"É uma questão de liberdade. A Polícia Judiciária (PJ) nunca permitirá que a liberdade não seja um acento tónico em qualquer ponto do território nacional." O alcance destas palavras do diretor nacional da PJ, Luís Neves, foi verdadeiramente compreendido nesta semana, quando o Ministério Público (MP) deduziu acusação contra 89 membros dos Hells Angels, considerados uma organização criminosa violenta, que tentou matar, ameaçou, roubou, traficou droga e usou armas de fogo proibidas..Luís Neves falava há um ano, no dia em que, numa megaoperação da PJ, tinham sido detidos mais de meia centena de motards dos Anjos do Inferno - a primeira "machadada" na organização, como reconheceu a Judiciária. Explicou na altura que os Hells Angels estavam a adquirir, pela violência, supremacia entre os grupos motards e "coagindo-os" a criar "um clima de terror e medo". Nesse sentido, "foi restituída a liberdade a todos os grupos que se estavam a sentir condicionados para que possam continuar a participar livremente e sem medos os seus convívios"..Terror e medo.A este clima de "terror e medo", descrito pelo chefe máximo da PJ, não escaparam sequer elementos de forças de segurança, da GNR e da PSP, brutalmente agredidos por membros dos Hells Angels - um caso que os investigadores sinalizaram como uma primeira evidência das intenções da organização criminosa: dominar o "território" pela violência e, mais alarmante, armados com um sentimento de impunidade tal que nem o facto de saberem que estavam a espancar polícias os fez recuar..A situação aconteceu numa das anuais concentrações de motards em Faro, em julho de 2013 - já os Hells Angels estavam no radar das autoridades e também dos serviços de informações..Cerca de uma dezena de agentes da PSP e guardas da GNR, em dia de folga, estavam junto a um stand da Associação de Profissionais da Guarda (APG) e vestiam todos coletes dos Blue Knights (Cavaleiros Azuis), um grupo de motards internacional conhecido por só integrar membros das forças de segurança de vários países do mundo..De acordo com o inquérito criminal aberto na altura, aproximaram-se cerca de 30 Anjos do Inferno e exigiram que despissem os coletes, reivindicando a exclusividade do uso da sigla "MC" (Motorcycle Club) que ostentavam. Começaram a provocar e a ofender os polícias e como estes se recusaram a tirar os coletes, avançaram contra eles, agredindo-os violentamente, alguns atirados para o chão e alvo de pontapés e socos por todo o corpo..Com os polícias em sangue, despiram-lhes à força os coletes. Sofreram hematomas em todo o corpo e tiveram mesmo de ser assistidos no Hospital de Faro. O caso foi investigado, deduzida acusação, mas em fase instrutória o tribunal decidiu que não havia provas suficientes para levar os agressores a julgamento..Para os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que coordenaram esta investigação, e para os inspetores da Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo (UNCT), que monitorizam os Hells Angels desde que se instalaram em Portugal, este episódio foi um dos que serviu para consolidar a convicção que está na base da acusação deduzida esta semana: que os Hells Angels estão dispostos à mais desproporcional violência (no caso dos polícias era apenas uma insígnia que estava em causa!) para impor a sua autoridade e poder..Além da vitória judicial e do reforço do sentimento de impunidade, o grupo de motards teve ainda outro grande desígnio atingido: os Blue Knights deixaram de ter representação em Portugal..Supremacia e impunidade.Desde que se instalaram em Portugal, em 2002, o grupo conseguiu dominar o território em exclusivo, defendido por um autêntico exército de supporters que não hesitavam em usar violência extrema para manter o poder, quer entre outros clubes de motards, quer na segurança da noite, quer no tráfico de droga.."O Hells Angels Motorcycle Club (HAMC) e respetivos membros surgem associados à prática organizada de crimes, nomeadamente tráfico de estupefacientes, lenocínio, roubos, homicídios e tráfico de armas, entre outros, obtendo proventos económicos da prática de tais ilícitos que servem como fonte de rendimento desta organização e forma de assegurar a defesa dos seus interesses e territórios face a outras organizações outlaw (fora-da-lei) de motards", escreve o DCIAP na acusação a que o DN teve acesso..Apoiados por dezenas dos denominados supporters, os "amigos" que servem para todos os serviços, principalmente os que envolvem crimes, que não usam nenhum símbolo do grupo, evitando expor os membros do topo da hierarquia, os Anjos do Inferno foram fortalecendo o seu poder, reforçando o temor que os outros sentem por eles e até exibindo a aura de "intocáveis" pelas autoridades de Estado..Apesar de terem sido alvo de vários inquéritos, por diversos incidentes, foi preciso juntar todas as peças dispersas ao longo dos anos e chegar à acusação histórica e inédita no mundo contra 89 Hells Angels - principalmente conseguir todas a pistas que, na opinião do DCIAP, demonstrará que se trata mesmo de uma organização criminosa, com todos os efeitos penais de agravamento das condenações..O momento-chave para este caminho foi mesmo o ataque, num restaurante do Prior Velho, contra os rivais Bandidos, outro clube internacional de motards que Mário Machado, o ex-líder dos cabeças rapadas portugueses, quis trazer para Portugal.."Foi a primeira manifestação tão poderosa e em força como associação criminosa", explicou na altura a diretora da UNCT, Manuela Santos. "Foi a primeira vez que cem elementos atuaram em grupo com o objetivo comum de eliminar a concorrência.".Controlar os rivais.Os investigadores conseguiram recolher várias provas a demonstrar a atenção obsessiva que osHells Angels sempre tiveram com potenciais rivais. Nenhum clube entrava em Portugal sem pedir autorização e a presença de membros de outros grupos eram sempre monitorizados. Não havia margem para ceder..Depois do ataque do Prior Velho em março de 2018, com seis membros dos Bandidos a ficarem feridos, três deles em estado muito grave, com todo o alarme social causado e já com a PJ a apertar-lhes o cerco, osHells Angels não hesitaram em ajustar ainda mais umas contas. Um dos Bandidos que estava no local do ataque, Carlos Seabra - antigo comparsa e condenado com Mário Machado em processos anteriores -, decidiu, três meses depois, publicar no Facebook uma espécie de "prova de vida" da presença da sua organização em Portugal..Numa clara e reiterada demonstração de força e poder, Seabra foi poucos dias depois agredido violentamente na rua, junto à sua casa, por três elementos dos Hells Angels, identificados depois pela PJ. Usaram soqueiras e um deles tinha uma pistola à cintura. Despiram-lhe à força a camisola dos Red&Gold - Alcatraz, a designação que Machado deu aos Bandidos portugueses, e roubaram-lhe o telemóvel. Os ferimentos foram de tal forma graves que Carlos Seabra esteve trinta dias de baixa..Mas o objetivo maior dos Hells Angels foi conseguido. Tal como tinha acontecido com os Cavaleiros Azuis das Forças de Segurança, o comando internacional dos Bandidos mandou retirar de Portugal, recusando admitir Mário Machado como representante.."Sempre que têm conhecimento que em determinado local, em especial nas concentrações de motociclistas nacionais, estão presentes representantes de motoclubes rivais (...), os HAMC estudam previamente esses locais, os seus acessos, as suas entradas e as suas saídas, a forma e o modo de aí se poderem deslocar, quais e quantos veículos a utilizar para aceder a esses locais, os respetivos trajetos, quais os objetos contundentes, perfurantes a levar e a utilizar, quantas pessoas necessárias para aí se deslocarem, assim como as respetivas funções de atuação e vigilância, quais as formas de comunicação a utilizar, após o que, tudo devidamente decidido e, assim organizado, determinam deslocações a esses locais, tudo com o propósito de eliminar, pela força e uso da violência, a concorrência daqueles motoclubes rivais, ou de grupos motociclistas apoiantes de MC rivais, assim como dos respetivos membros, apoiantes ou simpatizantes", relatam os procuradores responsáveis pela acusação..No ataque ao grupo de Mário Machado foram até reforçados por alguns dirigentes de Chapters internacionais, como é o caso do arguido António Costela, membro do Full-Colours do HAMC Quebec, Canadá..Neste contexto, explicam os magistrados, "os HAMC surgem frequentemente relacionados com notícias de episódios de extrema violência física, lutando ferozmente pelo domínio do seu território, onde não permitem a existência de outros moto clubes - MC - que não estejam sobre o seu jugo, sendo frequente que dessa disputa resultem homicídios praticados com armas, nomeadamente armas de fogo, factos estes que ocorrem não só nos EUA como no norte da Europa, com especial relevância na Alemanha e Países Baixos"..A grande operação da PJ no ano passado, não foi, por isso, alheia às estruturas internacionais de segurança. Numa visita a Portugal na altura, a diretora executiva da Europol, Catherine de Bolle, elogiou a operação da PJ contra os Hells Angels, que classificou de "frutuosa", assinalando a colaboração da agência e de outros países europeus..Esta agência europeia de coordenação policial diz que "a principal ameaça à segurança pública dos gangues de motociclistas fora da lei resulta da propensão para utilizar formas extremas de violência. Isso inclui o uso de armas de fogo e dispositivos explosivos, como granadas". De uma forma geral, esta atitude "serve para exercer controlo sobre os membros do grupo, gangues rivais e outras pessoas, como vítimas de extorsão"..A estimativa das forças de segurança e dos serviços de informações aponta para que o núcleo português dos HAMC tenha pouco mais de uma centena de elementos ativos. Melhor, tinham. A identificação e a acusação de 89 deles pode significar que, no mínimo, o grupo ficou dizimado no nosso país..Ataque aos rivais Bandidos foi filmado pela PJ."Sabemos que há indesejados a viajar para a nossa área", comentava ao telefone, já sob escuta das autoridades, em fevereiro de 2018, um membro dos Hells Angels..Os "indesejados" eram os históricos rivais Bandidos, que se preparavam para criar uma representação (chapter) em Portugal sob o comando de um igualmente arqui-inimigo dos Anjos do Inferno: Mário Machado, que liderou os Portuguese Hammerskins (PHS), a fação mais violenta dos cabeças rapadas..A notícia foi publicada no Facebook, na página Red & Gold Portugal - designação que Machado atribuiu aos Bandidos lusos, dando conta de que em março, mais precisamente no dia 24 de março, se iria realizar uma festa privada para comemorar a criação desse novo Motorcycle Club (MC). Para os Hells Angels, habituados a dominar e a ter controlo sobre todos os motards outlaw (fora-da-lei), era mais do que uma provocação, era uma declaração de guerra..Desconhecendo que já estavam a ser monitorizados pelas autoridades, "decidiram estudar os acessos à Rua de Moçambique, no Prior Velho, e ao dito estabelecimento, as suas entradas e as suas saídas, a forma e o modo de aí se poderem deslocar, quais e quantos veículos a utilizar para aceder a esses locais, os respetivos trajetos, quais os objetos contundentes e perfurantes a levar e a utilizar, quantas pessoas necessárias para aí se deslocarem, assim como as respetivas funções de atuação e vigilância, quais as formas de comunicação a utilizar, após o que, tudo devidamente decidido e assim organizado, determinam deslocações a esses locais, tudo com o propósito de eliminar, pela força e pelo uso da violência, a concorrência do grupo motard Red & Gold, assim como dos respetivos membros, apoiantes ou simpatizantes", lê-se no despacho de acusação..A PJ preparou-se e colocou uma câmara de filmar junto ao restaurante onde suspeitava que iria realizar-se um almoço entre o grupo de Machado e alguns operacionais estrangeiros dos Bandidos que vinham validar o novo chapter..Foi essa câmara que captou a chegada da cerca de uma centena de Hells Angels (dezenas deles, depois identificados através das imagens), que registou a forma como se organizaram na rua, fechando um perímetro de segurança, vigiando os acessos, com armas na mão, enquanto outros entraram no restaurante para atacar brutalmente os rivais..Diz a acusação que levaram consigo "martelos-bola", martelos de pedreiro, tubos e barras/bastões em ferro e de madeira, correntes em ferro, machadas, soqueiras, bastões extensíveis e facas" para espancar "todos os elementos" dos Red & Gold que aí viessem a encontrar e, inclusivamente, tirar-lhes a vida se necessário fosse..O relógio da câmara de filmar da Judiciária contou exatamente dois minutos, entre a entrada dos Anjos do Inferno e a sua saída, numa coreografia quase militar. Para trás deixaram um rasto de sangue, um "cenário dantesco", como descreveram as testemunhas às autoridades..Mário Machado tinha escapado, juntamente com Carlos Seabra (que esteve também no PHS e foi condenado em processos com Machado), fechando-se numa arrecadação. Contou depois à polícia que ouviu gritos, quer das vítimas a serem sovadas quer de alguns Hells Angels a chamarem o seu nome, à sua procura..Tendo em conta os relatórios médicos, houve esfaqueamentos, crânios partidos, costelas esmagadas. Três das vítimas, uma delas do chapter alemão dos Bandidos, tiveram de ser sujeitas a intervenções cirúrgicas..As autoridades responsáveis pela investigação não têm dúvida de que a intenção era mesmo matar e que o alvo principal era Mário Machado, que acabou por nada sofrer - daí que este incidente seja a principal base para a acusação de homicídio na forma tentada..Quem são e o que fazem os fora-da-lei acusados pelo MP?.Há o Gatinho, o Martelos, o Rambo, o Gordo, o T-Rex, o Tony do Algarve e até o Caveirinha - quase todos os detidos na operação contra os Hells Angels têm alcunhas e são assim tratados entre os amigos do clube..As profissões declaradas vão desde jardineiros, cozinheiros, eletricistas, mecânicos de automóveis e motos, um carpinteiro e um desenhador, comerciantes, distribuidores de mercadorias, personal trainers (PT), um sargento militar da Força Aérea, um motorista de pesados, um apicultor, um barbeiro, um operador de call center, um pedreiro, um exemplar trabalhador da Autoeuropa há 23 anos e até alguém que está a criar um centro de abrigo para cães abandonados..A ligação dos Hells Angels à extrema-direita e aos cabeças rapadas tem como exemplo dois dos arguidos, Nuno Monteiro e Tiago Palma, pelo assassínio de Alcindo Monteiro, no Bairro Alto, em 1995. .Pelo menos outra dezena e meia de membros dos Anjos do Inferno, que foram agora acusados, foram anteriormente condenados por crimes que vão desde as ofensas à integridade física, extorsão, sequestro, posse ilegal de arma, roubos e furtos..Há um ano, quando foram detidos, havia cerca de uma dezena ligada à segurança privada, mas, na acusação que foi concluída esta semana, aparece apenas um arguido com "supervisor" de segurança privada.
"É uma questão de liberdade. A Polícia Judiciária (PJ) nunca permitirá que a liberdade não seja um acento tónico em qualquer ponto do território nacional." O alcance destas palavras do diretor nacional da PJ, Luís Neves, foi verdadeiramente compreendido nesta semana, quando o Ministério Público (MP) deduziu acusação contra 89 membros dos Hells Angels, considerados uma organização criminosa violenta, que tentou matar, ameaçou, roubou, traficou droga e usou armas de fogo proibidas..Luís Neves falava há um ano, no dia em que, numa megaoperação da PJ, tinham sido detidos mais de meia centena de motards dos Anjos do Inferno - a primeira "machadada" na organização, como reconheceu a Judiciária. Explicou na altura que os Hells Angels estavam a adquirir, pela violência, supremacia entre os grupos motards e "coagindo-os" a criar "um clima de terror e medo". Nesse sentido, "foi restituída a liberdade a todos os grupos que se estavam a sentir condicionados para que possam continuar a participar livremente e sem medos os seus convívios"..Terror e medo.A este clima de "terror e medo", descrito pelo chefe máximo da PJ, não escaparam sequer elementos de forças de segurança, da GNR e da PSP, brutalmente agredidos por membros dos Hells Angels - um caso que os investigadores sinalizaram como uma primeira evidência das intenções da organização criminosa: dominar o "território" pela violência e, mais alarmante, armados com um sentimento de impunidade tal que nem o facto de saberem que estavam a espancar polícias os fez recuar..A situação aconteceu numa das anuais concentrações de motards em Faro, em julho de 2013 - já os Hells Angels estavam no radar das autoridades e também dos serviços de informações..Cerca de uma dezena de agentes da PSP e guardas da GNR, em dia de folga, estavam junto a um stand da Associação de Profissionais da Guarda (APG) e vestiam todos coletes dos Blue Knights (Cavaleiros Azuis), um grupo de motards internacional conhecido por só integrar membros das forças de segurança de vários países do mundo..De acordo com o inquérito criminal aberto na altura, aproximaram-se cerca de 30 Anjos do Inferno e exigiram que despissem os coletes, reivindicando a exclusividade do uso da sigla "MC" (Motorcycle Club) que ostentavam. Começaram a provocar e a ofender os polícias e como estes se recusaram a tirar os coletes, avançaram contra eles, agredindo-os violentamente, alguns atirados para o chão e alvo de pontapés e socos por todo o corpo..Com os polícias em sangue, despiram-lhes à força os coletes. Sofreram hematomas em todo o corpo e tiveram mesmo de ser assistidos no Hospital de Faro. O caso foi investigado, deduzida acusação, mas em fase instrutória o tribunal decidiu que não havia provas suficientes para levar os agressores a julgamento..Para os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que coordenaram esta investigação, e para os inspetores da Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo (UNCT), que monitorizam os Hells Angels desde que se instalaram em Portugal, este episódio foi um dos que serviu para consolidar a convicção que está na base da acusação deduzida esta semana: que os Hells Angels estão dispostos à mais desproporcional violência (no caso dos polícias era apenas uma insígnia que estava em causa!) para impor a sua autoridade e poder..Além da vitória judicial e do reforço do sentimento de impunidade, o grupo de motards teve ainda outro grande desígnio atingido: os Blue Knights deixaram de ter representação em Portugal..Supremacia e impunidade.Desde que se instalaram em Portugal, em 2002, o grupo conseguiu dominar o território em exclusivo, defendido por um autêntico exército de supporters que não hesitavam em usar violência extrema para manter o poder, quer entre outros clubes de motards, quer na segurança da noite, quer no tráfico de droga.."O Hells Angels Motorcycle Club (HAMC) e respetivos membros surgem associados à prática organizada de crimes, nomeadamente tráfico de estupefacientes, lenocínio, roubos, homicídios e tráfico de armas, entre outros, obtendo proventos económicos da prática de tais ilícitos que servem como fonte de rendimento desta organização e forma de assegurar a defesa dos seus interesses e territórios face a outras organizações outlaw (fora-da-lei) de motards", escreve o DCIAP na acusação a que o DN teve acesso..Apoiados por dezenas dos denominados supporters, os "amigos" que servem para todos os serviços, principalmente os que envolvem crimes, que não usam nenhum símbolo do grupo, evitando expor os membros do topo da hierarquia, os Anjos do Inferno foram fortalecendo o seu poder, reforçando o temor que os outros sentem por eles e até exibindo a aura de "intocáveis" pelas autoridades de Estado..Apesar de terem sido alvo de vários inquéritos, por diversos incidentes, foi preciso juntar todas as peças dispersas ao longo dos anos e chegar à acusação histórica e inédita no mundo contra 89 Hells Angels - principalmente conseguir todas a pistas que, na opinião do DCIAP, demonstrará que se trata mesmo de uma organização criminosa, com todos os efeitos penais de agravamento das condenações..O momento-chave para este caminho foi mesmo o ataque, num restaurante do Prior Velho, contra os rivais Bandidos, outro clube internacional de motards que Mário Machado, o ex-líder dos cabeças rapadas portugueses, quis trazer para Portugal.."Foi a primeira manifestação tão poderosa e em força como associação criminosa", explicou na altura a diretora da UNCT, Manuela Santos. "Foi a primeira vez que cem elementos atuaram em grupo com o objetivo comum de eliminar a concorrência.".Controlar os rivais.Os investigadores conseguiram recolher várias provas a demonstrar a atenção obsessiva que osHells Angels sempre tiveram com potenciais rivais. Nenhum clube entrava em Portugal sem pedir autorização e a presença de membros de outros grupos eram sempre monitorizados. Não havia margem para ceder..Depois do ataque do Prior Velho em março de 2018, com seis membros dos Bandidos a ficarem feridos, três deles em estado muito grave, com todo o alarme social causado e já com a PJ a apertar-lhes o cerco, osHells Angels não hesitaram em ajustar ainda mais umas contas. Um dos Bandidos que estava no local do ataque, Carlos Seabra - antigo comparsa e condenado com Mário Machado em processos anteriores -, decidiu, três meses depois, publicar no Facebook uma espécie de "prova de vida" da presença da sua organização em Portugal..Numa clara e reiterada demonstração de força e poder, Seabra foi poucos dias depois agredido violentamente na rua, junto à sua casa, por três elementos dos Hells Angels, identificados depois pela PJ. Usaram soqueiras e um deles tinha uma pistola à cintura. Despiram-lhe à força a camisola dos Red&Gold - Alcatraz, a designação que Machado deu aos Bandidos portugueses, e roubaram-lhe o telemóvel. Os ferimentos foram de tal forma graves que Carlos Seabra esteve trinta dias de baixa..Mas o objetivo maior dos Hells Angels foi conseguido. Tal como tinha acontecido com os Cavaleiros Azuis das Forças de Segurança, o comando internacional dos Bandidos mandou retirar de Portugal, recusando admitir Mário Machado como representante.."Sempre que têm conhecimento que em determinado local, em especial nas concentrações de motociclistas nacionais, estão presentes representantes de motoclubes rivais (...), os HAMC estudam previamente esses locais, os seus acessos, as suas entradas e as suas saídas, a forma e o modo de aí se poderem deslocar, quais e quantos veículos a utilizar para aceder a esses locais, os respetivos trajetos, quais os objetos contundentes, perfurantes a levar e a utilizar, quantas pessoas necessárias para aí se deslocarem, assim como as respetivas funções de atuação e vigilância, quais as formas de comunicação a utilizar, após o que, tudo devidamente decidido e, assim organizado, determinam deslocações a esses locais, tudo com o propósito de eliminar, pela força e uso da violência, a concorrência daqueles motoclubes rivais, ou de grupos motociclistas apoiantes de MC rivais, assim como dos respetivos membros, apoiantes ou simpatizantes", relatam os procuradores responsáveis pela acusação..No ataque ao grupo de Mário Machado foram até reforçados por alguns dirigentes de Chapters internacionais, como é o caso do arguido António Costela, membro do Full-Colours do HAMC Quebec, Canadá..Neste contexto, explicam os magistrados, "os HAMC surgem frequentemente relacionados com notícias de episódios de extrema violência física, lutando ferozmente pelo domínio do seu território, onde não permitem a existência de outros moto clubes - MC - que não estejam sobre o seu jugo, sendo frequente que dessa disputa resultem homicídios praticados com armas, nomeadamente armas de fogo, factos estes que ocorrem não só nos EUA como no norte da Europa, com especial relevância na Alemanha e Países Baixos"..A grande operação da PJ no ano passado, não foi, por isso, alheia às estruturas internacionais de segurança. Numa visita a Portugal na altura, a diretora executiva da Europol, Catherine de Bolle, elogiou a operação da PJ contra os Hells Angels, que classificou de "frutuosa", assinalando a colaboração da agência e de outros países europeus..Esta agência europeia de coordenação policial diz que "a principal ameaça à segurança pública dos gangues de motociclistas fora da lei resulta da propensão para utilizar formas extremas de violência. Isso inclui o uso de armas de fogo e dispositivos explosivos, como granadas". De uma forma geral, esta atitude "serve para exercer controlo sobre os membros do grupo, gangues rivais e outras pessoas, como vítimas de extorsão"..A estimativa das forças de segurança e dos serviços de informações aponta para que o núcleo português dos HAMC tenha pouco mais de uma centena de elementos ativos. Melhor, tinham. A identificação e a acusação de 89 deles pode significar que, no mínimo, o grupo ficou dizimado no nosso país..Ataque aos rivais Bandidos foi filmado pela PJ."Sabemos que há indesejados a viajar para a nossa área", comentava ao telefone, já sob escuta das autoridades, em fevereiro de 2018, um membro dos Hells Angels..Os "indesejados" eram os históricos rivais Bandidos, que se preparavam para criar uma representação (chapter) em Portugal sob o comando de um igualmente arqui-inimigo dos Anjos do Inferno: Mário Machado, que liderou os Portuguese Hammerskins (PHS), a fação mais violenta dos cabeças rapadas..A notícia foi publicada no Facebook, na página Red & Gold Portugal - designação que Machado atribuiu aos Bandidos lusos, dando conta de que em março, mais precisamente no dia 24 de março, se iria realizar uma festa privada para comemorar a criação desse novo Motorcycle Club (MC). Para os Hells Angels, habituados a dominar e a ter controlo sobre todos os motards outlaw (fora-da-lei), era mais do que uma provocação, era uma declaração de guerra..Desconhecendo que já estavam a ser monitorizados pelas autoridades, "decidiram estudar os acessos à Rua de Moçambique, no Prior Velho, e ao dito estabelecimento, as suas entradas e as suas saídas, a forma e o modo de aí se poderem deslocar, quais e quantos veículos a utilizar para aceder a esses locais, os respetivos trajetos, quais os objetos contundentes e perfurantes a levar e a utilizar, quantas pessoas necessárias para aí se deslocarem, assim como as respetivas funções de atuação e vigilância, quais as formas de comunicação a utilizar, após o que, tudo devidamente decidido e assim organizado, determinam deslocações a esses locais, tudo com o propósito de eliminar, pela força e pelo uso da violência, a concorrência do grupo motard Red & Gold, assim como dos respetivos membros, apoiantes ou simpatizantes", lê-se no despacho de acusação..A PJ preparou-se e colocou uma câmara de filmar junto ao restaurante onde suspeitava que iria realizar-se um almoço entre o grupo de Machado e alguns operacionais estrangeiros dos Bandidos que vinham validar o novo chapter..Foi essa câmara que captou a chegada da cerca de uma centena de Hells Angels (dezenas deles, depois identificados através das imagens), que registou a forma como se organizaram na rua, fechando um perímetro de segurança, vigiando os acessos, com armas na mão, enquanto outros entraram no restaurante para atacar brutalmente os rivais..Diz a acusação que levaram consigo "martelos-bola", martelos de pedreiro, tubos e barras/bastões em ferro e de madeira, correntes em ferro, machadas, soqueiras, bastões extensíveis e facas" para espancar "todos os elementos" dos Red & Gold que aí viessem a encontrar e, inclusivamente, tirar-lhes a vida se necessário fosse..O relógio da câmara de filmar da Judiciária contou exatamente dois minutos, entre a entrada dos Anjos do Inferno e a sua saída, numa coreografia quase militar. Para trás deixaram um rasto de sangue, um "cenário dantesco", como descreveram as testemunhas às autoridades..Mário Machado tinha escapado, juntamente com Carlos Seabra (que esteve também no PHS e foi condenado em processos com Machado), fechando-se numa arrecadação. Contou depois à polícia que ouviu gritos, quer das vítimas a serem sovadas quer de alguns Hells Angels a chamarem o seu nome, à sua procura..Tendo em conta os relatórios médicos, houve esfaqueamentos, crânios partidos, costelas esmagadas. Três das vítimas, uma delas do chapter alemão dos Bandidos, tiveram de ser sujeitas a intervenções cirúrgicas..As autoridades responsáveis pela investigação não têm dúvida de que a intenção era mesmo matar e que o alvo principal era Mário Machado, que acabou por nada sofrer - daí que este incidente seja a principal base para a acusação de homicídio na forma tentada..Quem são e o que fazem os fora-da-lei acusados pelo MP?.Há o Gatinho, o Martelos, o Rambo, o Gordo, o T-Rex, o Tony do Algarve e até o Caveirinha - quase todos os detidos na operação contra os Hells Angels têm alcunhas e são assim tratados entre os amigos do clube..As profissões declaradas vão desde jardineiros, cozinheiros, eletricistas, mecânicos de automóveis e motos, um carpinteiro e um desenhador, comerciantes, distribuidores de mercadorias, personal trainers (PT), um sargento militar da Força Aérea, um motorista de pesados, um apicultor, um barbeiro, um operador de call center, um pedreiro, um exemplar trabalhador da Autoeuropa há 23 anos e até alguém que está a criar um centro de abrigo para cães abandonados..A ligação dos Hells Angels à extrema-direita e aos cabeças rapadas tem como exemplo dois dos arguidos, Nuno Monteiro e Tiago Palma, pelo assassínio de Alcindo Monteiro, no Bairro Alto, em 1995. .Pelo menos outra dezena e meia de membros dos Anjos do Inferno, que foram agora acusados, foram anteriormente condenados por crimes que vão desde as ofensas à integridade física, extorsão, sequestro, posse ilegal de arma, roubos e furtos..Há um ano, quando foram detidos, havia cerca de uma dezena ligada à segurança privada, mas, na acusação que foi concluída esta semana, aparece apenas um arguido com "supervisor" de segurança privada.