No dia em que chegou à estação de comboios e viu o ex-colega de escola primária, que se tornou polícia e que com outros, numa esquadra da Linha de Sintra, tanto lhe bateu que o deixou sem o olho esquerdo, Carlos sabia que tinha coisas para lhe dizer..Era o momento, mas o outro não o esperava. "Ficou espantado, mesmo em estado de choque. No dia em que me prenderam, já estava algemado e de joelhos na esquadra, havia uns 20 agentes, não sei bem, eram muitos, começaram a bater-me. Não havia necessidade, já não conseguia sair dali", recorda..Cara a cara mostrou-lhe o olho. Ele tinha assumido a sua culpa, cumprido a sua pena, feito o seu percurso de regresso ao caminho certo. Era outra pessoa e tinha de lhe dizer. "Esquecer o que me fizeste não esqueço, perdoar já perdoei, e só te posso desejar duas coisas: tudo e nada", conta Carlos..À sua frente, o outro continuava "em estado de choque", sem saber o que ia acontecer, Carlos explicou-lhe. "Tudo o que te faça feliz e nada que te faça sofrer." "Ele foi meu colega na escola primária, em miúdos fazíamos muitas asneiras, agora até acho que era um certo bullying da parte dele, acho que foi uma certa vingança, mas isso agora deixo nas mãos de Deus. Eu estou tranquilo, ele que faça a vida dele.".Naquele fim de tarde, Carlos seguiu em frente. Os próximos encontros seriam com vítimas de crimes idênticos aos que praticou. Esteve frente a frente com um casal de idosos, vítima de roubo em casa, foram amordaçados e maltratados até darem o segredo do cofre..Carlos contou-lhes a sua história, o que fez, o que sentiu, o que o levou a sair daquela vida e a querer uma segunda oportunidade. Ao longo de cinco sessões, os três olharam-se nos olhos, partilharam dores, sofrimentos, mas também uma imensa vontade de voltar a "confiar" e de ter a "confiança" dos outros..Depois de condenado a 17 anos de prisão, de cumprir 12 e de estar a terminar cinco em liberdade condicional, Carlos foi dos reclusos que aceitaram integrar um programa de justiça restaurativa e que participaram no primeiro ciclo realizado pela Confiar, Associação de Fraternidade Prisional, fundada em 1999, pelo padre Dâmaso, que juntou quatro agressores e quatro vítimas num painel moderado por psicólogos (facilitadores) e coordenado pela professora da Faculdade de Direito Sónia Reis e pelo advogado Artur Santos..No final da última sessão do ciclo, manhã de 31 de julho de 2018, Carlos, que se casava à tarde nas Mercês, dirigia-se para a paragem do autocarro, quando o casal que enfrentou passava de carro e lhe perguntou se precisava de boleia. Ele disse para onde ia e eles abriram-lhe a porta do carro. Carlos sentou-se no banco de trás, o que para vítimas de crime não é nada confortável, mas era o sinal de que lhe estavam a dar uma segunda oportunidade. Aquele casal tinha-lhe dado a sua confiança, o que para ele "foi um momento feliz"..Luís Gagliardini Graça, presidente da Confiar, conhece Carlos já há uns anos, quando lhe começou a dar aulas de ética na prisão e diz que "este homem é uma coisa do outro mundo. Ele era dos que nunca faltavam, sempre atento e a querer participar. Fez o seu caminho e o que disse ao homem que o deixou sem olho é das frases mais restaurativas que podem ouvir-se. Aquele homem de certeza que nunca mais irá esquecer-se da situação"..Carlos Barbosa, agora com 42 anos, tem as suas raízes na ilha do Fogo, em Cabo Verde, mas já nasceu em Lisboa, na freguesia de São Jorge de Arroios. Viveu sempre com os pais e cresceu na Linha de Sintra. Ele é o único rapaz no meio de seis irmãs. "Era o único rapaz e uma peste", diz. Ao ponto de a mãe, "cansada das minhas asneiras, pedir ajuda ao tribunal. Foi quando me mandaram para um colégio [centro educativo]. Não sei porque fazia aquelas coisas, acredite. Não tinha necessidade, mas não consigo sequer explicar o que se passava na minha cabeça", assume..Na Casa de Saída da Confiar, num bairro de Cascais, e da qual é responsável pelo funcionamento, Carlos desenrola aos poucos a vida que levou, entre silêncios, pausas, mas nunca fugindo às perguntas. Hoje pensa nas vítimas que fez: "Tenho pena, muita pena, quando era miúdo não pensava em nada e depois, a partir dos 12 anos, só pensava em dinheiro para comprar drogas. Só lhes posso dedicar a minha compaixão.".Aos 13 anos deixou a escola, andava na quarta classe e já consumia drogas.Aos 13 anos ainda frequentava a quarta classe, já consumia drogas. O pai deu-lhe a escolher: ou estudava ou ia trabalhar. Ele escolheu trabalhar, foi para as obras. "Ao fim de uma semana, o meu pai perguntou-me se queria voltar à escola, disse que não, continuei nas obras. Não gostava da escola. Faltava muito e chumbava, hoje vejo que fiz mal.".Agora, a meses de terminar a liberdade condicional, 27 de maio de 2020, Carlos voltou à escola para tirar o 9.º ano, através do programa de formação profissional do IEFP. Em janeiro começa um curso de barbeiro para tentar concretizar um sonho, ou melhor, o seu projeto, o Barbosa Barbeiro. "Quero andar de escola em escola e nos bairros sociais com uma carrinha a cortar o cabelo às crianças e aos jovens, quem pode pagar, paga, quem não pode, não paga, mas sempre passando a mensagem da minha vida. Procurem o bem, o caminho certo, resistam ao mal", explica..É um apaixonado por ténis, gosta de moda, de se arranjar, vai ao ginásio, já tem a sua carta de condução no bolso e no bairro todos o conhecem. Frequenta o único café, foi bem recebido, e não importa que seja um bairro social. Sai cedo de casa para o trabalho, chega tarde, vai às suas aulas, à sua formação e acompanhamento, e depois descansa..Os fins de semana passa-os ali, tantas vezes com o filho de 3 anos, "é o meu príncipe. Brincamos, vemos filmes, saímos". Está a tratar do divórcio, "é assim, não resultou", mas a vida continua. Da construção civil traz um salário, confessa que o seu sonho é barbearia para crianças, mas o que gosta mesmo de fazer é de estar na construção e de "ver as coisas a crescer"..Foi ele que recuperou a sede da Confiar e a casa onde vive. Agora, acredita nele, acredita que vai conseguir concretizar mais sonhos e o seu projeto Barbosa Barbeiro. Já está inscrito no curso de barbeiro, já tem a ajuda da Confiar, só precisa de um patrocinador.."O meu amigo Luís disse-me um dia uma frase que nunca esqueço. Cada homem tem dois cães dentro de si, um bom e outro mau, só tem de escolher o que quer alimentar. É esta mensagem que quero passar às crianças mais vulneráveis, eu era muito influenciável, bastava dizerem-me 'bora, bora lá, fazer isto ou aquilo, bora tomar isto ou aquilo', eu ia, sem pensar. Agora sei a vida que quero para mim"..Começou por tirar fruta e chocolates das lojas, acabou em assaltos a casas.Entrou no crime como tantos outros amigos do bairro, "com pequenas coisas, nas lojas tirava fruta e chocolates". Depois foi crescendo, "comecei a consumir drogas e tornou-se uma bola de neve. Quando me meteram no colégio na Guarda ainda foi pior. Fugia, consumia mais, nem sei. Mais tarde mandaram-me para o colégio Padre António de Oliveira, em Caxias, estive lá quatro anos, até aos 18. Quando saí estava a fazer o curso de marceneiro, de que gostava muito, pagavam-me o passe para ir às aulas e fui sempre, acabei o curso, mas tinha voltado para casa dos meus pais, para os mesmos companheiros, e acabei por voltar à mesma vida, a assaltar casas, supermercados, tudo"..Foi preso pela primeira vez a 22 de janeiro de 1997. Tinha 20 anos. "Não esqueço esta data, jamais." Foi condenado a 13 anos e meio, mas a pena foi reduzida para oito, acabou por cumprir cinco anos e onze meses. O que viveu no Estabelecimento Prisional (EP) de Caxias e depois no de Leiria não fala, quando saiu trazia na cabeça outra vida, queria trabalhar, voltou às obras, mas "um ano depois não sei o que me passou outra vez pela cabeça. Voltei ao mundo do crime. Os outros puxavam por mim, mas quando se dava a brasa, quando eram apanhados, estava sempre sozinho, não sou de chibar ninguém". Pagou por outros?, perguntámos: "Não, assumia as minhas culpas, mas como nunca apontei ninguém, acabei sempre a ser preso sozinho, as duas vezes.".Voltou à cadeia em 2003, em setembro, uma data que quer esquecer. Foi condenado a 21 anos e meio, a pena ficou em 17, cumpriu 12 e está há cinco anos em liberdade condicional. Em Caxias esteve mais de um ano, e, em 2005, passou para o Linhó, onde cumpriu o resto da pena..Mas, um mês depois de ali estar, a mãe morreu, não o deixaram ir ao velório ou ao funeral, e para ele "foi o clique para mudar de vida. Marcou-me muito. Senti que tinha batido no fundo do poço, mas que vida é esta?, perguntei tantas vezes. Não é isto que quero para mim. Fui ter com a psicóloga da prisão, a Dra. Cátia, e pedi ajuda"..Este dia também não esquece, foi quando percebeu que quem precisa tem de dar o primeiro passo. "Pedi ajuda e levantei-me." Determinado, decidiu largar as drogas a frio, sem substitutos, a sofrer muito, como diz, mas valeu a pena. "Só pensava no tempo que já tinha perdido na minha vida. Estou cá fora há cinco anos, deram-me condicional por bom comportamento. Lá dentro estudei, tirei cursos e aprendi a fazer muita coisa. Sempre fui um curioso, tanto para o bem como para o mal, mas agora estou no caminho certo.".Começou por ser acompanhado psicologicamente, depois foi conhecendo outras pessoas que lhe deram força e o motivaram para a mudança. "Passei a ir à missa do padre Dâmaso aos domingos e conheci a D. Blanca, que tratava da igreja. Tínhamos uma tarde em que conversávamos, rezávamos, desabafávamos, tocávamos, criámos uma banda, eu estava a aprender baixo, e já me safava [ri-se], depois apareceu o meu amigo Luís, com a associação Confiar, e se hoje estou aqui é graças a ele", afirma..Aos poucos foi construindo outra vida mesmo entre grades. Aproveitava as aulas de ética de Luís para aprender mais e mais, "abriu-me outros horizontes". Na prisão a mudança não é fácil, mas, desta vez, tinha o seu objetivo traçado, sabia o que queria, e manteve a sua atitude, passou a dar conselhos aos colegas, embora "aos mais novos fosse difícil, não querem saber se passámos fases incríveis, não querem ouvir o que vem a seguir, não acreditam que também lhes vai acontecer a eles. Foi o que eu fiz também"..Quando chegou à fase de entrada no RAVE [regime aberto virado para o exterior] continuou "firme e hirto para não voltar atrás". Acabaram por lhe dar condicional durante cinco anos. Saiu, tinha família à espera, menos a mãe, deixou de viver na zona onde vivia, mas mesmo que "voltasse lá, com a minha maneira de ser e de pensar de agora, acredito que jamais me desviaria do caminho. Estou determinado. Sei o que quero e vou à luta"..Ao filho de 3 anos diz que não lhe vai esconder nada, "vou mostrar-lhe o que fui, tenho um DVD guardado. Depois vou acompanhá-lo, mostrar-lhe o caminho do bem, desviá-lo do mal".. "Já perdi muito. Prisão, nunca mais. Sinto-me grato pelo que tenho agora"."Sr. Artur, sabe que este tribunal pode condená-lo a 25 anos de prisão e que você ainda teria de viver várias vidas para pagar o seu crime." Artur Rodrigues sabia, ele estremeceu e o guarda prisional que estava com ele também. Era a terceira vez que era julgado e a terceira em que o seu caminho era a prisão. Para ele, as duas primeiras situações não tiveram gravidade, mas esta tinha, embora, sublinhe, "não tivesse matado ninguém. A violência não era a minha praia". Foi condenado a 12 anos, cumpriu sete..Hoje, aos 66 anos, em liberdade desde o dia 21 de outubro e a viver na Casa de Saída da Confiar, por "não ter para onde ir", Artur admite que pagou pela "sua criatividade", teve de responder pelo uso de cartões de crédito clonados. "Foram uns 200 ou 300, já não sei bem. Sei que vivi assim uns quatro anos. Imagine, cada cartão dava uma moldura penal que podia ir de cinco a oito anos, veja a gravidade da situação", admite..Os cartões eram clonados por um amigo que vivia em França. "Ele era hacker, entrava com facilidade nos sistemas de bancos estrangeiros, nunca atuou em entidades portuguesas, e clonava cartões e os códigos dos cartões enviava-os para mim, eu ia aos casinos e levantava o que podia, caixa a caixa, até haver plafond no cartão. Depois mandava uma parte para ele e ficava com outra. Não fui preso por causa do jogo, mas por isto.".Foi detido no dia de anos da única filha que tem e de quem perdeu o contacto, 24 de junho de 2000, "ela fazia 18 ou 20 anos, agora tem três filhas, lindas, mas não as vejo". Artur nunca andava com os cartões, por precaução, destruía-os sempre assim que os usava. Naquele dia, foi traído pela confiança que tinha em si, "julgava-me o maior", mas também por querer ajudar o filho de um amigo.."O miúdo ia casar-se, o pai estava preso e não tinha dinheiro para o ajudar. Então dei um cartão ao miúdo, disse-lhe que não era legal o que lhe ia propor e perguntei-lhe se era capaz. Ele disse que sim, depois não teve coragem e pediu a um amigo que fosse ele ao casino levantar dinheiro com o cartão. Só que o amigo aldrabou-o, foi ao casino e disse-lhe que o cartão não tinha nada. Quando o miúdo me conta isto, arrependi-me logo de tentar ajudá-lo.".Um dia depois, a 23 de junho, está fazer vigilância num condomínio quando lhe aparece o tal amigo do miúdo. "Não o conhecia, só depois soube que tinha estado preso e que dava informações à polícia. Perguntou-me se tinha mais cartões, eu percebi logo o filme, mandei-o entrar para a minha sala e disse-lhe que ele tinha ali um telefone para ligar a quem quisesse para lhe trazerem o dinheiro que tinha tirado do cartão, senão havia consequências. Foi o meu mal", confessa..Na altura, ele fez exatamente isso. Ligou à mulher, que lhe levou o dinheiro, mas na noite seguinte Artur tinha a polícia à sua espera no condomínio. "Pareciam uns rufias, bateram-me no vidro, disse-lhes que o condomínio só abria às sete da manhã, eles insistiram e quando saio à porta mostram-me os crachás. Pensei, estou feito. Tinha dois cartões comigo para ir levantar dinheiro para a prenda e a festa da minha filha. Revistaram-me e fui direitinho para a esquadra.".Ao olhar para trás, tantos anos depois, Artur questiona: "Para quê querer mais dinheiro? Eu tinha dois empregos, trabalhava na construção civil e na vigilância. Às vezes nem ia à cama, outras saía das obras às cinco da tarde, ia a casa dormir um bocado e às 11 da noite já estava na vigilância. Nem sei como tinha tempo para jogar", explica, desabafando: "O jogo é o pior vício de sempre, mais do que o do álcool e o da droga."."Tenho vergonha da vida que levei até 2007, a partir daqui tentei fazer tudo certo".Daquela vez, tinha dito a si próprio que ia mudar de vida, "queria uma vida limpa". E assume: "Tenho vergonha da vida que fiz até 2007, mas nunca fiz mal a ninguém. A partir daqui tentei fazer a minha vida certinha", mas voltou mais duas vezes à prisão, por desobediência, conduzir sem carta. "Aos 50 anos estava preso e não pude renovar a carta, quando saí precisava de conduzir para trabalhar."."Fui apanhado várias vezes. O juiz chegou a dar-me serviço comunitário, que cumpri. Depois fui apanhado outra vez e o juiz deu-me uma pena de nove meses. Saí, mas precisava de trabalhar, conduzia máquinas, tinha de andar de obra em obra e não tinha dinheiro para renovar a carta. Ao fim de ter sido apanhado umas 14 vezes, o juiz deu-me cinco anos e dez meses. Cumpri quatro anos.".Artur nasceu no Xai-Xai, em Moçambique, em 1953, onde ficou até 1980. "Nasci português e pensei que havia de ser português até morrer e, por isso, recusei a nacionalidade moçambicana, mas queria ficar lá, era ali que tinha as minhas coisas, os meus negócios, os meus amigos, mas chegou uma altura em que não deu mais e tive quase de fugir", relembra..Aterrou no Aeroporto da Portela a 15 de outubro de 1980. "Tinha 50 escudos no bolso, vestia calções, camisola de alças, tinha chinelos de praia, e chovia bolas de granizo. Não trazia documentação, foi um problema para passar na alfândega, disse-lhes que vinha fugido, que era português e eles confirmaram que sim."."Em Lourenço Marques, Maputo, tinha sido detido duas vezes, depois da independência, sem saber porquê, não tinham motivos, apenas havia gente com inveja da vida que levava, mas acabavam por me soltar. Quando percebi que ia ser preso outra vez, vim-me embora.".A mãe e o pai, engenheiro técnico agrário do Estado português, ficaram até 1976, depois tiveram de regressar. "O meu pai foi reintegrado cá no Ministério da Agricultura, a minha ex-mulher, a quem arranjei trabalho num banco, teve de vir também em novembro de 1977, para ser reintegrada aqui nos quadros. Combinei com ela que saía de lá em janeiro, mas passou janeiro e quase três anos até voltar. Eu era assim, reconheço, não fazia mal a ninguém, mas achava que não tinha de dar contas a ninguém, e ela deu-me os papéis do divórcio.".Quando chega a Lisboa, depois de ter perdido todo o contacto com a família, só sabia que os pais viviam no bairro Pai do Vento, mas acreditou sempre que iria encontrá-los. "Sou evangélico, nazareno puro, acredito que o nosso destino está traçado à nascença, e que quem faz o bem também recebe o bem." Assim que sai à porta do aeroporto para fumar um cigarro, vê alguém dentro de um táxi a olhar para ele. "Ó Artur, o que fazes aqui nessa figura?", diz-lhe. "Eu fiquei espantadíssimo. Era um amigo meu de Moçambique. Foi ele que me ajudou a ir ao Ministério da Agricultura à procura do meu pai, que tinha sido reintegrado nos serviços, deram-me a morada e fui lá.".O pai não queria acreditar. Abraçou-o e levou-o para casa. Andou a bater a várias portas, teve ajuda da Santa Casa, na altura, de sete contos e quinhentos, mas queria trabalhar. Um dia passou numa obra e perguntou se precisavam de pessoal, os que lá estavam apostaram em como ele não aguentava até à hora de almoço. Enganaram-se. Ficou até ao fim do dia e por mais nove anos, "aprendi tudo o que tinha a aprender na construção naquela empresa".Foi preso pela primeira vez em 1988, estava no momento errado no lugar errado.Foi ali que trabalhou até ser preso pela primeira vez, em 1988. "Estava no momento errado no lugar errado", assegura. "Estavam a arrombar uma garagem eu andava na zona e o guarda-noturno levou-me também para a esquadra, estive oito meses em Monsanto, quando fui a julgamento o juiz mandou-me embora, não havia nada contra mim. Os meus pais nem souberam disto.".A vida de Artur vai longa, mas é aqui que a sua "criatividade", começa a fervilhar, para "as trafulhices", admite. "Tive sempre alguma habilidade. Bastava olhar para uma assinatura que a conseguia fazer, experimentei em cheques, mas fui apanhado e voltei a ser preso em 1993.".Foi condenado a um ano e meio de prisão. Os pais ficaram doidos. "Alugaram uma casa ao pé do Linhó para me irem ver. Só que na altura tinha um familiar que era diretor-geral das prisões, que para fazer mal aos meus pais, assim que soube que estavam cá, transferiu-me para Alcoentre. Quando cheguei lá, o diretor, que era uma pessoa espetacular, pergunta-me o que estava ali a fazer. Eu tive de lhe responder: 'Diga-me o senhor. Eu estou preso, vou para onde me mandam.' Ele estranhou, porque para ali só iam reclusos com penas com mais de dez anos, então disse-me: 'Vais ficar na prisão mas a trabalhar fora.' Mandou-me tomar conta do bar dos guardas. O espaço era espetacular, só servia copos de vinho, eu passei a ter café, a fazer tostas e sandes", ri-se..Cumpriu a pena. Voltou a Lisboa e teve emprego na Topcar, "era um cartão de desconto para várias lojas, dizia que era um cartão que vendia sonhos, mas depois fui para a vigilância. Estava bem até um dia um amigo me levar a um casino. Foi a minha desgraça"..Entregou-se ao jogo e ao crime dos cartões de crédito. Pagou caro. Na prisão jurou mudar de vida, "estive três anos em Caxias, trabalhava, fazia obras, pintava, estive na cozinha, depois fui transferido para Alcoentre, para mal dos meus pecados e dos deles"..Desta vez, "fiquei a trabalhar lá dentro. Quis que registassem o número da minha irmã, que vivia em Angola, para falar com ela. A diretora da altura não deixou. E disse-lhe: 'Não me vai isolar.' Um dia apanharam-me com 14 telemóveis. A minha educadora, que era uma santa, quando soube até chorou, eu estava quase a sair"..Artur tem mais e mais para contar. As peripécias não acabam. Fala com facilidade, mas diz que era preciso mais tempo para se conhecer a sua vida ao pormenor. Hoje sente-se um privilegiado por sair da prisão e poder ficar na casa da Confiar..Era esta a oportunidade que esperava ter tido quando saiu em 2007. Já sem pais e sem ninguém por cá, foi para casa do amigo que o foi buscar, em Porto Salvo. "No dia seguinte saí à rua e passei por uma empresa de construção. Perguntei se precisavam de gente, preenchi uma ficha, mas disse ao senhor que lá estava que tinha acabado de sair de um EP. Ele respondeu: 'Que tenho eu a ver com isso? Terei a ver se for admitido e daí para a frente'.".Ali ficou a trabalhar, precisava de conduzir, trabalhava com máquinas, andava de obra em obra, mas não tinha dinheiro para a renovação da carta. "Tinha decidido que a minha vida tinha de ser limpa e, por isso, não queria pedir a ninguém que me tratasse do assunto, só que fui apanhado várias vezes. Uma vez fiquei preso em Caxias nove meses, saí e voltei às obras, fui apanhado de novo, uma vez, duas, perdi a conta, e o juiz condenou-me a cinco anos e dez meses, cumpri quatro, entrei a 19 de março de 2015 e estou a sair agora em condicional.".Aos 66 anos, Artur saiu por bom comportamento. Foi sinalizado pelos educadores da prisão à associação Confiar. Não tinha para onde ir, nem ninguém para o ajudar. O primeiro contacto que teve com a associação foi ainda na prisão, mesmo na véspera da saída precária antes de receber a notificação da condicional e de sair em liberdade no dia 21 outubro..O destino era a Casa de Saída da Confiar, que o está a ajudar também com toda a documentação, a procurar trabalho, já tem currículo, e a resolver outras situações pendentes. Artur já tem passe social. "Conduzir sem carta nunca mais", afirma, "já sofri o bastante e já perdi muito na minha vida"..Agora, prepara-se para se restaurar com a vida e com quem perdeu pelo caminho, sobretudo com a família..Fazer a diferença orientando, encaminhando e reabilitando.Carlos e Artur foram os primeiros reclusos a ter este tipo de ajuda da Confiar. Carlos entrou na casa há um ano, no dia 1 de dezembro de 2018, Artur há poucos dias. Sabem que é um passo de transição para uma nova vida, porque o objetivo deste projeto é dar apoio a quem quer seguir em frente e não tenha para onde ir..Neste momento, o gabinete de apoio à liberdade da Confiar, que foi criado logo após o protocolo assinado entre a Confiar e a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Câmara de Cascais e ISCSP, está a acompanhar 18 reclusos dos EP do concelho de Cascais, dez em Sintra e oito no Linhó. "Foram sinalizados pelos serviços dos EP como estando para sair em liberdade dentro de seis meses ou um ano e precisarem de ajuda. A Confiar depois fala com os reclusos e percebe as necessidades que têm. Se é a nível da habitação, emprego ou formação. Cada caso é um caso", explica a psicóloga Verónica Tiperciuc, responsável pelo gabinete de apoio à liberdade..A Confiar, Associação de Fraternidade Prisional (PF) integra a organização não governamental Prison Fellowship, com assento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, que promove a justiça restaurativa. Em 2013, e para reforçar esta missão, entra no programa europeu Building Bridges..Começa a ter resultados e quer crescer. Tem como missão acabar com o estigma de que "um criminoso é um criminoso", reduzir a reincidência, cuja taxa mundial aponta para os 75%. O presidente da direção, Luís Gagliardini Graça, sublinha que cada homem é maior do que o seu erro" e deve ter direito a reabilitar-se..O sistema não consegue dar resposta a quem passa por estas situações. A reinserção é pouca ou nenhuma, mas o presidente da Confiar, que nesta semana assinalou os 20 anos com um colóquio na Assembleia da República, diz que tudo poderia ser diferente se houvesse mais espaço para a justiça restaurativa.