Um vazio, uma ausência. É nisso que Justin Kurzel quer levitar as suas imagens, neste caso a radiografia de um dos maiores massacres na Austrália a partir do olhar incandescente do autor do crime, o jovem Nitram, do qual a câmara parece fazer um pacto de apiedar a sua loucura. O logro ou a desilusão é que o cineasta australiano não tem mãos para convocar uma desordem de coração no espectador. É daqueles casos em que dificilmente alguém "fica" com a errância do rapaz do massacre..Pois bem, para quem não se lembra, em 1996, em Port Arthur, subúrbio de Hobart, cidade da Tasmânia, ocorreu um massacre imprevisível. Um jovem de 28 anos assassinou 35 pessoas numa série de disparos numa área turística, deixando ainda feridas dezenas de vítimas. Um crime hediondo que chocou a sociedade australiana e obrigou o Estado a mudar a lei de posse de armas. O que vemos nesta reconstituição, felizmente pouco clássica, é a maneira como o criminoso vai lentamente perdendo o juízo. Nitram, na verdade Martin Bryant, era um jovem socialmente inadaptado. Sem estudos e a viver com os pais, antes do dia em que decide friamente matar inocentes de forma indiscriminada, torna-se o improvável amigo de uma senhora milionária. Mas depois da dita morrer, a fortuna da senhora segue para Nitram. E é com esse dinheiro que a sua loucura escala e que tem possibilidade de comprar as armas para o dia do holocausto de Port Arthur....De Justin Kurzel conhecemos duas facetas: a de cineasta de encomenda, como é o caso do desolador Assassin"s Creed, mas também a do realizador com ideias, como era o exemplo do anterior, O Bando de Ned Kelly, verdadeiro mergulho punk na mitologia criminosa da Austrália. Aqui, quer retomar as suas origens de cineasta indie e é nessa tentativa que se espalha ao comprido. Quer ser naturalista sem saber bem as regras do jogo e usa e abusa de uma pose observacional armada ao pingarelho, incapaz de plantar qualquer tipo de circulação de emoção..São os "blues" à australiana, tudo em modo de representação, tão gráfica como conceptual, mas sem um discurso vivo. Nesse sentido, sente-se que Kurzel não está de corpo e alma no filme. Aliás, tudo é anunciado, tudo é mole nesta tragédia que se pretende fria. Fria nunca, apenas requentada..Felizmente, há um ator vivo, Caleb Landry Jones, que o leitor poderá lembrar-se de prestações insuperáveis em obras como Três Cartazes à Beira da Estrada, de Martin McDonagh, ou Histórias que Fazem o Coração Crescer, de Lone Sherfig. Em Cannes a sua interpretação ganhou a Palma de melhor ator e é de facto ele a única pulsão de um filme de onde sai muito pouco. Jones é penetrante nessa alusão a uma angústia muito próxima de um abandono infantil. O seu psicopata australiano merecia um outro filme... Algo que não se amolecesse perante um desconcertante fascínio pelo tema da saúde mental. E "tema" e mais "tema" não fazem bom cinema, sobretudo quando nos créditos finais aparecem números sobre o flagelo da política de posse de armas....dnot@dn.pt