“Nós, os alunos da língua portuguesa, somos mais apaixonados”
A comitiva que acompanhou Manuel Alegre a Pádua para receber o doutoramento honoris causa pela segunda mais antiga universidade italiana era composta de especialistas na sua obra poética e em prosa, além dos investigadores italianos que se lhes juntaram naquela cidade, para fazer um escrutínio à sua vida literária. As várias sessões do congresso tiveram início após a cerimónia do douramento e decorreram durante dois dias de comunicações, mas a grande surpresa foi a presença dos jovens estudantes italianos interessados em aprender a língua portuguesa e a quererem assistir à cerimónia e aos debates. Perguntas não fizeram, mas a atenção foi grande.
Estes jovens fazem parte das turmas que frequentam a Cátedra Manuel Alegre na Universidade de Pádua e somam várias dezenas de alunos. Não são tantos como os que pretendem aprender a língua espanhola, mas o interesse rivaliza e muitos já falam o português suficiente para se manter uma conversa na nossa língua e perceber as razões do seu interesse. Valentina adora o “som da língua” que é falada por parentes afastados em Portugal e no Brasil. Aliás, percebe-se que o Brasil é bom chamariz para estes jovens que, como Mateo, consideram que do outro lado do Atlântico existe um país cada vez mais importante e onde se pode encontrar emprego. Andre, por seu lado, tem uma explicação mista: gosta de Espanha e de Portugal e quer viver num deles daqui a alguns anos.
Andre assistiu ao congresso e ficou leitor da obra do escritor homenageado: “Estou muito interessado em ler os seus livros”. O mesmo acontece com Daniela, que mora em Milão e vem periodicamente a Pádua frequentar o curso de língua portuguesa. Também já esteve em Parma com a mesma intenção, onde estudou com uma professora do Minho. Percebe-se o efeito geográfico no seu sotaque facilmente: “O falar de Lisboa e dos arredores não me agrada tanto.” O seu interesse pelo português surgiu após o da língua espanhola: “Comecei por aí mas estive quase para desistir por causa da dificuldade, depois gostei mais do português, mesmo com a dificuldade fonética da língua.” Uma das razões que aponta para a escolha final foi esta: “O valor de uma língua é também o da sua cultura”. Por isso não surpreende quando afirma que gosta dos clássicos portugueses de há alguns séculos: “Fiz a minha tese sobre Eça de Queiroz e O Mandarim e fiquei a perceber que a China já era um país na moda e que o autor antecipa a visão de um europeu”. Como muitos dos seus colegas, o seu interesse não se foca apenas na literatura portuguesa e África é um manancial de surpresas. “Estou a ler Mia Couto, até porque acho o português dele mais fácil”, diz, enquanto outros colegas apontam os autores brasileiros como mais sedutores para aprender português.
E onde fica a obra de Manuel Alegre perante esta juventude estudante de Pádua? Para começar, foram vários os alunos que compraram livros do poeta e outros tantos que lhe foram pedir um autógrafo. “Não conheço os livros de Manuel Alegre, por isso esta é a oportunidade para começar”, dizem. Não é um nem dois que o afirmam, tal como se mostram surpreendidos por o autor ser conhecido no género da poesia e também no da prosa”. Há quem adiante que “gosto de uma prosa poética” ou, para grande surpresa de quem os ouve, a afirmar que “há menos interessados em aprender português do que espanhol, mas nós, os alunos da língua portuguesa, somos mais apaixonados”.
Paixão pela obra de Manuel Alegre é também o que os participantes do congresso demonstram, como Maria Luisa Cusati, que descobriu a poesia de Manuel Alegre durante os tempos em que esteve em Portugal no fim da década de 1960. Por isso decidiu surpreender o poeta com a oferta de um volume de O Canto e as Armas que tinha comprado em Lisboa em 1967. O volume continha as suas notas de estudo e era acompanhado de uma folha onde a sua professora de então escrevera outras notas sobre um dos poemas. Estas, recorda, acompanhavam a moda do estruturalismo e faziam uma comparação entre o brasileiro Oswald de Andrade e Alegre a propósito da Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha. Num momento de descontração no congresso, Cusati contou a sua história: “O professor Lindley Cintra dava um poema de Alegre para os alunos estrangeiros da turma conhecerem a literatura portuguesa, o que nos espantava pois sabíamos que era um autor proibido.”
Impor a língua portuguesa
A tentativa de impor a presença da língua portuguesa em Itália é muito forte, onde segundo Luís Faro Ramos, presidente do Instituto Camões, estão um quarto das cátedras portuguesas que existem em todo o mundo. A instituição apoiou a Cátedra Manuel Alegre na Universidade de Pádua, onde a professora Sandra Bagno tem mantido uma série de atividades para o ensino da língua e da divulgação da obra de Alegre. Bagno tem consciência da dificuldade em impor o português numa Itália onde há outras línguas mais valorizadas: “É considerada uma língua menor em Itália”, daí que diga ser esta cátedra o melhor meio para divulgar a língua. A investigadora recorda que foi um processo longo e difícil, no entanto quando foi proposta todos na Universidade de Pádua concordaram: “A divisa da instituição é ‘Liberdade de Pádua em todos os sentidos para todos os mundos’ e a obra e a vida de Manuel Alegre tem muito a ver com essa ideia”.
O poeta é o segundo português a deixar uma marca nestes edifícios muito antigos, seguindo-se a Damião de Góis, que ali esteve durante algum tempo na universidade que nasceu em 1222 devido ao desejo de alguns filhos das famílias nobres e abastadas que abandonaram a universidade de Bolonha por não ter a abertura de debate a que estavam acostumados em Pádua. A sua história começa com as obras numas cavalariças onde aparece um crânio de um boi dentro de uma parede, imagem que logo foi eleita para símbolo da Universidade, relata Bagno: “Os alunos conseguiram então a liberdade total para estudar e a Universidade de Pádua firmou-se ao longo dos tempos. Foi aqui que Giordano Bruno se manteve protegido da repressão religiosa, que aconteceram grande parte das descobertas de Galileu, onde se formou a primeira mulher e foi criado o primeiro curso de medicina moderna.” Para a professora Bagno, “reconhece-se todo o espírito de Alegre nos acontecimentos nesta universidade durante a ascensão do fascismo, quando o reitor Concetto Marchesi foi obrigado a exilar-se”. Conta a história com se se tivesse passado há poucos dias: “O reitor inaugurou o ano letivo enquanto os fascistas faziam distúrbios. Então, escreveu um Apelo aos estudantes para resistirem, um texto que tem o mesmo tipo de mensagem que a obra de Alegre no que respeita à manutenção dos valores da liberdade”.
A primeira parte do congresso sob o tema “Manuel Alegre, Poeta da Liberdade” decorreu na própria universidade, onde ainda existe a magnífica sala onde se autopsiavam os cadáveres para se estudar anatomia séculos antes. Um anfiteatro deslumbrante e com uma arquitetura inimaginável de tão complexa. Após uma visita a essas instalações, pode dizer-se que as comunicações dos investigadores fizeram uma verdadeira autópsia à obra de Manuel Alegre. Melhor dizendo, uma espécie de autópsia a uma obra viva já que a sua escrita continua a surgir com inéditos, situação recentemente verificada com o volume de poesia Auto de António que até obrigou alguns conferencistas a atualizarem as referências bibliográficas.
Autopsiar a obra viva
Foi o caso de José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores, que fez uma das mais curiosas análises à obra em causa. Partindo do conjunto de poemas em torno do Prior do Crato e em “glosas e voltas” foi percorrendo toda a vida e obra de Alegre, conjugando na sua interpretação inúmeras citações e uma releitura exaustiva de vários livros. Uma revisitação impressionante que, como a diretora do departamento de Línguas e Literatura desta universidade, Anna Bettoni, dissera minutos antes, explicava como a obra de Alegre representa uma “palavra poética que fala do valor da vida humana”.
Apesar do extenso número de apresentações, o poeta bebeu as comunicações e surpreendeu-se com os vários ângulos de análise. Como foi o caso da O Duplo Eu, de Paula Morão, logo na primeira sessão, em que analisou a obra poética com recurso a Ezra Pound, explicitou a melancolia de O Canto e as Armas, livro que antecipa uma construção bem presente décadas depois no poema Prólogo de Vésperas de Batalha, entre outras análises profundas da obra. Outro momento que despertou a atenção foi a apresentação da sua tradutora para italiano, Giulia Lanciani, que recorreu a Herberto Helder para justificar a importância do verso “a poesia é uma forma de luta clandestina”; valorizou o espírito revolucionário do poeta, para quem uma revolução nunca termina porque o autor nunca acreditou que as mudanças fiquem completas sem prosseguir a luta, provando-o com o penúltimo livro de poesia, Bairro ocidental.
Amigo de longa data, companheiro de Coimbra e observador do ativismo político de Alegre, José Carlos Vasconcelos fez questão de biografar o poeta afirmando que em nenhum escritor português a vida e obra estão tão juntas: “A vida ilumina a obra”. Referiu o percurso de um poeta que chegou a dizer num tempo em que ter biografia era anormal “tenho biografia a mais”, apontou as suas origens de Águeda e a tradição republicana familiar que explicam as raízes sempre presentes na obra: “Uma presença mais visível no romance ainda do que na prosa”. Recordou alguns momentos com o poeta, como o de uma viagem aos EUA, em que tiveram de atravessar o país de um lado ao outro para pescar achegãs. Rematou com a afirmação: “Um cidadão que merece a poesia”.
O fecho dos dois dias de trabalhos deu-se com uma leitura de poemas pelo próprio, acompanhado de Vasconcelos e Fazzini, mas antes decorreu a comunicação de Mário César Lugarinho, um dos investigadores brasileiros que há mais tempo se tem preocupado com a obra de Alegre, que foi tema da sua tese. Tal como outros momentos de surpresa ao longo do congresso, deu início à sua palestra ao estilo ativista de Alegre, ou seja, criou um momento de intervenção política ao alertar para a crise que está a viver a sociedade brasileira. Em seguida, avançou para o peso camoniano em Alegre: “A obra de Camões ecoa na de Alegre e há um pacto entre ambos como uma poética contra o eterno retorno.” Chamou Alegre de “bruxo” por ser capaz de reformular Camões e torná-lo seu”. A fechar, exibiu um vídeo de Dona Edite, uma brasileira da periferia pobre de São Paulo, cega, que declamou o poema de Alegre, A Senhora das Tempestades. Um momento que voltou a emocionar os participantes do congresso, como aqueles que o homenageado já tinha criado com a sua lezzione no doutoramento honoris causa.