"Nós não precisávamos disto para dar valor à vida"

Vítor está sozinho em casa com os três filhos, dois deles contraíram covid-19, um ainda está positivo. A filha está negativa, a mulher também, mas sofre de doença degenerativa pulmonar, deram-lhe dois anos, já passaram oito. Na família já havia uma luta contra a doença. Não precisavam de outra.
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Este texto foi publicado originalmente no dia 4 de abril e faz parte de um lote de trabalhos relacionados com a covid-19 que o DN está a republicar.

Em 20 dias, é a sétima vez que Vítor Couto sai de casa e sempre com o mesmo destino, o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Os dois filhos rapazes, um de 13 anos e outro de 15 meses, contraíram o "vírus maldito". O mais velho por ser aluno da professora de Físico-Química na Escola da Amadora, o mais novo já dentro da família. A filha, Rita, de 15 anos, voltou nesta quinta-feira à Estefânia para fazer de novo o teste, que deu negativo.

Vítor já não entra sequer na unidade de infecciologia, a única no país que é referência para doentes pediátricos com covid-19. Para o carro, o mais pequeno dorme na cadeira e ele aproveita o tempo para falar ao telefone. É assim que nos conta a sua história, mas depois de aceitarmos esta condição. "Ainda temos o vírus dentro da família. É mais seguro para vocês e para nós falar ao telefone do que pessoalmente", argumentou.

Não esconde que foi dos primeiros a falar para uma estação de televisão, por videochamada, assim que os filhos deixaram o hospital, mas, ao fim de 22 dias, prefere manter-se mais anónimo e não aceita fotos, pede desculpa, agora é tempo de "preservar a privacidade da família". Aceitamos também, mas, diz-nos, posso mandar uma foto: "Foi tirada quando a minha mulher e a minha filha se despediram de nós no hospital."

Um adeus entre vidros, Tiago ainda deitou a mão, mas já não agarrou a mãe nem a irmã. Vítor e Ana não esquecem aquela "terça-feira negra", 10 de março. Tiago, na altura com 14 meses, teve de deixar de mamar no peito da mãe as três vezes ao dia a que estava habituado. A última vez, foi mesmo antes de sair de casa para dar entrada no hospital com o pai e com o irmão do meio. O corte foi seco e duro, custou-lhe e à mãe também, conta Vítor. Mas teve de ser.
Foram ocupar o quarto 7, o último, junto à porta da saída, mas que agora é entrada, devido ao circuito dos doentes com covid. Ali estiveram só dois dias completos, mas longos.

Tiago, apesar da doença, estava bem-disposto e não parava. Tinha começado a andar há duas semanas e "foi difícil controlá-lo dentro de um quarto de 10 m2. Este até foi o maior desafio", diz Vítor a rir. Os pais que entram com os filhos já não saem. Ficam com eles nos quartos, a comunicação é feita por intercomunicador ou pessoalmente quando as enfermeiras equipadas ali entram para fazer algum procedimento. "O mais novo é muito pequenino, não podia ficar internado sozinho e tive de ficar com ele", diz.

João já é capaz de tratar de si e ficou noutro quarto de baixa pressão, e o pai diz que se "portou como um herói, excelente, teve uma atitude muito positiva e ajudou-nos muito". Aliás, reforça, "os meus filhos são uns heróis".

A infeção em 45 minutos

Há 22 dias que tudo começou, quando um telefonema da escola o tira do trabalho no dia 5 março, porque tinha de ir buscar os mais velhos à escola. "Disseram-nos que uma professora estava infetada e que eles tinham de ficar de quarentena. Eles tinham tido os dois aulas de 45 minutos com a professora, mas disseram-nos que era pouco provável que tivessem sido contagiados." Mas não.

Pai e filhos estão separados de Ana, que continua sozinha numa casa de familiares. "É uma doente de risco, com a doença dela não podemos arriscar que apanhe o vírus." Rita esteve com mãe nos dias em que o pai e os irmãos ficaram internados, mas quando lhes deram alta Rita juntou-se a eles. Ela tinha tido o teste negativo, mas não se sabia se ainda poderia vir a ficar positivo e, por precaução, Vítor, o único que nunca apresentou sintomas mas que não sabe se tem a doença porque nunca lhe fizeram o teste, ficou com os filhos todos.

Ao fim deste tempo, diz que pode ter um momento ou outro mais cansado, mas só fisicamente, porque a rotina obriga-o a puxar mais por esse seu lado, mas Ana "sente mais a parte psicológica. Ela deixou os filhos há mais de 20 dias. O Tiago ainda mamava, foi duro. Agora falamos por computador ou ao telefone. Às vezes, ela liga para o meu telemóvel, ponho-a em alta voz e ficamos os quatro a conversar, cada um à porta do quarto. Ainda ontem jogámos ao Stop, com distância de três metros de cada um. É assim que vamos estando mais próximos".

A nossa luta tem sido constante

Apesar de ser a única que está fisicamente fora de casa, Ana está sempre presente. É ela quem traça a rotina diária da família: o calendário com as horas letivas para os filhos mais velhos, a alimentação do mais novo e as rotinas com ele, etc. "Conversámos sobre isto e tem sido muito importante traçar rotinas. Os mais velhos têm aulas, têm os trabalhos para fazer, mas ao mesmo tempo têm o contacto com o mundo lá fora. Conseguimos arranjar dois computadores." O mais novo mantém as rotinas e "está equilibrado".

Vítor sabe de cor as datas de todos os momentos que este novo coronavírus trouxe à família. Concorda que há sempre um lado positivo em todas as coisas, ele e a mulher sabem-no bem, porque há oito anos, quando descobriram que Ana sofria de uma doença degenerativa pulmonar, deram-lhe dois anos de vida. O chão fugiu-lhes, mas, como ele diz, "a minha mulher é uma guerreira. Já passaram mais seis, não contávamos ter mais filhos e tivemos".

Por isso, quando lhe falam do lado positivo deste coronavírus, sabe que terá um, "há sempre um lado positivo em cada uma das coisas", mas "nós não precisávamos disto para dar mais valor à vida, já o dávamos. A nossa luta tem sido constante", afirma. Uma luta pela vida, por estarem juntos. E Vítor confessa que esta é, no fundo, a mensagem que tem para deixar. "Desfrutem da quarentena, é bom estarmos todos juntos em família. E há quem não o possa fazer."

Vítor e Ana não veem a hora em que poderão voltar a estar todos juntos. "Dizem-nos que na melhor das hipóteses só a 1 de maio, vamos ver." O filho João ainda está positivo, mas "é normal, disseram-nos que os adolescentes levam um mês ou mais a libertar o vírus. Os colegas dele também estão positivos".

Tiago já não tem o vírus, anda pela casa toda, mas foi o primeiro a dar sinal de que não estava bem. "Os mais velhos não tinham sintomas, mas vieram para casa naquela quinta-feira. Na sexta, Tiago tem febre ligeira. "Pensámos que seria uma otite, mas reportámos ao delegado de saúde. Ele não estava de quarentena, mas queríamos saber o que podíamos fazer. Disseram-nos que não havia problema em ir à urgência com ele, pois, disseram-nos, era muito pouco provável um deles estar contaminado. Fomos às urgências, tinha um ouvido inflamado. Fomos para casa, dormiu e nunca mais teve febre até hoje", relembra.

Mas no domingo souberam que um colega dos filhos tinha dado positivo à doença. "Percebemos que afinal tinha havido passagem do vírus da professora para os alunos." Rita e João continuavam sem sintomas, mas na segunda-feira começam a ter tosse e febre ligeira. O João tinha também uma ligeira dor de garganta, a minha mulher começa também com febre. Falámos com a delegada de saúde, que mediante isto decidiu marcar testes de despistagem para a minha mulher, para a Rita e para o João. "Eu não sei se sou assintomático ou se não tenho mesmo a doença, nunca me fizeram o teste. Não tenho certezas."

Vítor foi com os filhos para a unidade de infecciologia do D. Estefânia, onde se faz a colheita de sangue para os testes de confirmação da doença. Levou Tiago consigo, ele não iria fazer o teste, mas não tinha onde o deixar, mas fez e deu positivo. Ana deixou-os no hospital e foi para o Hospital Curry Cabral - unidade de referência para adultos, em Lisboa. Fez o teste. Souberam na manhã seguinte, Ana e Rita estavam negativas, mas João e Tiago positivos. "Foi um choque, ficámos tristes, não pensámos que acontecesse. Afinal, não tinha havido só passagem do vírus da professora para os alunos, como havia já transmissão na família."

Ana fez um pneumotórax

O medo foi sempre pela doença da mulher. "Ela deu negativo, mas receávamos que mais tarde desse positivo. Ela estava com bastantes sintomas, muita falta de ar. Foi uma terça-feira negra. Saí de casa com os meus filhos para vir para o internamento. Deixo a minha mulher mal, ficou com uma cunhada que nos disse: "Apanho o vírus, mas vou ajudar-vos." Foi o que valeu."

Afinal, Ana, no meio de tudo isto, desenvolveu um pneumotórax, não podia ir ao hospital porque já não era aconselhável, ficou a ser tratada em casa. Na Estefânia, Vítor e Tiago partilharam o quarto 7 com outra criança e a mãe, mas "os profissionais de saúde foram excelentes, sempre disponíveis para todos. Eles transformaram uma situação que não é agradável no mais confortável possível".

Foram dois dias, mas nada fáceis. Vítor diz que tem uma maneira própria de lidar com as coisas. "É como se estivesse num cenário de guerra, a palavra pode ser um pouco exagerada, mas é assim que sinto. A adrenalina do momento faz-me ficar muito ativo e atento. É para fazer, é para fazer."

Mas começa a sentir que talvez, quando tudo isto acabar, "sou capaz de levar a grande estocada e ir um pouco abaixo, mas neste momento ainda sinto que tenho a adrenalina toda no corpo. Sei que tenho de estar bem e disponível para os meus filhos, alimento-me bem, se há uma noite mais mal dormida, tenho de dar a volta para ter mais energia. Em casa tenho de estar atento para ter todos os cuidados, este vírus não nos permite ter ninguém à mão para ajudar. Uma coisa é a ajuda com compras ou comida, e nesse aspeto temos uma rede incrível de familiares, amigos, a minha empresa que tem sido excecional, mas ter alguém para cuidar de nós já não é possível".

Agora brinca e diz que é uma "empregada da limpeza profissional". A sua rotina começa cedo. "Lavo as casas de banho todos os dias, o chão é aspirado duas vezes ao dia, a roupa só se usa uma vez, depois vai para lavar. Tem de ser assim." Até porque há "uma ideia que me passam, mas ninguém me dá certezas. Não tenho sintomas, o que quer dizer que ou não tenho predisposição para recetor do vírus, ou já o recebi e sou assintomático. Na unidade acham difícil não ter já apanhado, mas que é bom continuar os cuidados.

Vítor previu o cenário

Desde que o vírus apareceu na China, no final de dezembro, que Vítor começou a pensar no cenário que agora vivem. "Pensava na minha mulher. Ela não podia passar por esta situação. Estive sempre muito alerta. Às vezes comentava isto com cunhados que são médicos e eles relativizavam a situação."

Por opção própria, Vítor, no início de fevereiro, suspendeu o ginásio, depois deixou de ir ao café, "comecei a fazer o meu isolamento social, e quando as férias de Carnaval acabaram, o vírus já estava em Itália, eu disse à minha mulher: olha, o vírus chegou a Itália e vai andar pela Europa, por mim ficávamos já em casa e eles não iam à escola". Dias depois recebia o telefonema da escola para os mais velhos entraram de quarentena. E a seguir entrava no hospital, a mulher tinha de sair de casa e dá consigo a perguntar: porquê nós?

Por isso, quando lhe falam da mensagem positiva do coronavírus, só pensa que a única coisa que lhes vai trazer "é o conforto quando voltarmos a estar todos juntos, porque dar valor à vida, como digo, já o dávamos, só não sabemos quanto tempo mais temos pela frente nesta batalha. "Na melhor das hipóteses, até 1 de maio, já passaram 22 dias, mas ainda teremos mais 29..."

Para Vítor, engenheiro eletrotécnico, e para Ana, farmacêutica, ambos de trinta e poucos anos, este é mais um desafio contra a doença. Agora, resta-lhes passar a barreira do coronavírus...

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