Ainda em junho tinham estado juntos. José Lopes foi com a filha ver a peça Gertrude Stein e Acompanhante, que a Escola da Noite apresentou no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa. No final do espetáculo, esperou à porta para cumprimentar as duas atrizes e suas amigas, Lucinda Loureiro e Cucha Carvalheiro. "Percebemos que ele estava mais velho mas estava bem e parecia feliz", recorda Lucinda Loureiro. "Não imaginávamos que estivesse a passar por dificuldades, ele não nos contou e penso que não terá contado a muita gente", diz a atriz que trabalhou com José Lopes em 1986 no espetáculo Os Negros, de Genet, com encenação de Rogério de Carvalho. "Ficámos muito próximos nessa altura", recorda. "Como é que não percebemos? Como é que deixámos que isto acontecesse?", lamenta Lucinda Loureiro depois de saber da morte de José Lopes, aos 61 anos, sozinho, numa tenda onde morava por não ter casa..E, no entanto, Lucinda Loureiro, atriz, também de 61 anos, não se surpreende. Afinal, os atores, e "todas as pessoas que trabalham no espetáculo de uma maneira geral", diz, estão entre os trabalhadores mais precários entre os precários. "Já praticamente não há companhias, são poucos os atores que têm contratos com um vínculo fixo a alguma entidade. As pessoas que trabalham habitualmente na televisão podem ter uma situação melhor, mas no teatro e no cinema vive-se à base de projetos", conta. É preciso estar constantemente à procura de trabalho e é preciso tentar poupar para os tempos em que o trabalho escasseia porque "para se ter direito ao subsídio de desemprego é necessário trabalhar durante oito meses seguidos para uma única entidade, o que é muito raro". "Estamos muito desprotegidos", conclui a atriz..Quando há trabalho, os ordenados são muito baixos. Um ator sénior a trabalhar com um contrato numa companhia pode ganhar cerca de 1200 ou 1500 euros por mês, valor de que ainda terá de fazer os habituais descontos. "Vivemos com 850 euros e temos de pagar a casa, a água, a luz, a comida, como toda a gente. E há quem tenha as despesas dos filhos", conta Lucinda Loureiro, sublinhando que apesar dos valores reduzidos, no meio artístico, esta até é considerada uma situação privilegiada: "Há pessoas que ganham muito menos. Os jovens aceitam trabalhar quase sem ganhar nada, para poderem ganhar experiência e fazer currículo. E os mais velhos às vezes aceitam participar também sem ganhar nada, só para não serem esquecidos, para não darem em malucos, para não morrer.".Estas são situações mais comuns num momento em que existe um estrangulamento no financiamento da cultura. Na terça-feira, mais de 300 artistas estiveram concentrados em frente ao Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, para exigir um valor imediato de 1% do Orçamento do Estado para a Cultura, em 2020, numa iniciativa convocada pela Plataforma Cultura em Luta. O protesto envolveu mais de uma dezena de sindicatos e estruturas que representam artistas´e outros trabalhadores da área da cultura, que vieram exigir um reforço do financiamento de uma área que consideram "o parente pobre" no governo. "Já não são questões pontuais. Há gerações de artistas que estão a viver em precariedade no país", disse na ocasião Hugo Barros, do Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE).."Os atores velhos são postos de lado".A esta situação acrescente-se as dificuldades específicas de uma profissão que é particularmente castigada pela velhice. A partir dos 45 anos, as propostas de trabalho diminuem drasticamente, é o que dizem os atores. "Quem pode começa a fazer plásticas muito cedo, é uma maneira de evitar essa situação", diz Lucinda Loureiro. Sobretudo as mulheres, que estão mais sujeitas a uma exigência estética que não se compadece com os anos que passam. "Há poucos papéis para velhos. E depois não tenho trabalho como atriz na televisão porque sou feia, sou gorda, tenho rugas, sou velha..." O espetáculo que fez com Cucha Carvalheiro, que tem 71 anos, era, também por isso, uma raridade, uma forma de combater esta mentalidade.."Os atores velhos são postos de lado, são esquecidos. Não me posso queixar porque tenho tido muita sorte e tenho sempre trabalho, mas não há muitos assim", admite o ator Ruy Carvalho, que, aos 92 anos, está neste momento em cena com o espetáculo Lulu, de Frank Wedekind, com encenação de Carlos Avilez, no Teatro Experimental de Cascais. "Tenho uma reforma mas nunca parei de trabalhar porque a reforma não me chegava", explica o ator..Mas para quem não trabalhou no Teatro Nacional como Ruy de Carvalho, para quem tem uma carreira de descontos incertos, o valor da reforma pode ser tão baixo que quase não dá para nada. "Os atores não têm reformas", declara o ator Carlos Areia, que tem atualmente 75 anos. Em 2017, numa entrevista a Daniel Oliveira, no programa Alta Definição, Carlos Areia contava: "Vivo com 342 ou 362 euros por mês, o complemento solidário para idosos. Sorte a minha ter uma família que me apoia." O artista admitia ainda que tinha sido obrigado a abdicar de algumas refeições e a fazê-las "mais ligeiras"..Depois deste desabafo, o ator, que conhecemos de várias telenovelas e de programas de humor como Maré Alta, recebeu algumas propostas de trabalho e neste momento, quando celebra os 50 anos de carreira, participa na novela Nazaré, na SIC, e lidera o elenco de dois espetáculos de comédia - Quero Ir Prá Ilha e Cartas na Mesa - que andam em digressão pelo país. "O mau tempo já lá vai", garante hoje Carlos Areia. "Os atores não são os únicos a ter dificuldades, claro, mas é verdade que à medida que se envelhece é mais difícil encontrar trabalho e não há qualquer apoio, somos completamente abandonados, o sistema falha no apoio às pessoas." O seu caso só não foi dramático porque teve quem o ajudasse, conta. "Não há fórmula para sair de uma situação destas. O melhor que nos pode acontecer nos momentos menos bons é estarmos rodeados de pessoas que nos ajudam.".Em agosto, numa entrevista ao DN, a atriz Graça Lobo, de 80 anos, contava como depois de ter tido uma vida privilegiada e de ter tido imenso sucesso era agora uma "sem-abrigo". Depois de um internamento hospitalar, quando lhe foi dada alta, e não sendo possível contactar nenhum familiar, teve de se sujeitar a viver num lar da Santa Casa da Misericórdia: "Tive de vender a minha casa, recebo uma reforma de 600 euros e tenho de viver em lares", explicava. Já tinha passado por alguns lares e concluía que "são todos muito maus". "Nesta tournée pelos lares, que ando a fazer, vejo esta miséria, esta pobreza, gente tão pobre, que fico aflita", dizia..O seu caso não é único. Todos os dias há 829 camas ocupadas por doentes com alta médica nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, o que corresponde a 4,7% do total de camas disponíveis nos hospitais portugueses. O principal motivo é a espera de resposta na rede de cuidados continuados, seguido da ausência de apoio familiar ou de outros cuidadores. São sobretudo cidadãos com mais de 65 anos e do sexo feminino. Passam, em média, três meses no hospital a mais do que o necessário, havendo quem atinja os oito meses, por não terem para onde ir..A Casa do Artista é uma das poucas instituições que se ocupam especificamente deste grupo social, os artistas do espetáculo: sonhado por Raul Solnado, o lar foi inaugurado em 1999 e tem capacidade para cerca de 80 pessoas, o que é manifestamente pouco. A lista de espera é longa..Depressão e vergonha.Sem querer revelar nomes, Lucinda Loureiro conta que conhece casos de algumas atrizes na casa dos 40-50 anos que "até foram vedetas nacionais" e que neste momento estão a viver do rendimento social de reinserção (menos de 200 euros por mês) e a passar por depressões. "Há pessoas que se tentam suicidar. Mas não querem que se fale de nada disto, têm muita vergonha. Mas eu acho que fazemos mal, devíamos assumir este problema para que as pessoas soubessem que isto acontece.".Também José Lopes só partilhou com poucos amigos que estava a passar por dificuldades. Tinha-se separado e tinha perdido o rendimento mínimo, contou o amigo António Alves Fernandes num emocionado texto que publicou no Facebook. "A vida proporcionou-lhe aplausos nos palcos de teatro, nas salas de cinema, nos convívios culturais, mas também se atravessou com muitos espinhos: um divórcio muito complicado, uma precariedade que afeta os verdadeiros artistas que não se vendem por 'dá cá aquela palha', um desemprego de longa duração, o fado português de o mérito artístico não ser reconhecido, a doença e a pobreza extrema. Durante muito tempo recusou, com a altivez de um príncipe, qualquer espécie de ajuda, e quando a obtinha, logo a distribuía por quem mais precisava. Era pobre (não de espírito) mas distribuía generosidade como um Rei. Estava doente mas perguntava sempre pela nossa saúde. Deu tudo aos outros e acabou sem nada...".O velório de José Lopes decorre na Igreja de São Cristóvão, na Mouraria, nesta quarta-feira, até às 23.00, com o funeral a partir na quinta-feira às 15.00 para o Cemitério da Ajuda.