PJ mobiliza polícias de toda a Europa contra novas restrições à investigação criminal
Será uma reunião sem precedentes em Lisboa. Sob a égide da PJ, Europol e mais de duas dezenas de chefes de polícias europeias vão debater e produzir uma declaração conjunta contra as novas restrições de uso dos metadados das comunicações. No podcast Soberania o diretor nacional da Judiciária, Luís Neves, explicou porquê. Filipa Calvão da CNPD defendeu a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Pelo menos 25 países e mais de três dezenas de dirigentes de Polícias da União Europeia (EU), espaço Schengen e o Reino Unido, vão estar representadas na conferência internacional de alto nível "Metadata Law Enforcement Conference" que se vai realizar nos próximos dias 29 e 30 na sede a Polícia Judiciária (PJ) em Lisboa, com as presenças, previstas, da diretora executiva da Europol, Catherine De Bolle e da Comissária para Assuntos Internos, Ylva Johansson.
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O "impacto negativo" na realização de Justiça e no combate ao crime violento resultantes das novas restrições à utilização dos metadados das comunicações para a investigação criminal, levou a que o diretor nacional da PJ, Luís Neves, lançasse este desafio inédito aos congéneres internacionais para virem a Lisboa partilhar as dificuldades que a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) impôs e aprovar uma declaração conjunta que contribua para uma "solução equilibrada", que respeite os Direitos Fundamentais, mas não dê às polícias as "armas" necessárias contra uma criminalidade cada vez mais complexa.
A noticia foi dada pelo próprio Luís Neves no podcast Soberania, numa edição especial deste domingo, num frente a frente único com a ainda presidente da Comissão Nacional da Proteção de Dados (CNPD), Filipa Calvão, há 12 anos à frente deste organismo (a sua sucessora, Paulo Meira Lourenço, eleita no final de janeiro no parlamento ainda não tomou posse).
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Ouça aqui o podcast:
Um debate vibrante e muito tenso que revelou as dificuldades em conciliar o direito fundamental da privacidade e proteção de dados pessoais com um combate do qual tantas vezes depende outro direito fundamental, que é a vida.

Este podcast Soberania foi gravado nos estúdios da TSF
© Diana Quitela / Global Imagens
"Sentimos que há um retrocesso generalizado. Nós respeitamos os direitos humanos, respeitamos os direitos individuais, queremos apenas assumir a nossa responsabilidade que é investigar, ter Estados seguros, levar à reação da justiça, que os criminosos possam ser levados perante um tribunal. Há uma grande desigualdade entre os meios legais que temos para investigar e os meios técnicos, digitais, informáticos e outros que as organizações criminosas têm para cometer os crimes", declarou o diretor nacional da PJ.
"Retrocesso civilizacional" / "proporcionalidade"
Em foco está a decisão do TJUE, subscrita em abril de 2022 pelo Tribunal Constitucional, que proibiu a conservação pelas operadoras dos metadados de comunicações telefónicas e de ligações à internet para poderem ser utilizados na investigação de casos específicos de criminalidade grave, com autorização de um juiz.
Metadados são todas aquelas informações que permitem identificar o utilizador do telefone ou do computador, a sua localização, os números das chamadas que faz ou os números das chamadas que recebe, as horas das chamadas e o tempo de duração das mesmas.
Não incluem nenhum conteúdo destas comunicações, não são escutas telefónicas. Estas bases de dados, que guardam estes elementos durante apenas um ano, sendo depois destruídos, foram criadas em reação aos ataques terroristas de Londres, de 2005, e estavam operacionais em Portugal desde 2008.
Esta declaração de inconstitucionalidade, entre outros, por conservar dados de todas as pessoas independentemente de serem suspeitas de crimes, levou a que nos últimos meses começassem a ser arquivados inúmeros processos e absolvidos arguidos acusados.
Cibercrimes são os mais afetados, mas também outros processos ficaram comprometidos, como o caso de Tancos, com o tribunal a ordenar a reformulação da sentença sem o recurso às informações dos metadados que tinham permitido fazer as correlações entre os arguidos e provar que estavam nos locais do crime.
Mas aquilo que Luís Neves classificou de "retrocesso civilizacional", Filipa Calvão considera que estando num "Estado de Direito, o poder público e também o poder judicial e o de investigação criminal vivem limitados por um conjunto de princípios que pretendem equilibrar os direitos".
Para esta professora de Direito da Universidade de Coimbra, com mais de uma década à frente da CNPD, "a proporcionalidade não é a afirmação do valor de segurança ou do valor combate à criminalidade a todo o custo com atropelo das liberdades fundamentais. A segurança tem de ser dada aos cidadãos pelo Estado com um mínimo de respeito pelas suas liberdades e os seus direitos fundamentais".
"Frustração" para os investigadores e para as vítimas
No seu entender, "o problema desta base de dados é que resulta de uma recolha indiferenciada, generalizada, sistemática e contínua, permanente, dessa informação que retrata a nossa vida privada. O facto de dizer respeito a qualquer um de nós, independentemente de termos alguma ligação ao mundo criminoso ou de sermos suspeitos da prática de algum crime, o facto de dizer respeito ao nosso dia a dia, porque nós vivemos neste contexto, não é uma pequena parcela da nossa vida, é uma parte substancial dessa vida que está ali retratada".

Filipa Calvão, presidente da CNPD, e Luís Neves, diretor nacional da PJ, fotogravados na redação do DN, antes do debate.
© Diana Quitela / Global Imagens
Foi por isso que , sublinha, "o Tribunal considerou, TJUE primeiro, depois o nosso Tribunal Constitucional, excessiva a simples existência de uma base de dados com toda esta informação".
Filipa Calvão diz que percebe "a frustração das vítimas, sobretudo, mas também de quem investiga, mas o problema da proporcionalidade é que na investigação criminal, como em qualquer poder público, do outro lado temos cidadãos que estão num estado de sujeição perante o poder público num Estado de Direito e, por isso mesmo, o poder público é autolimitado, limitado pela Constituição que diz que tem de haver aqui proporcionalidade".
O diretor nacional da PJ responde: "os policias não se sentem frustrados porque nós temos resistência suficiente para resistirmos à frustração. Quem se sente frustrado são os cidadãos que têm criminosos que sabem quem são, as vítimas, sobretudo, toda a sociedade que percebe que, cedendo um pouco a sua privacidade, contribuiu de facto que tivesse um Estado mais seguro e que a realização da justiça fosse efetiva e prática, é isso que todo o cidadão pretende".
Ambos lamentaram o atraso na aprovação de nova legislação que possa cumprir os requisitos do acórdão do TJUE - autorização do utilizador das comunicações; conservação limitada no tempo e a grupos e localizações geográficas específicas - com Luís Neves a salientar a iniciativa da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, a qual "mal se aflorou o problema, criou um grupo de trabalho, que liderou, e entregar uma proposta de lei equilibrada, que pensamos que vai ao encontro daquilo que são os patamares e as balizas que o Tribunal de Constitucional determinou".
Mas Calvão e Neves estiveram de novo em desacordo em relação aos requisitos do TJUE. A ainda presidente em funções da CNPD defende considera que o Tribunal "fez uma ponderação" e "até diz que é possível guardar para combate à criminalidade grave e por razões de segurança nacional, o endereço de IP (identificação do utilizador da ligação de internet)", esclarecendo "o que é que deve e não deve ser recolhido massivamente".
Luís Neves volta a alertar para a realidade: "temos uma evolução do digital a favor do criminoso e nós temos uma visão estanque, que não conseguiu evoluir, porque o legislador e o intérprete da lei têm de se adaptar às necessidades e aos tempos. Nós somos apenas os práticos do dia-a-dia, e repito, a nossa missão é olhar para as vítimas, olhar para a sociedade e para o coletivo".

Filipa Calvão e Luís Neves com os moderadores do podcast, Jorge Bacelar Gouveia do OSCOT e Valentina Marcelino, do Diário de Notícias
© Diana Quitela / Global Imagens
O diretor vê com muitas objeções que se possa vir a recolher dados apenas de determinados grupos de pessoas ou de determinadas zonas geográficas, um requisito que, aliás, o projeto de lei do PSD absorve.
"Mas como é que vamos escolher que cidadãos é que são? É o A, é o B ou o C? Isso será manifestamente inconstitucional, sem enquadramento no nosso regime jurídico. É absolutamente impraticável para aquilo que é a investigação criminal, porque lá estamos a falar do momento. Eu quero é saber, se calhar, quem é que esteve há quatro ou cinco dias ou há um mês a pôr lá uma bomba. Era importante, peço desculpa por isto e com o respeito intelectual que tenho pelas pessoas, sobretudo quem interpreta a lei, que tivessem as dificuldades na prática daquilo que é investigar e do desequilíbrio que é quase criminoso. Há responsabilidade sobre nós, todos exigem resultados e objetivos quando nos retiram os meios que eram, de facto, equilibrados e que nos são expurgados ao fim de algum tempo."
Na reunião de alto nível deverá ser produzida uma declaração conjunta, descrevendo a "desigualdade e" entre capacidades das forças da ordem e os criminosos ensaiando uma conciliação entre "o que cada cidadão, e o legislador, neste caso, estão dispostos a dar" para ter "um Estado seguro, respeitador do ponto de vista da reação da justiça".
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