Memórias do pré-pandemia e planos virados do avesso
Isabel Dias Martins
Produtora profissional de cinema
A fotografia escolhida por Isabel Dias Martins (Porto, 1976) é categórica: nas filmagens simultâneas de um filme (Bem Bom) e de uma série para televisão (Doce), os profissionais dos bastidores sobem ao palco para cantar. Da esquerda para a direita, Hugo Espírito Santo (chefe eletricista), a própria Isabel (chefe de produção), Mariana Amorim e Filipa Lacerda (ambas da equipa de produção) unidos, em harmonia, exorcizam o cansaço de mais um dia de 11 horas de trabalho durante as sete semanas de rodagem, entre 20 de janeiro a 5 de março de 2020.
Este projeto da Santa Rita Filmes, realizado por Patrícia Sequeira, já teve três datas de estreia (o filme, a série só estreará depois). Foram todas canceladas e adiadas.
Por entre as explicações de como tudo mudou, de como a covid obrigou a alterar processos técnicos e criativos (guiões adaptados para contornar situações de contágio), Isabel Dias Martins faz uma paragem obrigatória.
"Quero salientar a camaradagem extraordinária. E o cumprimento rigoroso das regras, não existem prevaricações", sublinha a produtora.
A foto é anterior, mas projeta a união que Isabel diz ter-se fortalecido em tempos de crise pandémica. Além dos protestos que levaram à criação da associação União Audiovisual, a solidariedade entre pares gerou a criação de bancos alimentares contra a fome dos profissionais, com centros de recolha agora espalhados de norte a sul do país. "Infelizmente, muita gente da área tem recorrido. E é a comunidade que contribui. Cada um dá o que tem", explica.
"O que se teme? A que nível é que a crise provocada pela pandemia nos vai obrigar a procurar alternativas e deixar a área para encontrar outra forma de subsistência? Já somos freelancers e só ganhamos por projetos, com estes consecutivamente a serem adiados", desabafa. "Por isso, o medo mais comum é ter de mudar de área. Quando tens um trabalho que é uma vocação, além de dinheiro, teres de ponderar a tua vida numa determinada idade...", insiste, "é angustiante".
"Por exemplo, depois do primeiro confinamento trabalhei na Crónica dos Bons Malandros [série para televisão baseada no livro homónimo de Mário Zambujal]. Foi filmada num circo, e os circos estão absolutamente parados há um ano. A maior parte dos homens do circo começou a fazer transportes de bens e produtos para pagar as contas", avança.
O regresso das filmagens deu-se sob um conjunto de regras muito restritas e apertadas. "Se houver um caso, aquela equipa é toda substituída por 15 dias, seja a do guarda-roupa ou a dos eletricistas. O grande medo das produtoras é que, podendo substituir equipas, não podem substituir o elenco. Os guiões e as cenas que implicam contactos próximos ou de intimidade, como o beijo, tudo isto tem de ser pensado e, muitas vezes, alterado", argumenta.
"Eu tive um corte superior a 50% nos rendimentos, que se aplica a toda a gente. As publicidades seguem a um ritmo maior, mas com quedas significativas. Os profissionais do cinema trabalham em pubs estrangeiras, mas também diminuíram drasticamente", contabiliza, e acrescenta: "As comitivas foram diminuídas significativamente e é um rombo grande, porque as equipas estrangeiras gastam muito dinheiro em hotéis, refeições, compras, espaços para reuniões e afins."
Chakall
Chef e empresário
Eduardo Andrés López (Tigre, Buenos Aires, 1972) escolheu uma fotografia peculiar: filmado nas bancadas de um estádio na Ucrânia a apoiar o Benfica (1-2 frente ao Shakhtar na Liga Europa), a 20 de fevereiro de 2020. "Tempos em que tínhamos os restaurantes cheios, com um jogo de futebol com bancadas cheias de gente nos ecrãs gigantes." Chakall, nome artístico do chef e empresário da restauração, fala das quebras de receitas, mas sublinha que "há coisas mais importantes e coisas menos importantes". E elege a prioridade, "as pessoas".
"A primeira preocupação? São as pessoas. Não deixar ninguém na rua. Quase todos os empregados têm contrato, temos pouca rotatividade e muitos estão connosco há três ou quatro anos", afirma.
"Tenho a perspetiva de que seria injusto pensar que é igual para todos. Eu, por exemplo, não ponho toda a carne no assador. Tenho uma almofada que me permite encarar as crises", diz Chakall.
"Ao contrário do que muitos dizem, tive muitas ajudas do governo. Porque tudo depende das contas de cada espaço. A minha empresa tem 20 anos, com 20 anos a dar lucros. A faturação é 100% real, os salários 100% declarados. No final, ajuda nas contas", atira o chef.
E o espectro de ter de mudar de vida para pagar contas? "Percebo que muita gente esteja com esse receio de mudar de vida, mas acho que na gastronomia é diferente. Não é tão difícil arranjar trabalho, apesar de haver muita incerteza. Os meus sabem o que se passa e já falei com eles. Vou-lhes arranjar trabalho aqui ou ali, até porque tenho os chamados restaurantes de verão e vou aproveitá-los para os manter em atividade", garante.
"Mas outras áreas levaram um golpe pior: a cultura, a hotelaria, as viagens", sublinha.
E dentro da gastronomia também há camadas diferentes.
"Os chamados restaurantes Michelin, com couvert de 80 a 100 euros, como vão sobreviver? Os restaurantes monoproduto, e eu tenho os de hambúrgueres, vão sobreviver. Os das boas pizas, bons hambúrgueres e bom frango. Os restaurantes familiares vão sobreviver, porque têm muitos portugueses como clientes", defende Chakall.
"Tivemos uma quebra de 40% na faturação. A minha vantagem é que eu não vivo do dinheiro dos restaurantes, todo o lucro é reinvestido. Claro que o meu sonho era um dia ter lucros", ri-se. "Eu ganho a vida sobretudo com as minhas atividades e produtos próprios. Trabalho muito com cursos e formações online, com a venda dos meus próprios produtos, sejam grelhadores, hambúrgueres, roupa, promoção de produtos ou livros. Não tiro dinheiro dos restaurantes", explica.
Rita Fernandes
Promotora de eventos e psicóloga
A foto escolhida por Rita Fernandes (Lisboa, 1979) simboliza a alegria: a promotora de eventos mergulhada numa banheira de bolas coloridas num regresso à felicidade da infância no The Sweet Art Museum, em Lisboa. Psicóloga clínica durante 14 anos, e confrontada com casos de extrema fragilidade em crianças, Rita virou-se para os eventos empresariais e particulares para "recuperar a alegria".
Há quatro anos, fundou a empresa de eventos Lucky Flamingo com uma amiga, que, entretanto, saiu por não conseguir compatibilizar esta atividade com as que mantinha em paralelo, na área da escrita.
"Fiquei sozinha a gerir. Trabalhava muito com agências de comunicação ou com outros clientes diretos, empresas e particulares. Tivemos um grande crescimento no corporate [eventos empresariais] e estávamos em expansão. Em 2020, fizemos alguns eventos pelo segundo ou terceiro ano consecutivo. Ainda fizemos eventos em fevereiro, como a festa de aniversário para cem pessoas da foto", recorda.
"Tínhamos agendado outro, para 80 pessoas, a 14 de março. No dia 12, recebi um telefonema de um fornecedor a dizer que estavam de quarentena e desmarcámos dois dias antes. Doámos o bolo de aniversário a uma instituição de solidariedade", relembra Rita.
Desde então, a Lucky Flamingo está parada, mas as contas continuam a cair: site, seguros, contabilidade... "Não tive direito a apoio da Segurança Social, porque é uma empresa com um só gerente e não tenho ordenado", explica.
"Alguns eventos online continuaram a ter catering com entrega de boxes. Mas eu não tenho catering próprio, subcontrato os serviços. Das minhas relações profissionais, conheço empresas que estão paradas ou que se reinventaram, sobretudo as de catering, que conseguiram transformar-se em empresas de entrega de comida", avança.
Agora, a alegria de organizar eventos regrediu para um estado de angústia que a fez deixar a psicologia infantil. "Mudei mesmo porque a psicologia estava a ser muito pesada. Era psicóloga clínica infantil num hospital público e tinha muitos casos complicados, na zona de Almada. Crianças com problemas económicos e sociais muito grandes. Era um peso muito grande, não conseguia mudar nada e comecei a achar que precisava de algo que me animasse", esmiúça Rita.
"Neste momento, tenho medo. Porque ao parar a sociedade, esta área é das primeiras a serem afetadas. Independentemente de as coisas voltarem ao normal, num ano ou em dois, fez-me pensar", admite.
"Uma das coisas que tenho na cabeça é que vou ter de arranjar uma alternativa. Estou a pensar num projeto que possa fazer a par da Lucky Flamingo, ligado às vendas online. Ainda estou a tentar apurar a ideia", adianta.
"Na pandemia, pior do que a parte económica, são as dinâmicas. Uma pessoa que vai para a organização de eventos não sabe o que vai acontecer a cada dia. E, de repente, tudo para. Não tenho telefonemas, e-mails, nada para publicar nas redes sociais", analisa.
"É um choque, passar de um quotidiano de imprevisibilidade e grande agitação para nada. Não se consegue ser psicóloga de si própria", sorri.
Filipe Morato Gomes
Bloguista de viagens
Uma fotografia no lago Bun- yonyi, Uganda. Filipe Morato Gomes (Porto, 1971) celebrou a 25 de fevereiro 20 anos de Alma de Viajante (blogue de viagens) e escolheu esta imagem como metáfora de um dos setores mais fustigados por um ano de pandemia.
A 18 de janeiro de 2020, Filipe andava pelo arquipélago tailandês de Koh Kook, nas areias brancas da praia Ao Tapao. A Tailândia foi o último destino estrangeiro deste viajante profissional, que ganha a vida com as receitas geradas pelo blogue.
"Em fevereiro, antes da pandemia chegar cá, decidi ficar a fazer conteúdos de viagens anteriores", lembra. Depois, bem, depois foi uma volta ao mundo a cancelar viagens.
Páscoa (12 de abril). "Tinha uma viagem com os miúdos [dois filhos] à Capadócia, na Costa de Antália, Turquia."
Maio de 2020. "Ia às ilhas Faroé, para depois produzir conteúdos."
Férias escolares de verão. "Ia passar nove semanas na Indonésia, em família, com objetivo de dar uma experiência ao meu filho mais novo, semelhante à que a minha filha mais velha tinha tido numa volta ao mundo."
Conclusão. "Tive de cancelar isso tudo."
"O que fui fazendo", continua Filipe, "foi em Portugal", com o retomar do turismo, que rebentou nos feriados de junho. "Aconteceu uma coisa brutal. Na Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, da qual sou presidente, fizemos a campanha "Eu Fico em Portugal". Durante um mês, 50 bloguistas produziram conteúdos por todo o país. Foi o nosso contributo para a retoma do turismo. Na altura, não se imaginava que o interior ia ter um ano fantástico. O que era uma desvantagem, o isolamento, passou a ser uma enorme vantagem", relata.
Claro que ainda poder fazer algumas viagens domésticas entre confinamentos foi oxigénio para um setor estrangulado, mas não impediu "uma quebra brutal nas receitas".
"Estamos inseridos no setor macro do turismo, tal como as agências de viagens. Para gerar receitas, dependemos de as pessoas pensarem em viajar, de procurarem dicas sobre destinos, de fazerem reservas ou seguros de viagem", avança Filipe.
"Os dados indicavam que iria ter o melhor ano de sempre, os primeiros meses e o verão de 2020 compensaram um pouco, mas houve uma acentuada quebra de rendimentos. Atualmente, o Alma do Viajante gera menos de 10% do que num mês de um ano normal", sentencia.