"O paciente tem uma forte mania da perseguição e podemos com certeza estabelecer algumas manifestações de megalomania. Parece que até se compara a Jesus." Foi assim que Dmitry Peskov, o há muito porta-voz de Vladmir Putin, descreveu nesta terça-feira (22 de dezembro) Alexei Navalny, sublinhando contudo estar a falar em nome próprio e não em nome do presidente russo Tal como Putin, também o porta-voz não se referiu nunca ao nome do opositor, preferindo antes falar no "paciente de Berlim". Peskov falava aos jornalistas no mesmo dia em que a Rússia anunciou sanções contra responsáveis europeus, em represália contra as medidas adotadas em outubro pela União Europeia após as informações sobre o suposto envenenamento de Navalny..O Ministério dos Negócios Estrangeiros explicou que Moscovo decidiu "expandir a lista de representantes dos Estados membros e das instituições da UE que estão proibidos de entrar na Rússia"..Apesar desta retalição, as autoridades russas não identificaram a lista de visados pelas sanções. Para o governo da Alemanha, o país que recebeu Navalny, garantindo-lhe tratamento numa clínica da capital, o seu alegado envenenamento "não é uma questão bilateral, mas uma questão de dimensão internacional porque é um atentado ao direito internacional, realizado com recurso a uma substância química neurotóxica" - o novichok..Berlim continua a exigir que a Rússia esclareça "o recurso a um agente neurotóxico de tipo militar contra um cidadão russo em território russo", afirmou à AFP uma fonte diplomática alemã, acrescentando que até hoje Moscovo não se manifestou disponível para fazê-lo..Ontem, responsáveis franceses, alemães e suecos na Rússia foram chamados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, que criticou abertamente os três países pelas posições sobre o presumível envenenamento de Navalny. Segundo a Ria Novosti, o embaixador de França e representantes das embaixadas da Alemanha e da Suécia foram chamados ao ministério. Os três países garantiram ter identificado uma substância nervosa do tipo novitchok no corpo do dirigente da oposição russa, facto que impulsionou a aplicação de sanções do bloco europeu contra Moscovo..Estas movimentações diplomáticas e a ameaça de novas sanções surgem um dia depois de Navalny ter contado como enganou e conseguiu desmascarar um agente dos serviços secretos russos (o FSB - sucessor do KGB soviético) que admitiu por telefone ter tentado envenená-lo em agosto na Sibéria..Num post no seu blogue em que publica a alegada conversa explica que conseguiu camuflar o seu número de telefone e apresentar-se ao agente, Konstantin Kudryavtsev, como um assistente do secretário do Conselho de Segurança russo, Nikolai Patruchev, considerado próximo de Putin..O FSB já denunciou como uma "falsificação" e uma "provocação" a ligação entre Navalny e o suposto agente, inicialmente denunciada pelo site Bellingcat. Terá sido através do site de investigação britânico que Navalny conseguiu o número de Kudryavtsev. A 14 de dezembro, o Bellingcat e outros meios de comunicação publicaram uma investigação que identifica oito agentes do FSB, entre eles Kudryavtsev, alegadamente encarregue de controlar os movimentos de Navalny desde 2017..Na versão de Navalny, Kudryavtsev contou-lhe na tal chamada telefónica que a toxina novichok foi aplicada nas costuras interiores da zona das virilhas das cuecas do opositor de Putin, quando este se encontrava de visita à cidade siberiana de Tomsk..Dias antes do voo de regresso de Navalny de Tomsk para Moscovo, uma equipa de reconhecimento afeta ao Ministério da Defesa russo terá desativado as câmaras de vigilância do hotel onde Navalny estava hospedado. Depois, com a cooperação da lavandaria do hotel ou por infiltração direta no quarto de Navalny, o veneno foi aplicado..Dois dias depois, Navalny apanhava o avião para Moscovo usando a roupa interior com a toxina, que atua quando em contacto com o suor do corpo..Kudryavtsev, formado pela Academia Russa de Defesa Química, que trabalha para um centro pertencente ao Ministério da Defesa, disse a Navalny que o opositor russo escapou com vida graças à rápida resposta do piloto do avião e à equipa médica que primeiramente o atendeu em Omsk, na Sibéria..Pouco depois, Kudryavtsev foi enviado para Omsk para se livrar das roupas de Navalny e eliminar quaisquer pistas que conduzissem ao novichok usado para o envenenar..Na conversa com os jornalistas em que denunciou os "delírios" de Navalny, Dmitry Peskov foi ainda mais longe, qualificando de "freudianas" as referências do opositor a veneno na roupa interior..Um pouco mais contido nas suas palavras tem sido o próprio Putin. O presidente russo não deixou contudo de desvalorizar a investigação do Bellingcat, considerando tratar-se de um truque dos EUA. Há dias, na sua conferência de imprensa anual, Putin garantiu: "O paciente da clínica berlinense tem o apoio dos serviços especiais norte-americanos (...) E assim deve ser vigiado pelos serviços especiais. Mas isso não quer dizer que era preciso envenená-lo". E até acrescentou: "Se o quiséssemos fazer, teríamos levado as coisas até ao fim"..Aos 44 anos, Navalny, um advogado que em 2011 criou uma fundação para investigar a riqueza de Putin e do seu círculo próximo, continua a recuperar em Berlim. Várias vezes detido e proibido de se candidatar a qualquer cargo público até 2028, o homem que chegou a liderar a oposição democrática na Rússia é suspeito de desvios de fundos e largamente ignorado pela imprensa russa. Mas não deixa de ser a principal voz da oposição, com um canal de YouTube que tem mais de quatro milhões de seguidores, e promete regressar: "Não vou dar a Putin o presente de não regressar", afirmou por várias vezes.