Com a salvaguarda de 15% da sua Zona Económica Exclusiva em áreas marinhas protegidas a partir de 2021, Açores elevam a proteção oceânica num novo patamar e afirmam a sua liderança num projeto global: a defesa dos oceanos..Em silêncio, de binóculos em punho, o jovem vigilante está atento ao mar. O olhar é demorado, minutos que passam a longas horas, sempre a controlar o horizonte. É o trabalho diário no posto de vigia dos Cedros, na ilha do Faial, a 20 minutos de caminho da Horta. As baleias andam por lá, isso é certo. Baleias-de-barbas, baleias-azuis e outras espécies, que por aqui passam em grande número nesta altura do ano, cumprindo as suas rotas migratórias - os cachalotes vêm mais no verão -, mas a neblina turva o horizonte. O mar, agitado, também não ajuda e a sua agitação tudo confunde. Se as baleias se mostrassem, poderia haver saída para o largo, para as ver de perto - não faltam turistas desejosos de embarcar nessa aventura. Mas hoje não será o dia..A observação de baleias, o whale watching, foi uma das atividades que ganhou corpo nos Açores nos últimos anos e é hoje uma das imagens de marca do arquipélago. Trouxe benefícios à economia e às comunidades, com novos empregos e reconversão de outros - o dos vigias, por exemplo, que hoje têm telemóvel e já não precisam de lançar foguetes quando avistam cetáceos. É o símbolo da reconversão feliz de uma atividade tradicional, a da caça à baleia, numa outra, mais lucrativa e, sobretudo, mais sustentável.."A caça à baleia acabou em 1984 nos Açores, e, cinco anos depois, começou a sua observação, foi muito rápido", conta José Henrique Azevedo, proprietário de uma das três empresas de observação lúdica de baleias da ilha do Faial e do icónico Peter Café, ponto de encontro de marinheiros de todo o mundo, na marginal da Horta, junto à marina..A mudança foi exemplar. "Os pescadores e a comunidade perceberam rapidamente que as baleias são mais valiosas vivas do que mortas", resume José Henrique. E esta é, afinal, a essência de uma caminhada que foi feita na conservação dos oceanos, pela região, que conseguiu transformar caça em contemplação, no caso das baleias, e que se tem materializado também na manutenção de artes de pesca tradicionais e mais sustentáveis, mas também na criação de áreas marinhas protegidas (AMP), com diferentes regimes de proteção e que representam hoje cerca de 5% da sua Zona Económica Exclusiva (ZEE)..Mas o processo continua em marcha e o seu culminar ficou marcado: dentro de três anos, em 2021, na definição de uma enorme extensão de novas AMP no mar dos Açores, que triplica a área das que hoje aqui existem. Ao todo, serão mais 150 mil quilómetros quadrados de áreas protegidas, correspondendo a 15% da ZEE açoriana, uma marca que colocará os Açores na dianteira da preservação da vida marinha a nível mundial.."É uma mudança de escala na proteção dos oceanos, não há nada que se lhe compare. Hoje, uma área marinha protegida tem em média cerca de três mil quilómetros quadrados, e aqui estamos a falar de 150 mil", resume Tiago Pitta e Cunha, presidente da comissão executiva da Fundação Oceano Azul, que juntamente com a fundação norte-americana Waitt, assinou esta semana, no Faial, uma parceria com o Governo Regional dos Açores para concretizar o ambicioso projeto..O memorando de entendimento, válido para os próximos seis anos, criará as condições para todo o trabalho que agora começa, em estreita colaboração com o Governo Regional dos Açores..Numa primeira fase, até 2021, isso passará pela realização e recolha de estudos científicos que vão permitir identificar as zonas onde devem ser criadas as novas áreas protegidas, com a promoção de debates junto da comunidade, nomeadamente os pescadores, cuja atividade depende diretamente do mar, com a realização do trabalho jurídico capaz de conduzir à definição do melhor enquadramento legal para essas áreas, e a recolha de dados para a futura gestão das novas AMP - essa, a segunda fase do projeto, que continuará a ser acompanhado no âmbito da parceria..Para este primeiro triénio, até 2021, as duas fundações "assumem o compromisso conjunto de um financiamento de 1,5 milhões de euros", explica ao DN Emanuel Gonçalves, administrador da fundação Oceano Azul para a área da conservação..A estimativa do custo total para os primeiros três anos "é de cinco milhões de euros", mas os responsáveis da fundação portuguesa acreditam que conseguirão trazer outros parceiros para o projeto, como outras fundações, empresas e até ONG..O mar no ADN dos Açores.No meio do Atlântico, os Açores "têm uma relação umbical com o mar", diz Vasco Cordeiro, presidente do governo regional. E lembra as palavras de Vitorino Nemésio (1901-1978), um maiores escritores portugueses do século XX, natural da ilha Terceira: "Somos como as sereias, de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar." Vasco Cordeiro cita-as para explicar que "o mar está no ADN dos açorianos" e para assegurar que a região está apostada "em liderar" a conservação marinha e a sustentabilidade dos oceanos. "Fomos pioneiros na criação de áreas marinhas protegidas", diz, sublinhando que "é preciso agora ir mais longe", e manter a dianteira..É isso que pretende a criação das futuras AMP, para a salvaguarda de 15% da ZEE açoriana: ir mais longe. "Com a liderança dos Açores estamos a contribuir para a liderança de Portugal nestas áreas", defende Vasco Cordeiro..Tiago Pitta e Cunha concorda. E acredita que o exemplo dos Açores "pode fazer a diferença para o futuro dos oceanos", que se encontram hoje "num momento crítico do ponto de vista ambiental e da conservação"..A sobre-exploração dos recursos pesqueiros, a poluição, de que os plásticos são a ponta do icebergue, e tudo isto agravado pelas alterações climáticas, são os motivos mais do que conhecidos do "estado de saúde preocupante dos oceanos", nas palavras de Emanuel Gonçalves..Os estudos internacionais mostram isso mesmo e as missões oceanográficas que a Fundação Oceano Azul promoveu na região dos Açores, em 2016 e em 2018, em colaboração com a Fundação Waitt e a National Geographic, confirmam-no sem margem para dúvidas.."Os grandes predadores surgem em menor número e a biomassa está em queda, o que é um sinal claro de que o ecossistema está fragilizado", diz João Falcato, administrador da Fundação Oceano Azul, biólogo e um dos participantes da missão do ano passado na região..Mas não é tudo mau. Também houve boas notícias nessa última missão, que percorreu algumas das zonas menos estudadas do mar dos Açores. Além da descoberta de uma nova fonte hidrotermal e de espécies de corais ainda desconhecidas, os cientistas perceberam ali um outro padrão. Nas áreas protegidas, onde esse estatuto tem sido cumprido, era tudo ao contrário: havia mais predadores de topo, mais biomassa, mais peixes de tamanhos maiores. Um sinal claro de como a criação de AMP pode ser decisiva..O biólogo Pedro Afonso, investigador do Departamento de Oceanografia e Pescas (DOP) da Universidade do Açores que ajudou a organizar essas expedições e participou nelas, conhece bem esta realidade, que estuda no terreno, há 20 anos..O seu grupo tem seguido a evolução de diferentes zonas marinhas em vários pontos do arquipélago, e os dados mostram as diferenças, entre a proteção ou a falta dela. Por exemplo, a reserva do Condor, uma AMP criada em 2010, a sudoeste da ilha do Faial, com uma área de oito milhas por milha e meia, é uma das que "apresenta bons resultados"..Outra é a Reserva Voluntária do Caneiro dos Meros, junto à ilha do Corvo, logo em frente ao porto. "Um caso exemplar", diz Pedro Afonso, "porque nasceu da vontade exclusiva dos pescadores, em 1999, e assim se tem mantido"..No final de 1998, um grupo de jovens do Corvo, decidiu criar uma empresa de mergulho lúdico, para observar os peixes: os meros, que são grandes e dóceis. Então lembraram-se de propor aos pescadores que deixassem de pescar numa parte do caneiro, criando ali uma pequena reserva informal. E eles aceitaram. "A empresa, entretanto, acabou, os jovens saíram da ilha", conta Pedro Afonso. "Ficámos preocupados, pensando que a pesca seria ali retomada, mas isso não aconteceu", lembra satisfeito. "Os pescadores mantêm até hoje a reserva, que se tornou uma espécie de ex-líbris do Corvo, contribuindo para atrair visitantes.".Os meros, por seu lado, prosperam e crescem, e repovoam as áreas adjacentes, com benefícios para todos, sobretudo para os pescadores, que desta forma asseguram também a sua própria sustentabilidade.. A criação de mais 150 mil quilómetros quadrados de AMP na ZEE dos Açores está, no entanto, a deixar "preocupados" os pescadores dos Açores. É assim que Gualberto Rita, o presidente da Federação das Pescas dos Açores, que representa cerca de três mil pescadores, exprime as suas dúvidas em relação à decisão do governo regional. "Estamos preocupados com a sustentabilidade das pescas, mas também com a sustentabilidade dos pescadores. Não existe muito mais margem para novas áreas de interdição da pesca, e não vamos admitir que elas sejam implementadas sem o nosso parecer", sublinha ao DN o representante dos pescadores. "Se se fecharem novas áreas é preciso reabrir outras", diz..Os cientistas, porém, são claros: sem a preservação da vida marinha, é a própria sobrevivência da pesca e dos pescadores que está em causa. Se o peixe faltar, a atividade também colapsará..A criação de reservas e áreas marinhas protegidas, "se as coisas forem bem feitas, podem ser usadas como ferramenta de gestão das pescas, porque há a partir dessas zonas um efeito de repovoamento dos territórios adjacentes, que mais tarde acabam por levar a uma maior produtividade e à possibilidade de maiores capturas", sublinha Pedro Afonso. Mas é preciso dar tempo para que os processos da vida façam o seu caminho..Artigo originalmente publicado a 3 de março de 2019.