A invasão da Ucrânia pela Rússia será, infelizmente, um dos momentos para compreender a manipulação da informação que é fornecida aos cidadãos. O investigador Michael Butter teve recentemente publicado em língua portuguesa o seu trabalho A Natureza das Teorias da Conspiração, a que acrescenta o subtítulo Quando nada é o que parece, um livro que demonstra como se fabricam desde há séculos os mitos que substituem a verdade. Quando se pergunta a Butter se desconfia das notícias que lhe são apresentadas, a resposta é clara: "Muitas vezes até as notícias sérias estão num patamar da conspiração." Justifica: "É fundamental perceber em que jornais e televisões devemos confiar e, seria de bom senso, que um dia por ano as pessoas fizessem uma análise comparativa séria ao órgão em que acreditam vendo como os outros deram as mesmas notícias.".Apesar de ser um sucesso editorial, o investigador não considera que o seu livro possa diminuir a influência das teorias de conspiração: "Espero que consiga esclarecer as pessoas e que lhes permita ter um outro ponto de vista, no entanto é difícil saber o que vai mudar na interpretação. Afinal, recebo muita correspondência em que me acusam ser parte da conspiração e que sou pago pelo sistema para enganar as pessoas." Quanto a Portugal, Butter teve dificuldade em se documentar: "Pedi a vários conhecidos e ninguém me soube dizer muito sobre o vosso país." Uma situação que irá mudar no próximo trabalho, promete..Fez um prefácio para a edição portuguesa onde destaca que este livro foi escrito antes da pandemia. Este foi um tempo perfeito para as teorias da conspiração? Sim, pode dizer-se que a pandemia foi um momento perfeito para as teorias da conspiração. Por ser um evento global e com repercussões em todas as populações e também porque criou um tempo de grande incerteza para quem tem dificuldade em lidar com as ambiguidades próprias de certas situações. Basta ver que no primeiro confinamento, enquanto se estava fechado em casa, ninguém sabia como ia ser a vida três dias ou três semanas depois, e logo surgiram teorias que deram respostas estranhas. Estou a escrever um novo livro sobre o tema e nele vê-se bem como surgiram teorias em todo o mundo simultaneamente, mas de formas diferentes, respeitando o contexto local. No entanto, por exemplo na Alemanha, o número de pessoas que acreditam em teorias da conspiração não aumentou durante a pandemia, pelo contrário, diminuiu..Por terem muita informação médica? O indicador mais fiável para essas crenças terem seguidores é de as pessoas já acreditarem em teorias da conspiração e, por norma, cada uma interessar a pequenos grupos da população e não ao todo. Com a pandemia, todos tinham a mesma preocupação e era mais difícil o engano..Há países "melhores" para as teorias de conspiração ou são todos iguais? As teorias da conspiração são uma coisa americana. A Área 51 em Roswell, a chegada à Lua, o Watergate, o 11 de Setembro... elas são mais populares nos Estados Unidos do que na Europa atual, onde há trezentos anos ainda eram muito vulgares. No mundo árabe, só recentemente se tornaram populares..Porque num tempo de Internet ainda não se é capaz de esclarecer a população? A Internet ainda criou mais crentes nas teorias porque as pessoas tendem a acreditar em conspirações que confirmam aquilo em que acreditam e porque possui um sistema de algoritmos que vai ao encontro dos interesses muito pessoais de cada um. Quando se inicia o motor de busca cada um encontra páginas diferentes dos outros, no entanto quem consulta acredita que está a ter uma representação muito realista da verdade. Quem acredita em teorias da conspiração como a do assassinato de Kennedy é dirigido imediatamente para sites que dizem que o vírus não existe, que é uma arma biológica da América ou da China. Outra pessoa que não tenha essas crenças, é dirigido para sites onde existem opiniões esclarecidas de cientistas. O facto é que a Internet tornou as teorias da conspiração mais visíveis e justificam essas teorias de uma forma muito mais fácil devido à tecnologia do que aconteceria há meio século, quando era necessário fazer um esforço de pesquisa enorme..Evitar esses enganos não está ao alcance da comunicação social mais tradicional? Creio que tentam fazê-lo com os fact-check, mas esses explicadores só chegam às pessoas que têm uma perspetiva mais esclarecida e não àqueles que acreditam firmemente em teorias de conspiração. Aliás, há muitos sites que colocam em causa os explicadores e avisam para não se confiar neles. O poder da imprensa tradicional de antes existia, por exemplo, na possibilidade de poderem controlar as cartas ao diretor; hoje, os comentários são feitos diretamente e ninguém os elimina. Foi uma função de separar o trigo do joio que desapareceu..Há um canto do mundo que seja o ninho perfeito para criar estas teorias? No mundo ocidental, o mais próspero nessa atividade são os Estados Unidos, mas todos os países as utilizam à sua maneira. É o caso dos governos populistas da Polónia e da Hungria. Se formos para o mundo árabe, os Protocolos do Sião estão por todo o lado. No entanto, pode-se dizer que quando o grau de educação é menor é mais fácil impor essas teorias..A invasão da Ucrânia pela Rússia é um bom cenário para novas teorias de conspiração? Com toda a certeza. Por exemplo na comunidade conspirativa alemã há muita gente pró-Rússia e acreditam que os EUA encenaram um golpe de estado na Ucrânia em 2014 e isso justifica o que a Rússia está a fazer agora. Sabemos que as entidades russas estão a multiplicar as teorias de conspiração para justificar o que fazem. As guerras são um dos melhores momentos para desinformar e criar teorias que podem servir para legitimar certos procedimentos..Os anos de ouro das teorias da conspiração são os que estamos a viver com partidos e governos populistas? Não, acho que é anterior. Atualmente, as teorias são contestadas nos Estados Unidos e há duzentos anos ninguém as questionava. Achamos que estamos na era dourada das teorias de conspiração apenas porque se fala delas constantemente; creio que há um revivalismo devido à Internet e ao populismo, mas em nenhum lugar do mundo se chegou ao nível do passado..Estas teorias nunca serão para o bem? De algum modo são sempre olhadas como sinistras, mas existem algumas que podem ser olhadas de um modo positivo..O papel dos académicos tem sido importante no seu esclarecimento? Nos últimos tempos, as teorias competem com o discurso académico científico. Há sempre peritos em todas as matérias porque as teorias precisam de contribuições de cientistas para corroborar ou dar cobertura aos factos conspiratórios. Se não se consegue um perito de primeira há sempre outros inferiores que podem prestar esclarecimentos e cita-se o professor isto o doutor aquilo, que nem são especialistas naquelas áreas. Fala-se da estrutura das Torres Gémeas e é um professor de Filosofia que comenta, sem qualquer ideia sobre o assunto. Ao mesmo tempo, a importância dos peritos tem vindo a diminuir em relação ao passado porque as pessoas querem ver com os próprios olhos, uma mudança de paradigma devido às imagens a que se tem acesso cada vez mais fácil..Michael Butter.Editora Saída de Emergência.223 páginas.Matthew Williams, professor de Criminologia na Universidade de Cardiff, sofreu na pele em jovem um crime de ódio, situação que reforçou o seu interesse por esta área social. O seu estudo, intitulado A Ciência do Ódio, é fundamental para explicar o crescente número destes crimes em todo o mundo, inclusive em Portugal, e explicar o porquê de muitas minorias serem as preferidas por tais atos. Para este livro, Williams fez centenas de entrevistas e analisou centenas de situações, de forma a descrever os motivos que levam uns a opor-se às realidades de outros, seja por razões de etnia, opiniões religiosas ou políticas, bem como de orientação sexual..A primeira linha deste livro resume a sua grande questão: "Será que o ódio nasce connosco?" Matthew Williams apresenta uma resposta imediata: "A maioria das pessoas que pratica crimes de ódio é bastante normal e partilha atributos com o resto da população. Como todos nós. Nem todos são criminosos patológicos ou os monstros retratados pela comunicação social. Todas as pessoas têm em si os mesmos alicerces dos preconceitos e do ódio.".Entre as várias análises, o autor tenta encontrar o que une e divide a humanidade neste campo. Por exemplo, quando se dão as situações fraturantes: "Temos de nos perguntar se a culpa será mesmo dos grupos no centro dos acontecimentos, questionar as motivações daqueles que os acusam e procurar todo o espetro de pontos de vista antes de se decidir o que devemos sentir e qual deverá ser o nosso comportamento." Williams não chega a conclusões apenas baseado na apreciação empírica, antes recorre a vários estudos científicos, como o de comparar imagens do cérebro que detetam a reação de estímulos para desencadear preconceitos e chegar a esta conclusão: "As imagens confirmam o que já sabíamos; a existência do preconceito e do ódio e a possibilidade de os localizarmos no cérebro.".Entre as várias conclusões perturbadoras, está a de o ódio ser "um fenómeno temporal", ou seja, resultante de a tolerância para com o outro se alterar de um tempo para o outro, dias, semanas ou meses, e de certos acontecimentos poderem detonar situações que não se esperavam. O autor dá um exemplo: "Uma série de acontecimentos radicais, reforçada por uma cobertura informativa incendiária e o burburinho político, pode transformar quem não odeia ocasionalmente num criminoso reincidente que não precisa de nenhum pretexto." A ler com muita atenção, num tempo de um conflito militar gigantesco na história do continente europeu..Matthew Williams.Editora Contraponto.415 páginas.Entre as mortes por covid-19 registou-se a de Marcelino da Mata, um protagonista da Guerra Colonial na Guiné. Em O Fenómeno Marcelino da Mata - O herói, o vilão e a história -, o ensaísta Nuno Gonçalo Poças revive os mitos e as realidades sobre aquele que os guerrilheiros de um lado e do outro admiravam/detestavam tais eram os seus feitos, mesmo que, como o autor declara, "ambos os lados estavam a ser vítimas de algum exagero"..A narrativa tem início com um episódio grotesco e exemplar de muita da violência que ocorreu na "África portuguesa" e quem o conta é o protagonista que dá título ao volume. Um relato que demonstra tudo "sobre a guerra e sobre a natureza dos homens" e que a maioria dos portugueses de hoje nunca soube, outros quiseram esquecer, mas agora são trazidos à atualidade, no tempo próprio de uma guerra em curso no continente europeu. O anterior livro do autor, sobre as FP-25 de Abril, também já o fazia, mas desta vez o filme paralelo do que acontece no campo de batalha real tem mais atualidade..Após contextualizar a guerra que acabou há 48 anos - situação, infelizmente necessária devido ao esquecimento -, e desfazer os mitos da "tranquilidade" salazarista e do empoderamento dos movimentos independentistas, avança-se na máquina de guerra e no capítulo "Sou o Marcelino" no biografado. Um nome que fala por si, escreve-se; que mal sabia falar em público mas sentia-se bem aos tiros, descreve-se. O retrato que se faz do combatente constrói todo o seu percurso, com frequentes desobediências à hierarquia e sucessivas vitórias na guerrilha, tanto que se torna o militar português mais condecorado de sempre, mesmo não tendo nacionalidade portuguesa. A biografia clarifica o biografado, aquele de quem ninguém queria falar no pós-25 de Abril e que só a morte o trouxe de volta à ribalta. Este livro ressalta todas as sombras e exige uma reflexão, já que o país se aproxima do cinquentenário do movimento dos Capitãs de Abril, em modo automático..Nuno Gonçalo Poças.Editora Casa das Letras.206 páginas.A antecipação da chegada às livrarias de A Mais Breve História da Rússia - Dos eslavos a Putin à invasão da Ucrânia confirma que o autor, José Milhazes, é um atento analista da história a Leste. Tão breve como é possível reter em quase trezentas páginas, a profusa ilustração de ilustrações, mapas e fotografias, ajuda a conseguir o objetivo principal: entender a Rússia contemporânea e perceber os mitos em que foi fundada e tenta manter-se. Garante-se no preâmbulo que a "seleção dos factos tem um cunho muito pessoal e subjetivo", mas é essa particularidade, bem como a exiguidade de espaço, que transforma o livro num perfeito dicionário histórico e social, que satisfaz o leitor que só conhece a nação a partir daquilo que o autor nomeia no capítulo "O marxismo chega à Rússia". Estamos nessa folha a meio da história e daí até ao fim é um pulo sôfrego, designadamente até se chegar ao "salvador" Putin e os acontecimentos que prenunciavam a guerra em curso na Ucrânia. Altura que, decerto, numa das próximas reedições exigirá um novo capítulo..José Milhazes.Editora D. Quixote.299 páginas.O mais recente romance de Jonathan Coe não é sobre a guerra, mas os mitos e o mal estão lá todos. O Sr. Wilder & Eu utiliza um recurso muito interessante, o de fazer um paralelo entre a vida da protagonista e a influência que teve o seu encontro com o cineasta Billy Wilder, figura das mais carismáticas do cinema europeu e de Hollywood. A II Guerra Mundial e, principalmente, o holocausto marcam a segunda parte do livro e é impossível não fazer um paralelo com o que acontece atualmente no continente europeu devido à invasão da Ucrânia. A protagonista acompanha a filmagem de O Segredo de Fedora e ao mesmo tempo que esta memória é recriada tem a mais importante lição de vida. Um relato que ficaria ainda melhor com mais uma centena de páginas..Jonathan Coe.Porto Editora.231 páginas