Michael Cunningham (1952) está em Cascais desde maio a fazer uma residência internacional de escrita promovida pela Fundação Dom Luís I. Ao DN disse que Trump é o seu pesadelo e Portugal um país que o surpreendeu. Nestes meses tem estado a reescrever o seu próximo romance, a ler Fernando Pessoa, e admite voltar..Vamos fazer as duas perguntas necessárias para quem está no fim de uma residência literária em Cascais. A vila inspirou-o? Sim. Claro que são poucos dias para começar um projeto e o que tenho estado a fazer é rever um romance. Mas é ótimo estar assim num lugar não familiar, apesar de ser muito solitário pois sou o único escritor no hotel da Cidadela e não falo com ninguém. Até pareço o Hans Castorp no sanatório de A Montanha Mágica de Thomas Mann..Está curioso sobre a literatura portuguesa? Sim, comecei com Fernando Pessoa, que conhecia mas nunca lera. Infelizmente, é o único autor português que li apesar de a proprietária da livraria [a Déjà Lu] ter oferecido uma pilha de livros de portugueses..A língua portuguesa não o seduziu? É muito difícil percebê-la. Entendo algumas frases mas como quase não falo com ninguém não posso treinar..Consegue esquecer o seu presidente, Donald Trump, enquanto cá está? Esse é um assunto que ainda me choca... Ele ser presidente... Ainda acho que é inimaginável... Estou muito preocupado com o que vejo acontecer em Itália, em Espanha e em França. Portugal é praticamente a única parte do mundo ocidental onde não há uma extrema-direita significativa. É uma das razões porque gosto de Portugal, um dos poucos sem extrema-direita..Era capaz de ter começado um livro aqui? Creio que não porque vim com um propósito específico: a reescrita de um livro. A primeira versão estava uma confusão e precisei de repensar o livro desde o início na maior parte do tempo. Se voltar cá com a intenção de começar um romance será de uma forma completamente diferente..Como está a correr a segunda versão? Todas as tentativas de melhorar a primeira falharam até agora. Quando terminei percebi que não estava como eu queria, não funcionava, e quase abandonei o romance..É como estar no princípio... É quase como se estivesse a começar, sim. É muito doloroso perder tanto tempo a reescrever mas ele exigia que encontrasse o registo certo. O romance é baseado em ideias e as personagens estavam num comboio... Eu preciso que as personagens funcionem desde o princípio, não sou como o Jonathan Franzen que trabalha com ideias, portanto voltei a pegar nas personagens e nas situações só que num ângulo diferente..As personagens tomaram conta do texto? Sim, só que para mim se não começar com as personagens estou morto! Na primeira versão eles eram empregados da história e a sua tarefa era levá-la para a frente. Por muito que me custe recomeçar, quero tê-las de volta conforme desejo que sejam..Não gostava delas ou achava que os leitores não iriam apreciar? O problema é estar consciente que não estava a correr como queria. Sempre haverá leitores que irão ou não gostar de um livro e isso não pode ser uma preocupação..Será capaz desse resultado na reescrita ou parece um desafio maior do que é possível? É com certeza um grande desafio! O que quero é encontrar uma fórmula poderosa para contar a história destas personagens e, tal como muitos escritores, nunca acho que o romance esteja tão bom como era o meu desejo. No entanto, neste momento já acredito que chegarei ao ponto que pretendo..Nos outros livros foi capaz de escrever o que tinha imaginado antes de começar? Um romance é como o trabalhar com os tradutores, porque ao falar com eles percebo que o livro na língua original já é ele próprio uma tradução do melhor livro que tinha na cabeça..Em A Rainha da Neve começa com uma SMS que dá por acabada uma relação. Em Ao Cair da Noite mata um cavalo logo no início. Quer princípios fortemente emocionais? O que pretendo é pôr claro que o livro vai ser sobre um tema que interessa e cada romance tem a sua forma de começar. Este que estou a escrever deve-se ao facto de há muitos anos um amigo - que se drogava muito - ter pedido para levar uma amiga para minha casa. Eu só o questionei se a amiga não iria roubar qualquer coisa. Então, aconteceu que ela era uma mulher de 30 e poucos anos, estava muito doente - morreu pouco depois -, com quem conversei sobre o fim da vida de forma muito honesta e até assumiu que experimentara heroína. Numa madrugada deparei-me com ela em frente à janela, a olhar para a neve que caía com uma manta sobre os ombros, e fui falar-lhe. Mais tarde pensei que na América só se fala de histórias sobre droga pelo lado negativo e no entanto existem outras situações, como a dela, que nos fazem pensar. Este foi o princípio do romance..Refere várias vezes e com enlevo a importância de Madame Bovary de Flaubert. Porquê? Adoro Madame Bovary por várias razões, como a de ter sido a primeira vez no Ocidente que uma mulher tão insignificante, vaidosa, palerma, romântica, egoísta e má mãe, é descrita por Flaubert com tanta intensidade, compaixão e sem sentimentalismo. Ao torná-la uma grande personagem literária, Flaubert mostrou que se uma pessoazinha como Emma Bovary pode ser uma protagonista tão especial, então todas as pessoas o podem ser. Mostrou que qualquer ser humano pode ser um grande protagonista e a partir daí os romances nunca mais foram sobre reis e rainhas apenas..Essas personagens como Bovary são rivais das suas enquanto escreve? Gostaria de ser assim tão grandioso, mas a existência de Bovary apenas serve para fazermos o melhor que podemos. O escritor vive num mundo em que se produziu Emma Bovary e Mrs. Dalloway, mas vejo-as apenas como inspiração e sem ser obrigado a ultrapassá-las..Nunca chora pelas suas personagens? Eu trato muito bem as minhas personagens. Creio que foi F. Scott Fitzgerald que disse: "Não se pode amar as personagens demasiado nem detestá-las do mesmo modo." Essa é a verdade. Quando um livro acaba, termina também a nossa relação..Tem vontade de reescrever os romances? Sempre, mas não se o pode fazer. Cinco anos após ser publicado já quero mudar o livro. Por isso, evito reler e sigo em frente..Dá aulas de Escrita Criativa e de Literatura na Universidade de Yale. Como é o professor e o escritor perante a página em branco? Os meus alunos não são páginas em branco... Ensinar a escrever é mais ensinar a ler e a maioria não quer ser escritor. É bom dar um seminário durante quase quatro meses e falar com jovens inteligentes sobre escrita. Os meus amigos não são outros escritores, pois quando passo o dia a escrever não quero encontrar-me com colegas à noite..Não quer falar com outros escritores ao fim de um dia mas não mantém um diálogo à noite com Virginia Woolf, Mann e Whitman? Tenho muitas conversas com mortos sobre a escrita mas não quero viver num mundo em que a literatura é a única coisa que importa. Acho que se dá demasiada importância ao livro e devemos ter isso em conta quando olhamos para o mundo à volta..O que prefere: autores mortos ou vivos? É muito desafiador para mim imaginar como um autor morto escreveria agora se estivesse com um novo livro e nesta época. Há certos escritores vivos que gostaria de acompanhar, saber onde falharam e ver como tentam mudar a forma de escrever..Tem um primeiro leitor habitual? Tenho dois, aliás. O meu marido Kenny que é um leitor fantástico e diz tudo o que não acha bem. É brutalmente sincero. E tenho uma ex-editora francesa, agora é a minha agente, com uma ótima capacidade de leitura. Entre os dois encontro as respostas que quero e pondero o que mudar..Na edição portuguesa de A Rainha da Neve tem uma frase da crítica Michiko Kakutani. Gosta de críticas? Eu deixei de ler críticas. Lembro-me dessa crítica e também de uma outra horrível e no fim pensei: não aconteceu nada, ainda estou aqui. Ela disse muito bem de As Horas mas poderia ser muito má e diabólica. De quantos críticos nos lembramos? Sempre houve más críticas a grandes livros. As más críticas deprimem, as boas não ajudam. Portanto, o melhor é ignorar. Não acho que ela fosse assim tão boa crítica, a minha ideia de bom crítico é alguém com uma visão abrangente, quer que um livro seja bom e lamenta se não o é. O que é diferente de perseguir o livro e classificar o autor como criminoso por ter escrito daquela forma.