Baseado num crime que se passou nos Estados Unidos onde uma adolescente violada cortou os genitais do seu violador e os cozinhou em micro-ondas, este Oranges Sanguines é o exemplo de um pequeno filme francês que deve tudo ao Festival de Cannes. Foi a partir da sua edição em 2021, onde passou fora-de-competição, que se tornou num verdadeiro caso de estima. Neste caso, uma estima que passou para o foro de culto. Jean-Christophe Meurisse fez um clássico instantâneo das sessões da meia-noite, um filme extremista que é um arremesso de uma ideia "romântica" de cinema de culto. Se não tivesse o aval de Cannes era bem possível que pudesse passar ao lado de uma certa respeitabilidade preconceituosa - o cinema proposto por Meurisse é de uma ousadia formal que escapa aos procedimentos daquilo que se entende por cinema francês, o cinema francês com aspas. Hoje é seguramente o cult movie mais genuíno dos últimos tempos, a comédia negra "extremamente desagradável" que ausculta o estado das fracturas sociais da França dos nossos dias e, neste caso, o interior das instituições governamentais..Laranjas Sangrentas é uma narrativa proposta em vários quadros e com personagens que se ligam mas cujas ações individuais são tratadas de forma individual. De um lado temos um advogado, Alexandre (Alexandre Steiger) a contas com uma ligação de consultoria com o ministro das finanças (Christophe Pau), um ministro em stress devido a uma pressão mediática para se revelar onde tem o seu dinheiro guardado em contas no exterior, óbvia alusão ao caso do ministro de Hollande, Jêrome Cahuzac . Num outro "sector" do filme assistimos a um casal sexagenário, que mais tarde vamos perceber que são os pais de Alexandre, a contas com graves problemas financeiros e a investir num concurso de dança. Aparentemente sem ligação, a câmara também se foca em Louise (Lillith Grasmug), uma adolescente de 16 anos ansiosa por perder a virgindade, mas é num sinistro homem solitário sem nome que o centro do filme se centra, um violador que alimenta porcos em casa e que acidentalmente recebe o ministro em casa. Um serão que acaba numa violação com requintes de sadismo e a exposição do violado amarrado e nu às portas do parlamento... Mas logo a seguir ao ministro, Louise torna-se na próxima vítima do violador..Objeto de uma violência perturbadora e de um humor extremista, este conto negro objetivado através de sátira social dura tem algo que a maior dos filmes de choque não atinge, um legado de solidez narrativa, mesmo com um mosaico de personagens que à partida parece estapafúrdio. Isso e uma construção de quadros realistas que interpelam um realismo cinematográfico exemplar. Talvez assim os gagues que disparam em torno de uma ideia de meandros da política acabe por surtir maior efeito. O sarcasmo com que se encena uma reunião do gabinete do ministro em que uma série de adjuntos atira para a mesa esquemas para subir a receita do Estado é de uma fluência magistral, tal como os diálogos que dão pistas de um estado de espírito da doença social francesa. Meurisse não quer fazer teses políticas nem dar lições mas essa espuma dos dias de um país que dispensa os chamados partidos institucionais acaba por ter aqui as tais camadas de identificação. Além disso, os diálogos são de uma pontaria legítima, sobretudo na forma como se dá a conhecer os efeitos da perceção de Macron e da sua era, sem nunca esquecer também os sintomas e tiques da extrema-direita, seja numa discussão de um júri num concurso de dança, seja num mero jantar de família. Está lá a França endividada com os créditos, a forma como se vive acima das possibilidades, corrupção endémica e a formulação de uma barbárie de justiça popular. Temas, aliás, propostos por Meurisse como encenador teatral por intermédio da sua companhia, Les Chiens de Navarre. E é precisamente uma certa provocação teatral que se sente em todo este engenho, sobretudo no culminar da pedra-de-toque do filme, a sequência de gelar o sangue dos testículos cozinhados no micro-ondas. Da utilização da música à própria coreografia dos corpos (há um suicídio filmado com uma certa "descontração") nota-se que há um cuidado extremo em todo e qualquer detalhe..Para quem não tenha estômago para os níveis de violência gráfica das sequências de tortura, há sempre outros trunfos no argumento, sobretudo quando a sátira explode em comédia de maneiras e na qual se sente uma espécie de vibração à Roy Anderson, mas um Roy Anderson a captar o absurdo dos quintos dos infernos. Esse lado explícito está também nos lábios dos atores, em especial de Denis Podalydés, personagem que se movimenta nos bastidores, um spin-doctor demente, quase tão demente como a inteligência cruel desta surpresa que venceu o Prémio do Público do MOTELx. O tema Wonderful Life, de Black, aqui em versão dos Smith & Burrows, representa o tom destas laranjas....dnot@dn.pt