Quando a vimos pela primeira vez, há um ano, no videoclipe de Sushi, ela usava um kimono japonês, óculos escuros na ponta do nariz, dois totós. A letra, uma mistura de português e inglês, com muito calão à mistura, não era fácil de acompanhar, mas o ritmo era contagiante e o refrão irresistível: "Eu sei que a tua raiva nos ama/ Young niggas fresh tipo sushi/ Eu andava com marcas de lama/ Hoje se eu ando com marcas é gucci." Mas quem é esta Nenny? Ninguém sabia muito bem. Mas as visualizações no YouTube não paravam de crescer e Sushi começou a passar em algumas rádios e, sobretudo, nos telemóveis e nas festas dos miúdos..Um ano e meia dúzia de temas depois, Nenny apresenta-se ao mundo com o seu primeiro EP, Aura, e as primeiras entrevistas à comunicação social. Vai começar a dar concertos e até já está nomeada para os Play - Prémios da Música Portuguesa, que serão entregues no dia 25 deste mês, nas categorias de Artista Revelação e Canção do Ano (Bússola). Tem 17 anos e recusa o rótulo de rapper, preferindo apresentar-se como "artista". "Não faço só rap e não canto apenas. Faço as letras e muitas outras coisas, por isso sou artista", explica Nenny..Na verdade, ela chama-se Marlene Tavares, mas os pais sempre lhe chamaram Nenny: "Sou Nenny desde pequenina, em casa sempre fui a Nenny, mas na escola só passei a ser Nenny quando se tornou o meu nome artística", conta. "Mas tinha outros nomes. Chamavam-me Ananás ou Bob Marley, porque eu gostava muito do Bob Marley e Marley era parecido com Marlene.".Nenny cresceu em Vialonga, Vila Franca de Xira, a norte de Lisboa, e diz que a vontade de cantar começou muito cedo, teria ela uns 6 ou 7 anos. "Via muito a Disney e queria imitar a Hannah Montana e aquelas princesas todas, cantava pela casa. Era uma brincadeira, mas foi a partir daí que realmente comecei a gostar de cantar e a querer fazer isso para a vida inteira", recorda. Em casa ouvia imenso funaná, kizomba, batuque, zouk e outros ritmos por influência dos pais cabo-verdianos. Mas também muito hip hop, através do irmão, Malick, que é 15 anos mais velho do que ela. "Eu sempre consumi muito hip hop, por causa do meu irmão mas não só", explica. Afinal, crescendo em Vialonga, era difícil não se cruzar com alguns dos nomes mais novos do hip hop nacional e Nenny conhecia bem, por exemplo, Phoenix RDC e os elementos da Wet Bed Gang.."Lembro-me da primeira música que fiz, tinha para aí uns 10 anos e era sobre discriminação e racismo. Criei uma melodia na minha cabeça e simplesmente escrevi. Cantava-a na escola, para os meus amigos, para eles verem que eu tinha uma voz fixe. Era uma coisa um bocadinho à toa, eu era pequenina, mas já escrevia." Os outros podiam achar que era brincadeira, mas para ela "sempre foi a sério"..Ganhar confiança para começar.Aos 11 anos, Nenny mudou-se com a mãe para os subúrbios de Paris, França. Não foi uma mudança fácil. "Senti muita falta da minha família e do meu bairro", conta. "Não conseguia identificar-me, nos primeiros meses. Lá, as pessoas são um bocadinho mais frias, cá, as pessoas são mais simpáticas e abertas, divertem-se mais. Sofri muito de ansiedade e quase - quase - caí numa depressão, mas felizmente estou aqui, estou bem, consegui ultrapassar essas coisas todas." Nenny diz estas coisas com uma enorme tranquilidade. E determinação: "É preciso sempre ver o lado positivo da vida.".Apesar de tudo, a adaptação na escola não foi má. "Fui para uma turma especial, a que eles chamam de acolhimento, com pessoas que tinham vindo de outros países, e tínhamos de aprender francês. Correu tudo bem." E foi na escola, quando tinha 12 anos, que a professora de Música descobriu a sua voz e a desafiou a fazer parte de uma banda com outros alunos e professores. Foi das primeiras vezes em que atuou para um público..Muito tímida, nunca teve coragem para se inscrever no concurso de televisão The Voice, mas no Instagram começou a fazer covers das suas músicas preferidas. "Gostava do Michael Jackson, da Ciara, da Rhianna. Chris Brown foi o primeiro artista de que eu gostei mesmo", diz. Entretanto, descobriu outros nomes, de Lauryn Hill a Mayra Andrade, passando por Richie Campbell, Teyana Taylor, Bryson Tiller e outros mais ligados ao rap. No início, "cantava sempre em inglês". "Depois, descobri que o português é mesmo uma língua muito fixe para cantar, então decidi cantar em português. E às vezes consigo misturar os dois", conta. Apesar de já ser fluente no francês, nunca o usou numa canção. Há dois anos, mais ou menos, fez uma cover do tema Devia Ir, de Wet Bed Gang. "Muita gente viu e falou disso, e um dos membros da Wet gostou muito, então eles convidaram-me para ir ao estúdio. Eles já me conheciam, mas não sabiam que eu cantava. Eu pensava que ia só visitar o estúdio do Charlie Beats (produtor da Wet Bed Gang e de Piruka, entre outros ) e conhecê-lo, mas acabei por gravar a cover ali no estúdio e eles gostaram.".A partir daí, tudo mudou. O produtor gostou do que ouviu e quis ouvir mais. Nenny levou-lhe a sua ideia para Sushi, a que se juntaram as ideias dos profissionais. Decidiram gravar. "Foi tudo uma coisa de feeling, muito natural, não foi nada planeado. Não há explicação. Só aconteceu, simplesmente.".O sucesso com sabor a Sushi.O sucesso de Sushi apanhou-a completamente desprevenida. "Eu não estava mesmo nada à espera de que arrebentasse", diz. Os jogos de palavras em português e inglês e o ritmo trap-rap, ainda por cima interpretado por uma miúda, eram algo novo no hip hop nacional. O vídeo foi partilhado no YouTube a 3 de março de 2019 e um ano depois tem mais de 12 milhões de visualizações (além das outras plataformas de streaming). Passar a barreira dos dez milhões com o primeiro tema que criou é "uma coisa mesmo incrível", que Nenny "nunca" imaginou que pudesse acontecer "logo no primeiro som". Nem por isso Nenny se deixa deslumbrar: "Hoje tive dez milhões e amanhã posso ter muito menos, tenho consciência disso.".Em julho do ano passado, surgiu mais um tema, Bússola, em que mostrava que os seus dotes vocais não se limitavam ao rap. E em novembro lançou Dona Maria, uma canção mais íntima em que Nenny homenageia a mãe e reconhece todo o seu esforço para sustentar e educar a filha..A meio do ano passado, as duas mudaram novamente de país: agora para o Luxemburgo. Nova adaptação. "Em França estava a passar para o 11.º ano, mas no Luxemburgo tive de recuar dois anos e agora estou no 9.º. Atrasa-me um bocadinho", diz, resignada. Apesar de ainda sentir muita falta do seu bairro e dos amigos, está um bocadinho mais animada: "Gosto mais do Luxemburgo porque há muitos portugueses e eu consigo identificar-me mais, é um país muito calmo, sem muita gente, sem muito stress", diz..E sempre que pode, nas férias e até nos fins de semana, Nenny apanha o avião e vem a casa - que é em Portugal. É nesses momentos que aproveita para gravar as canções e para fazer os videoclips. No último ano, o tempo livre tem sido, na verdade, tempo de trabalho, mas ela não parece nada incomodada com esse facto: "Tem de ser, se queremos alguma coisa, temos de trabalhar. E eu quero fazer isto.".Sobre o seu método de trabalho, diz que varia muito. "Geralmente encontro um beat, oiço e a partir daí penso num tema e escrevo. Outras vezes já tenho um tema e vou procurar uma música que se adeque, mais lenta ou mais mexida. Tenho sempre muita matéria. Depende da maneira como acordo, do meu mood, mas vou sempre anotando ideias no telefone e num caderninho.".O primeiro EP, acabado de lançar, chama-se Aura e tem nove temas: os que já estavam disponíveis (+351, Sushi, On You, 21, Dona Maria e Bússola) e três inéditos (Vision, Look At Me e Lion). As músicas são muito diferentes porque ela não é só uma rapper. Também tem tipo de canções. Também sabe ser mais r&b. Ou ser mais dançável. "Por exemplo, se estou com uma emoção mais de festa, se calhar vou escrever a Bússola, mas se estiver um bocadinho mais deprimida, em casa, se calhar vou escrever o On You", explica. O disco é "isso". "São várias emoções e faz sentido com o título Aura, porque aura são emoções, cada pessoa tem a sua eletricidade, a sua luz. Cada som do meu EP representa uma aura, e cada aura é uma emoção.".Ainda a aprender a ser famosa.Das poucas vezes em que subiu a um palco (no ano passado foi convidada da Wet Bed Gang no Meo Sudoeste), Nenny adorou a sensação: "Senti-me eu própria. E ao mesmo tempo penso no meu bairro, penso na minha família, no meu povo, em Cabo Verde. Subo ao palco com aquela ideia de: eu vou deixar-vos orgulhosos.".Em breve atuará em Punta Umbria, Espanha, destino de muitas viagens de finalistas de estudantes portugueses - "vai ser o meu primeiro concerto" -, e em julho canta no festival Sumol Summer Fest, na Ericeira, "que é um grande, grande concerto"..Neste pouco tempo de exposição pública também já aprendeu a lidar com os comentários negativos. "Não pode haver só opiniões positivas nem só negativas", reconhece. Ela mantém-se "supertranquila" e tenta "ignorar os comentários de ódio ou qualquer má onda". "É só ignorar, só isso." E também já começou a perceber que tem de se proteger um pouco. "Tenho de estar um bocadinho na defensiva. Eu sou uma pessoa muito aberta, gosto de falar com toda a gente, gosto de perceber toda a gente. Mas vai haver pessoas que se querem aproveitar.".A fama não é assustadora, ela é que ainda não está habituada, diz. "Na escola fizeram uma fila só para tirar fotos", conta, surpreendida. "De repente, sou famosa, mas ainda não me mentalizei muito, para mim, ainda sou aquela menina que faz músicas dentro do quarto sem ninguém saber. Já sinto uma mudança, mas ainda tenho tendência de agir como uma fã quando falo com um artista, mas esse artista já me vê como artista, como igual, é estranho. Acho que é uma coisa que vem com o tempo.".Acima de tudo, Nenny, está feliz. Nos seus 17 anos, ainda mantém os pés na terra, mesmo que os seus sonhos já tenham levantado voo há muito: "Não costumo planear nada, só deixo acontecer. Sempre sonhei fazer isto e está a acontecer.".Publicado na edição impressa de 7 de março de 2020