressão, precisamente na manhã em que tinha uma audiência com o Presidente François Hollande para o avisar de um esquema de negócio com a China que iria fazer com que a sua empresa perdesse mão de obra francesa, supostamente uma negociata que implicava figuras perto do antigo líder da nação, Sarkozy. Subitamente, um investigador da polícia começa a duvidar de Maureen e em tribunal é acusada de inventar a sua violação e agressão. O filme de Salomé é a odisseia desta mulher para tentar que a sociedade e os colegas acreditem na sua versão, mesmo quando muitos duvidam da sua saúde mental, em parte devido ao facto de no passado já ter tido um trauma de violação..Nos antípodas da mera fórmula do guião de inquérito policial, La Syndicaliste é cinema puro e autêntico, um retrato de mulher com todas as subtis nuances de uma complexidade feminina, mas também uma denúncia dos abusos do poder masculino no sistema judicial francês. Prevê-se mesmo que o seu carácter de tese de história verídica possa incomodar um certo sistema político francês quando o filme estrear. Digamos que a sua marca de cinema urgente está bem condimentada. E é também mais uma ocasião para Huppert experimentar novos mistérios de registo sem nunca deixar por terra a sua incorrigível força glaciar. É pela sua fragilidade que o filme ganha esse tom de perplexidade. Huppert não é Maureen mas tem a sua verdade. Foi muito aplaudido na estreia na secção Horizontes e está comprado para Portugal. Seguramente o melhor trabalho de Salomé, cineasta que tinha acabado de dirigir Huppert no desigual Agente Haxe....Acontecimento relevante aqui no Lido foi também a homenagem com o Leão de Ouro de carreira ao americano Paul Schrader. O cineasta que escreveu Taxi Driver e realizou The Card Counter, um dos grandes filmes de 2021, finalmente venceu ouro neste festival depois de nos últimos ter andado a prometer palmarés não só com esse filme anterior mas também com No Coração da Escuridão, de 2017. A homenagem inclui também a estreia mundial de Master Gardner, fora-de-competição, filme que mais parece um remake de The Card Counter, onde seguimos o percurso de um horticultor e jardineiro que esconde um passado que remete para um gangue de radicais de extrema direita. Ou seja, mais uma personagem de Schrader em fuga de si mesmo, em choque com um passado que o atormenta..O anjo caído em questão é interpretado Joel Edgerton, ator de quem se desconhecia essa soturnidade mas que no contexto de conto das trevas de Schrader é mais do que perfeito. Master Gardner, por prescindir de uma carga de novidade, está longe de ser dos melhores filmes deste cineasta que aqui em Itália é aclamado como mestre. Ontem, no genérico inicial do filme já havia ovação. Na verdade, saltam à vista fragilidades de um objeto que formalmente tem ideias gastas e "idosas", como é o caso de um certo orgasmo com flores a desabrochar. Num filme onde das trevas nasce amor (mais do que expiação) era importante que houvesse química entre este par romântico, um ex-racista assassino e uma toxicodependente mulata. Não há e a culpa não é só de Joel Edgerton e de Quintessa Swindell - Schrader tem dias menos bons: por exemplo, alguém defende com unhas dentes o anterior a The Cardcounter - O Jogador, Dark, de 2017, ou Adam Renascido (2008)?.Nos jurados, Julianne Moore tem dado nas vistas por ser discreta. Tal não é paradoxo quando a presidente do júri tem uma entourage significativa, entre damas de companhia e segurança. Mas no júri da primeira obra, Ana Rocha de Sousa, a cineasta portuguesa destaca-se, sobretudo porque foi aqui em Veneza que Listen triunfou e marcou a sua estreia.."Estou a sentir uma enorme responsabilidade e honra estar agora como jurada - há dois anos nunca pensei estar neste papel! Não deixa de ser uma oportunidade de proximidade com filmes tão internacionais e tem sido incrível partilhar esta função com pessoas que tanto admiro. E é também uma troca de experiências com artistas com backrounds tão diferentes", conta a realizadora que falou ao DN das emoções de ter estado num jantar da Academia de Hollywood aqui em Veneza:."Estar nesse evento lembra-me os meus dias de juventude, quando ainda era uma miúda. Sou e continuarei a ser essa miúda a sonhar. Tanto sou membro do júri, com toda a responsabilidade que isso acarreta, como continuo a ser apenas a Ana Rita que sonha. Se calhar, isso é criticável por algumas pessoas, mas sou assim. Oxalá mais sonhos se concretizem. Entretanto, o meu próximo filme está escrito e estou na fase da estruturação da pré-produção"..dnot@dn.pt