Mereceremos Samuel Paty?

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"Um país incapaz de transcender o seu passado, deprime". Esta sentença, aplicada à França, foi escrita por Régis Debray numa altura em que estava em causa o uso do véu islâmico por estudantes em estabelecimentos de ensino público (Ce que nous voile le voile, Gallimard, 2004). Nos últimos 15 anos tudo piorou exponencialmente. Se somarmos todos os atentados terroristas de fundamentalistas sunitas, a França apresenta já uma lista de centenas de mortos, ou milhares de vítimas, se incluirmos os feridos no corpo e no espírito. Contudo, o assassínio no passado dia 16 de Samuel Paty, um professor do ensino secundário, de 47 anos, decapitado por um refugiado checheno de 18 anos, constitui um salto qualitativo que não pode ser subestimado.

Há dois erros a evitar. Primeiro: este não é apenas "mais um" caso de terrorismo. Trata-se de um homicídio que visa inocular o medo na escola pública das democracias europeias, inibindo a sua capacidade de transmissão de valores fundamentais no domínio dos direitos, liberdades e deveres constitucionais. Samuel Paty morreu como herói do dever de ensinar o significado do civismo e do respeito pelas liberdades num país como a França, onde a escola é fundamental para impedir que o multiculturalismo transforme a República num arquipélago de "identidades assassinas", citando o título contundente de um livro profético de Amin Maalouf.

O segundo erro que importa não cometer consiste em pensar que este é apenas um assunto francês. Mesmo antes do 11 de Setembro, o mundo inteiro, e não apenas o Ocidente, já tinha sofrido a investida de um terrorismo que nem sequer se disfarça. Só por ignorância o poderemos caracterizar como islâmico em geral, pois a sua matriz é a vertente mais reacionária, teologicamente, e mais totalitária, politicamente, do sunismo: o salafismo, ou wahhabismo.

Há décadas que essa ideologia mortífera tem sido semeada pelas madraças, financiadas sobretudo pelos petrodólares da Arábia Saudita. Os governos ocidentais têm sido cúmplices ao permitirem que estas escolas de ódio tenham envenenado, sem controlo nem repressão, muitos jovens que transferem para o terreno do fanatismo religioso questões que deveriam pertencer à esfera da luta política legítima por mais igualdade e justiça. Importa não esquecer a sinistra operação de encobrimento da origem do 11/9 - urdida por George W. Bush Jr. - lançando sobre o Iraque a responsabilidade de um ataque executado por um comando de 15 sauditas, num total de 19 elementos.

Nem se pode omitir o comprometido silêncio de Macron, quando foi interrogado pela imprensa sobre se o assassínio de Jamal Khashoggi (2 de outubro de 2018), por ordem do atual líder da Casa de Saud, iria impedir um negócio de armamento com Riade no valor de 11 mil milhões de euros. O terrorismo tem crescido na proporção direta em que as nossas democracias se têm transformado, passo a passo, em plutocracias. Mais preocupadas em pactuar com o diabo do que em preservar as nossas vidas e liberdades. Se compreendermos isto, talvez Samuel Paty não tenha morrido em vão.

Professor universitário

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