Metadados: juristas preveem novo chumbo e PJ defende regime específico para a segurança nacional

PSD e PS chegaram a acordo para aprovar o muito aguardado novo diploma sobre a conservação indiscriminada dos metadados da população para investigação criminal. Mas terá vida curta, prognosticam juristas. Para as polícias o "beco" criado pelo chumbo do Tribunal Constitucional continua "sem saída". Mas apesar dos alertas lançados há mais de um ano sobre o risco de milhares de processos caírem por terem sido usados metadados dos suspeitos, ao abrigo do diploma inconstitucional, nem o MP nem a PJ têm estatísticas disponíveis.
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Treze reuniões, 52 operadoras consultadas, sete audições - Provedoria de Justiça, Gabinete de Cibercriminalidade da Procuradoria-Geral da República, Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), Polícia Judiciária (PJ) e Associação dos Direitos Digitais D3 - e 476 dias depois da criação do grupo de trabalho para os metadados, no parlamento, o novo diploma para ultrapassar a inconstitucionalidade do regime de acesso pelas polícias a estas informações (permitem saber, entre outros, a identidade do utilizador do telefone ou computador, duração e destino das chamadas e localização) estará já destinado a um novo chumbo pelo Tribunal Constitucional (TC).

O texto acordado pelo PS e PSD prevê que os dados de tráfego e localização sejam conservados de forma generalizada durante "três meses a contar da data da conclusão da comunicação, considerando-se esse período prorrogado até seis meses, salvo se o seu titular se tiver oposto".

Já nos casos com "autorização judicial fundada", essa conservação pode durar até um ano. O diploma propõe ainda que, quando os dados são acedidos, os seus titulares sejam avisados "no prazo máximo de 10 dias", a menos que o Ministério Público (MP) se oponha, e que sejam conservados em "Portugal ou no território de outro Estado-membro da União Europeia (UE)".

O problema é que - tal como nenhum outro país da UE - não resolveu aquilo que era o principal foco das decisões, primeiro do Tribunal de Justiça da União Europeia, depois pelo Tribunal Constitucional, em abril de 2022: o facto de estes dados serem conservados indiscriminadamente, abrangendo toda a população (no caso português durante um ano).

Tanto Francisco Pereira Coutinho, coordenador do Observatório da Proteção de Dados (ver aqui a entrevista), como a constitucionalista Teresa Violante estão convictos que, mais uma vez, o chumbo será o destino quando o Presidente da República enviar o diploma ao TC para uma "fiscalização preventiva".

CitaçãocitacaoCom exceção da retenção geral e indiscriminada de endereços IP e de dados relativos à identidade civil dos utilizadores de comunicações eletrónicas, creio que a medida de conservação dos restantes dados é inválida à luz do Direito da UE e da própria Constituição

"Este regime prevê a retenção geral e indiscriminada de vários dados, incluindo dados que o TJUE e o TC já afirmaram expressamente não poderem ser objeto deste tipo de medida a não ser em situações de ameaça grave, real e previsível à segurança nacional. Com exceção da retenção geral e indiscriminada de endereços IP e de dados relativos à identidade civil dos utilizadores de comunicações eletrónicas, creio que a medida de conservação dos restantes dados é inválida à luz do Direito da UE e da própria Constituição. Um regime semelhante, com prazos de retenção inferiores, foi invalidado há cerca de um ano pelo TJUE no acórdão Spacenet and Telekom Deutschland", assinala a jurista, investigadora na Universidade Frierich-Alexander Erlangen, de Nuremberga.

O deputado do PSD, André Coelho Lima, que presidiu ao grupo de trabalho, não quer fazer previsões sobre o que poderá ser a decisão do TC. "Devo apenas dizer que é muito importante que as pessoas tenham plena consciência que a Assembleia da República está a legislar sobre esta matéria devido a um acórdão do TC que considerou inconstitucional o diploma legal ao abrigo do qual as nossas forças policiais utilizavam o recurso a metadados na investigação criminal. Não se trata, por isso, de um impulso legislativo espontâneo do Parlamento, mas uma atuação condicionada por ter sido considerado inconstitucional um diploma legal", sublinha.

Frisa que "se tratou de um trabalho muito intenso, de enorme empenhamento e dedicação de todos os deputados, cientes da delicadeza da matéria do ponto de vista social, mas também da sua dificuldade do ponto de vista jurídico" e que "foram realizadas largas dezenas de audições presenciais e escritas e uma vez que se trata de uma matéria com a qual se debatem todas as ordens jurídicas da União Europeia, foi elaborado um profundíssimo estudo de direito comparado para podermos estar a par das soluções jurídicas que estão a ser adotadas nos outros países europeus e assim melhor preparar a solução para Portugal".

O deputado, que também é membro do Conselho Superior de Segurança Interna, recorda que "em primeiro lugar houve um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia considerando indevidas a conservação generalizada e indiscriminada de dados de tráfego e georeferenciação e, em cumprimento dessa decisão que vincula os estados membros da UE, o Tribunal Constitucional português decretou a inconstitucionalidade do diploma ao abrigo essa conservação generalizada e indiscriminada de metadados era realizada em Portugal".

"Aqui chegados", assevera, "a função do Parlamento - órgão legislativo - é procurar conformar a legislação ao teor do acórdão do TC atendendo também ao impacto que bem se sabe terem estas alterações na investigação criminal. É este equilíbrio bastante difícil entre a adequação jurídico-constitucional da nova legislação e procurar não limitar demasiadamente os meios ao dispor da investigação criminal, que este Grupo de Trabalho teve que fazer".

Para Coelho Lima "a única certeza que teremos é que este diploma será remetido para o TC, porque o Senhor Presidente da República já o manifestou antecipadamente. Aquilo que determinará o TC é matéria sobre que não me compete especular, estamos perante o regular funcionamento das instituições, é nosso dever não interferir na apreciação cuidada que o TC não deixará de fazer a este diploma"

O presidente do OSCOT, e também constitucionalista, Jorge Bacelar Gouveia, tem esperança que a diminuição do prazo de conservação possa "ser suficiente" para a validação do TC.

CitaçãocitacaoHavendo nova declaração de inconstitucionalidade, sendo um problema com uma repercussão óbvia na Segurança Interna da UE, Portugal deve suscitar a abertura de procedimentos com vista a matizar o primado do Direito da UE com vista a que este não ponha em causa algo que é essencial na Soberania dos Estados, que nunca foi comunitarizado.

No entanto sugere que, "havendo nova declaração de inconstitucionalidade, sendo um problema com uma repercussão óbvia na Segurança Interna da UE, Portugal deve suscitar a abertura de procedimentos com vista a matizar o primado do Direito da UE com vista a que este não ponha em causa algo que é essencial na Soberania dos Estados, que nunca foi comunitarizado".

O advogado e criminalista Ricardo Sá Fernandes, olha com apreensão para a "solução" encontrada pelo parlamento.

Numa "análise preliminar" encontra, pelo menos, duas "insuficiências": uma é "a definição do que é o crime grave que permite o acesso a metadados", que lhe parece "ser muito restritiva, não considerando vários tipos de crime que carecem do acesso aos metadados para assegurar uma investigação eficiente"; a segunda, "o prazo de três meses de conservação dos dados de tráfego e de localização", que considera "insuficiente para garantir as necessidades da investigação".

Citaçãocitacao "sem acesso aos metadados a investigação criminal fica gravemente amputada de um meio fundamental para prosseguir o combate àa atividade criminosa

Do seu ponto de vista pragmático, "sem acesso aos metadados a investigação criminal fica gravemente amputada de um meio fundamental para prosseguir o combate àa atividade criminosa. Isso não significa, como é evidente, que esse acesso deva ser ilimitado, a questão está em estabelecer regras que respeitem um princípio de proporcionalidade", não esquecendo que "o acesso aos metadados não é apenas uma necessidade da investigação, muitas vezes é fundamental para assegurar igualmente os direitos da defesa".

Para Sá Fernandes, "a decisão do TJUE desequilibrou de forma desproporcionada e em prejuízo da investigação, o acesso aos metadados" e acredita que "o tema só poderá ser cabalmente resolvido com uma posição europeia conjunta que permita trilhar um caminho mais equilibrado entre os fins da investigação e a proteção da vida privada dos cidadãos".

A PJ já começou a tentar fazer esse caminho. Em março passado mobilizou os mais altos dirigentes policiais de 25 países da UE, que assinaram uma declaração conjunta, documento esse "posteriormente disseminado junto de todas as instituições europeias e nacionais tidas como relevantes para o efeito" (ver principais preocupações no final do texto).

No "Metadata Law Enforcement", que decorreu na sede da PJ com a presença da diretora executiva da Europol, Catherine De Bolle, e a Comissária para Assuntos Internos, Ylva Johansson , foi feita uma "reflexão sobre o contexto atual de retenção e uso operacional de metadados de comunicações e consequências da restrição do respetivo uso; uma reflexão sobre meios de obtenção de prova e novas ferramentas e técnicas de investigação, versando designadamente sobre comunicações encriptadas entre suspeitos e a investigação digital em ambientes fechados; uma análise do impacto de tais matérias em dois aspetos fulcrais que afetam potencialmente todos os Estados membro: na cooperação policial internacional e no significativo investimento que a Comissão tem vindo a fazer no desenvolvimento tecnológico das LEA no combate à criminalidade organizada e ao terrorismo"

CitaçãocitacaoForam encontradas outras opções legislativas que passavam pela criação de um regime específico no caso de segurança nacional.

Fonte oficial da PJ, sublinhou ao DN que nessa conferência "foram encontradas outras opções legislativas que passavam pela criação de um regime específico no caso de segurança nacional, bem como um regime que, prevendo a retenção de todos os dados de tráfego, fazia depender o respetivo prazo de retenção de critérios relacionados a índices de criminalidade, salvaguardando sempre, mesmo no caso de índices mínimos de criminalidade, um prazo mínimo de retenção".

Na análise feita pela PJ ao processo legislativo, o diploma esta semana aprovado "insistindo na reformulação da Lei 32/2008 por via da redução de prazos de retenção, com as variantes ali sinalizadas, não se nos afigura poder obter vencimento de juízo de proporcionalidade constitucionalmente conforme".

Este mesmo porta-voz, que fala em nome da direção nacional, admite que "a solução apresentada por iniciativa do Governo, não repristinando ou procurando "salvar" a Lei 32/2008, apresenta solução alternativa por via da atualização, tornada necessária pela evolução tecnológica, da redação do artº 6º da Lei 41/2004, ali incluindo os dados necessários (ex. IP´s) à maior parte das investigações criminais".

Ainda assim, identifica nesta proposta, que acabou por não passar, ali "algumas dificuldades: o prazo de retenção afere-se por via de outro normativo, sendo na prática atual de 6 meses; exclui os dados de localização".

Há cerca de ano e meio, as reações das autoridades judiciais ao acórdão do TC previam que milhares de processos pudessem cair e muitos arguidos serem ilibados.

A PGR admitia que "algumas investigações" poderiam "soçobrar", e o diretor nacional da PJ, Luís Neves, falava em "retrocesso civilizacional", ma audição parlamentar de setembro.

"Bomba nuclear", "devastador", catastrófico" e "terramoto" foram algumas das expressões utilizadas por procuradores, juízes, constitucionalistas.

Questionadas a PJ e a PGR para revelarem quantos processos terão ficado invalidados, a Judiciária reconhece que "não tem os dados mapeados", recordando notícias de "processos pontuais que causaram alarme público", como o do caso de uma jovem desaparecida que o Ministério Público demorou cinco meses a localizar, por não poder ter acesso aos metadados. A PGR não respondeu a nenhuma das questões colocadas.


1- Na ausência de segurança jurídica dos quadros jurídicos nacionais em matéria de conservação de dados, existe o risco de os órgãos de Polícia não conseguirem aceder a provas importantes necessárias para identificar, prevenir, investigar e reprimir crimes.

2- Períodos de conservação pouco claros e insuficientes no caso de armazenamento de dados para fins comerciais.

3- As diferenças nos regimes nacionais de conservação de dados, tipos de dados e períodos de conservação, representam os principais obstáculos à investigação e repressão de crimes transfronteiriços.

4- A conservação expedita (quick freeze) não pode substituir a conservação de dados, na medida em que só pode ser aplicada aquando da deteção ou suspeita de crime.

5- Desafios tecnológicos existentes (...) continuam por resolver, enquanto desenvolvimentos tecnológicos emergentes (como o 5G e a IoT [Internet das Coisas]) irão provavelmente acrescentar complexidade a algumas das atuais questões relativas à conservação de dados sem conteúdo.

6- A dignidade humana, o valor basilar da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Artigo 1.º), requer uma reflexão profunda face a um equilíbrio significativo e adequado entre os direitos fundamentais.

7- Com vista à manutenção da segurança e à prevenção e deteção de crimes graves, é importante que as empresas internacionais a prestar serviços na Europa sejam igualmente obrigadas a conservar dados, em consonância com o enquadramento jurídico da União Europeia.

* "Declaração de Lisboa" de 27 chefes de Polícia da UE

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