Este filme estava pronto para o Festival de Cannes de 2020 que não se realizou. Como é que lidou com toda esta antecipação? Thierry Frémaux, o diretor artístico do festival, até se espantou com a sua paciência... Só pedi ao meu produtor para não me dizer os valores que a Amazon, a Disney +, a Netflix e essas plataformas ofereciam... O importante para mim é que Tre Piani fosse visto no cinema. Digo isto antes como espectador, muito mais do que cineasta. Para mim, o cinema tem de ser visto numa sala de cinema. Na Itália há um risco muito grande com as plataformas, não sei como é nos outros países. Os produtores estão a receber muito dinheiro para colocar os filmes nas plataformas e entregarem produtos standards - encontram-se numa encruzilhada: ou continuam a receber todo esse dinheiro sabendo que vão ter um controlo paranóico ou, então, recomeçar a trabalhar com os autores de forma mais convencional para fazer cinema mais pessoal para os cinemas... Aí têm de trabalhar também com os argumentistas....Separa muito o peso das personagens femininas em relação às masculinas? Sem fazer um teorema posso dizer que cabe às mulheres resolverem os laços quebrados de uma relação..Temos aqui a personagem de um homem casado que se sente seduzido por uma mulher mais jovem. Sente que acaba por consumar o seu desejo por uma certa ideia de cliché da obrigação masculina? Talvez seja isso, mas também não tenho uma resposta definida. No livro, a rapariga é ainda muito mais insinuante. O que acontece nessa cena acontece muito na vida real e é algo que traz consequências. Ao adaptar o belíssimo livro de Nevo acabámos por descrever as premissas e as suas consequências... Por exemplo, no livro esse personagem masculino acaba por não se separar da mulher. Outra das coisas que mudámos foi a questão do que se passou no parque com o velho vizinho e a menina, não quis que ficasse tudo em aberto e preferi clarificar todo o episódio. A verdade é que quis fazer um filme que não fosse morettiano... Isso deixou-me feliz..Mas está a dizer que quis desencadear uma nova estrutura no seu cinema? Isso não sei, até há muito pouco tempo achava os meus filmes capítulos de um romance. Agora, com Três Andares, desconheço se tal é um facto. Seja como for, o próximo será uma comédia!.Mas foi um alívio desta vez o argumento não ser baseado numa sua ideia mas sim num livro? Senti que continuo a ser o autor e fiquei muito feliz em ter conseguido escrever esta adaptação de um livro tão belo. Já no passado quis adaptar um ou outro livro mas nunca tinha sido capaz. Normalmente, sou um leitor muito vagaroso, mas quando uma das minhas argumentistas me disse para ler o Três Andares acabei por o devorar num ápice. Senti que era um livro muito denso no qual tinha a oportunidade de falar de temas complexos e universais, da culpa à justiça, bem como da dificuldade de ser pai. Quis fazer um filme acerca da responsabilidade das nossas ações e escolhas. Ao contrário do livro, quis estabelecer um olhar perante o futuro e de como nos podemos abrir ao outro. Por exemplo, a cena da dança na rua é uma invenção minha. Essa dança obriga os habitantes do prédio a sair de casa, a confrontarem-se com o mundo..Fala de ser universal mas quando estabelece um olhar sobre um prédio burguês e romano não está a ser mais específico? Ser em Roma não é importante. Também diria que não é fundamental o contexto burguês, mas tem razão: são vizinhos burgueses. Esses são os ambientes que sempre descrevi nos meus filmes..O plateau de um filme pode ser a sua casa? Não, nunca: é o meu lugar de trabalho. Não me sinto mesmo em casa, mas desta vez algo aconteceu de novo: não me senti angustiado nas filmagens! Sabe, todas as rodagens deixam-me muitíssimo fatigado, não só no campo físico como no psicológico. Mal terminavam tinha a habitual sensação de alívio, de libertação, sobretudo porque na montagem sabia que iria trabalhar apenas com uma pessoa e não com umas cinquenta que me perguntam sobre tudo e mais alguma coisa. Com Tre Piani foi diferente, até fiquei com pena. Tive muito prazer em dirigir este filme! Foi a minha rodagem menos cansativa e angustiante. Antes dir-lhe-ia que tinha sido muito doloroso....Tem o hábito de observar os vizinhos? Já tive mais... Curiosamente, agora mudei-me para um prédio de três andares. Estou a gostar muito, é num local muito pacato de Roma, longe das ruas de passagem. Cada vez mais percebo que sou um urbano, nunca poderia viver num outro lugar que não fosse uma grande cidade..E fez um filme sobre a comunidade antes de saber que não poderíamos viver tanto em comunidade... Sim, o filme foi terminado antes da pandemia. Agora ganhou uma certa atualidade. Esta é uma história que mostra que não podemos viver sem família e fora de uma comunidade..dnot@dn.pt