"Remeto para o relatório", "não posso ir para além do relatório", "não posso falar sobre isso", "não vou falar sobre conclusões", "não concordo", "sim", "verdade", "correto". Foi numa versão de atendedor de chamadas que Robert Mueller, ex-procurador especial que liderou a investigação sobre as interferências russas nas eleições americanas de 2016, se apresentou nesta quarta-feira perante a Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA..Os democratas, maioritários nesta câmara, tentaram transformar esta audiência numa versão em filme do relatório de 448 páginas que foi elaborado por Mueller e apresentado, em abril, pelo procurador-geral dos EUA, Wiliam Barr. Na esperança de extrair do seu testemunho material inequívoco para justificar um processo de impeachment contra Donald Trump. Mas Robert Mueller, de 74 anos, recusou ser a personagem principal desse filme, indo ao ponto de recusar recitar, ele próprio, as passagens do relatório sobre as quais os representantes queriam esclarecimentos adicionais. Quem as leu foram os eleitos que o estavam a questionar. Mais do que uma vez. Em certos casos..O relatório, ao qual Mueller se tentou sempre manter fiel, recusando alimentar uma guerra política nos EUA, foi o resultado de uma investigação de mais de dois anos e que custou cerca de 30 milhões de dólares, ou seja, 26,8 milhões de euros. Muita controvérsia, muitas notícias, muitos tweets do presidente dos EUA choveram, entretanto, na internet. Trump sempre negou ter havido conluio com os russos e obstrução à justiça durante a investigação. E a Rússia do presidente Vladimir Putin sempre negou, por seu lado, ter procurado interferir nas presidenciais de 2016, em que foram filtrados e-mails da campanha de Hillary Clinton, que era, à altura, a rival democrata de Trump na corrida à Casa Branca.. CLIQUE AQUI PARA VER O RELATÓRIO CENSURADO DE ROBERT MUELLER: .Durante três horas e meia, o ex-diretor do FBI foi questionado pelos 41 membros da comissão de Assuntos Jurídicos da Câmara dos Representantes. Segundo uma contagem da CNN, Mueller evitou responder aos congressistas 111 vezes e remeteu para o relatório 39 vezes. Segundo a CBS News, o ex-procurador especial respondeu com recurso a uma só palavra 101 vezes. O tema da obstrução à justiça por parte de Trump dominou a sessão. Na sala 2141 do edifício Rayburn do Capitólio, apinhada de gente, entre representantes, jornalistas, fotógrafos e conselheiros, vários ecrãs foram exibindo partes do relatório Mueller ao longo da primeira sessão..Na segunda parte da audiência, Mueller teve de enfrentar os eleitos da comissão de Informações da Câmara dos Representantes, para detalhar melhor o que se entende por interferências russas, como foram realizadas, com o auxílio de quem e com que objetivo. Nesta segunda sessão, o ex-diretor do FBI recusou responder 82 vezes e remeteu para o conteúdo do relatório em pelo menos quatro ocasiões, referiu uma contagem da CNN. A comparência de Mueller demorou quase sete horas ao todo..O que há a tirar então desta comparência de Robert Mueller no Congresso?.- Mueller disse que, no que toca à obstrução da justiça, o seu relatório não isentou de culpa o presidente Trump. Ao contrário do que este afirmou. "O senhor inocentou totalmente o presidente?", perguntou-lhe o presidente da comissão de Assuntos Judiciários, Jerry Nadler, democrata. "Não", respondeu o ex-procurador especial..- Questionado sobre se o Congresso poderá ter acesso a uma versão não censurada do seu relatório, Mueller respondeu: "Não me cabe a mim dizê-lo." E esclareceu que a decisão de não tornar o relatório todo público veio do Departamento de Justiça..- O ex-procurador especial assegurou que a ingerência russa na campanha para as eleições de 2016 "não foi uma farsa", como chegou a afirmar Trump. E que a sua investigação também "não foi uma caça às bruxas" contra o presidente, como também chegou a dizer o chefe do Estado norte-americano..- Questionado sobre se a campanha de Trump se congratulou com a interferência russa nas eleições, o ex-procurador especial disse que sim. Embora tenha admitido que também a campanha de Hillary Clinton foi beneficiada por contas russas que tentaram influenciar nas redes sociais a campanha para as presidenciais. A WikiLeaks teve acesso a e-mails da campanha da rival democrata de Trump na corrida à Casa Branca em 2016, tendo-os divulgado em seguida. Questionado sobre se a campanha de Trump foi delineada por forma a beneficiar das revelações feitas através da divulgação desses e-mails, Mueller respondeu que era afirmativo. "Que candidato presidencial quis beneficiar a campanha de hacking?", questionou o representante democrata Jim Himes, eleito pelo Connecticut. "O senhor Trump", retorquiu Mueller. O responsável considerou "problemática" a participação na WikiLeaks na filtração de e-mails da campanha democrata. Trump foi citado, várias vezes, no passado, a dizer "Adoro a WikiLeaks"..- Ken Buck, republicano, perguntou se existem elementos para acusar Trump de obstrução à justiça depois de ele sair da Casa Branca. E Mueller respondeu afirmativamente. "Pode ser acusado de um crime depois de sair do cargo?", perguntou Buck, eleito pelo Colorado. "Sim", respondeu Mueller. Vários jornalistas notaram, de imediato, que um republicano causou mais dano a Trump nesta audiência de Mueller do que todos os representantes democratas juntos. Mais tarde, na comissão de Informações, Mueller disse esperar que o trabalho da sua equipa de investigação sirva como "um sinal", "uma bandeira" e "uma mensagem para os que vierem depois"..- Mueller afirmou, mais uma vez, que a razão pela qual não acusou Trump é porque as regras internas do Departamento de Justiça não permitem como opção acusar um presidente em funções. "A razão pela qual não acusou Donald Trump é a diretiva interna da OLC [Office of Legal Counsel], segundo a qual não é possível acusar um presidente em funções, certo?", perguntou a Mueller o representante democrata Ted Lieu. O ex-procurador especial respondeu: "Correto." Apesar de tudo, no início da segunda sessão, perante a comissão de Informações, fez uma retificação que pode retirar de imediato argumentos aos democratas. O ex-diretor do FBI explicou que a diretiva da OLC o impede de sequer avaliar se Trump deveria ou não ser acusado. "Como dizemos no relatório, como disse no início da audiência, não chegámos ao ponto de determinar se o presidente cometeu ou não um crime.".- Na reta final da primeira sessão, Mueller foi questionado sobre uma possível destituição de Trump: É ou não verdade que o seu relatório não conclui pela recomendação do impeachment?", perguntou-lhe o representante republicano Mike Johnson, eleito pelo Luisiana. "Não vou falar sobre conclusões", "Não vou falar sobre esse tema", replicou..- Durante a audiência, Mueller, que é ele próprio do Partido Republicano, negou que tivesse ambicionado o cargo do diretor do FBI durante a administração de Trump. "O meu entendimento foi [que eu] não estava a candidatar-me ao lugar, mas de que estava a ser questionado sobre o que era preciso para ocupar o lugar. Estive reunido com o presidente... a falar sobre o cargo, mas não foi para me candidatar ao lugar", declarou Mueller, sobre a reunião que teve com Trump em 2017, antes de ser nomeado para liderar a investigação sobre as interferências russas nas eleições de 2016. O escolhido para o cargo, depois de James Comey ter sido demitido, foi Christopher Asher Wray. No Twitter, Trump deu a entender que Mueller, de facto, queria ser o escolhido para diretor do FBI, cargo que já tinha ocupado entre 2001 e 2013, durante a administração de George W. Bush e de Barack Obama..- Questionado sobre se membros da campanha de Trump apagaram comunicações ou usaram comunicações encriptadas, como diz o seu relatório, Mueller respondeu: "Acredito que foi esse o caso." E sobre se acredita que a interferência russa foi um caso isolado, o ex-procurador especial retorquiu: "Não foi só uma única tentativa, estão a fazê-lo enquanto estamos aqui sentados. E vão tentar fazê-lo nas próximas eleições [de 2020].".Qual a reação da oposição democrata à comparência do ex-procurador especial?.Paul Kane, jornalista do Washington Post acreditado junto do Congresso, escreveu no Twitter: "Não poupando palavras: esta está a ser uma má manhã para a multidão pró-impeachment. Eles precisavam de um testemunho corajoso para mudar a opinião do público (e a de Pelosi). Isso ainda não aconteceu, até agora. Faltam ainda muitas horas. Vamos ver.".Num total de 235 democratas na Câmara dos Representantes, há agora 89, pelo menos, que são favoráveis ao impeachment de Trump. Conta a Reuters. Mas segundo a rádio NPR esse número terá subido já para os 93. Os outros esperam para ver o que diz Mueller e se, porventura, houver revelações que permitam envolver o presidente, se os eleitores norte-americanos estariam ao seu lado num eventual processo de destituição..Nancy Pelosi, a líder da Câmara dos Representantes, que desde novembro é dominada pelos democratas, alertou desde logo que um tal passo pode revelar-se fator de divisão no partido da oposição numa altura em que Trump já lançou a campanha para a sua reeleição em 2020..Apesar de tudo, Cory Booker, um dos mais de duas dezenas de candidatos à nomeação democrata com vista às eleições presidenciais de 2020, disse que "há indícios suficientes para que a Câmara dos Representantes dê início ao processo de impeachment contra o presidente". Booker, citado pelo The Guardian, falava em Detroit na convenção da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP)..Além de Booker, outros candidatos democratas à presidência dos EUA consideram haver matéria para iniciar o impeachment de Trump. "O povo americano tem o direito a ter acesso ao relatório completo de Mueller, sem estar censurado. O que vimos já é alarmante o suficiente", tweetou Kirsten Gillibrand. "Que comece o processo de impeachment já", tweetou Beto O'Rouke. "É tempo de começar o processo de impeachment", afirmou, também no Twitter, Elizabeth Warren..Pegando numa pergunta do representante Ted Lieu, democrata eleito pela Califórnia, bem como na resposta que Mueller lhe deu, a candidata Kamala Harris escreveu no Twitter: "Vou dizer de novo: Robert Mueller basicamente fez referência ao impeachment como no seu relatório. O Congresso tem de responsabilizar este presidente. A câmara deve começar o processo de impeachment.".Qual a reação dos republicanos e de Donald Trump ao testemunho do ex-diretor do FBI?.Enquanto Mueller testemunhava, Donald Trump ia fazendo, em jeito de tweets e retweets, uma espécie de análise anotada. "Isto está a ser uma desgraça para os democratas e um desastre para a reputação de Robert Mueller", escreveu o presidente republicano na sua conta oficial do Twitter.."Mueller foi questionado sobre se a sua investigação foi impedida e disse que não. Por outras palavras, NÃO HOUVE OBSTRUÇÃO", escreveu o presidente noutro tweet. "Gostaria de agradecer aos democratas por terem realizado a audiência desta manhã. Agora, depois de três horas, Robert Mueller converteu-se num embaraço para o nosso país", afirmou o chefe do Estado norte-americano noutro post.."Um embaraço épico", classificou a assessora de imprensa de Trump Stephanie Grisham, segundo o The Guardian. "As últimas três horas foram um embaraço épico para os democratas. Esperamos mais do mesmo na segunda parte.".Enquanto os democratas se esforçaram por credibilizar o testemunho de Mueller, os republicanos esforçaram-se para a descredibilizar..James Sensenbrenner, republicano, acusou Mueller na comissão de Assuntos Jurídicos de ter levado a investigação por diante "para continuar à pesca", apesar de ter ficado claro que não podia processar um presidente em exercício..Mark Meadows, republicano da Carolina do Norte, um aliado de Trump, escreveu no Twiiter. "Mueller está com dificuldades em responder às perguntas. Não se lembra, com precisão, dos factos, das provas ou até mesmo das suas próprias conclusões. Pessoal - este tipo não liderou uma investigação. Quem o fez foi a sua equipa da Resistência Democrata. E usaram-na como uma arma para atingir o presidente que odeiam.".O advogado de Trump, Jay Sekulow, também desferiu duras críticas a Mueller e à sua investigação. "O testemunho revelou que esta investigação foi conduzida por um pequeno grupo politicamente enviesado, o qual tentou, o mais que pôde, estabelecer uma construção, uma conspiração, um conluio entre a campanha de Trump e a Rússia. O povo americano compreende que esta questão está terminada. Eles também sabem que o caso está encerrado."."A VERDADE É A FORÇA DA NATUREZA!", tweetou, após encerramento da audiência, o presidente Trump.