Medir temperatura dos trabalhadores. Lei deixa mais perguntas que respostas
A possibilidade de as entidades empregadoras poderem fazer a medição da temperatura corporal, determinada num diploma publicado no início do mês, não convence a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e divide os especialistas em legislação laboral, com leituras diferentes do que está disposto na lei. De um e outro lado pede-se uma revisão ou uma clarificação do quadro jurídico, que deixa muitas portas abertas a interpretações divergentes.
Na passada semana, a CNPD voltou à carga com este tema. Num documento enviado à Assembleia da República em resposta a um requerimento do líder parlamentar do CDS, Telmo Correia, a CNPD insiste na falta de enquadramento legal para uma medida desta natureza e não poupa críticas à legislação do Executivo, considerando que deixa os trabalhadores desprotegidos, não tendo o "grau de precisão e previsibilidade que, num Estado de Direito, se exige a qualquer norma restritiva de direitos, liberdades e garantias".
Para a CNPD a lei "causa particular estranheza, sobretudo por consistir numa norma vazia de qualquer garantia dos direitos dos titulares dos dados e, especificamente, omissa quanto à previsão de condições que garantam um consentimento informado e livre".
Recorde-se que a possibilidade de as empresas medirem a temperatura dos trabalhadores teve um parecer negativo da Comissão Nacional de Proteção de Dados mas, depois de conhecida a posição da CNPD, o Governo veio defender um entendimento contrário e alterou mesmo a lei no sentido de clarificar que essa situação é possível.
Se o Executivo defende que a mera leitura da temperatura corporal, sem posterior registo, não configura o tratamento de dados pessoais, a CNPD diz o contrário. E se a lei refere que é "expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma" a comissão defende que este consentimento não é válido num contexto de relação laboral, em que há uma relação subordinada - a "hipótese do consentimento não pode ser equacionada pela evidente ausência de garantias de liberdade do consentimento".
A CNPD "continua a aguardar por uma demonstração, fundamentada, da insuficiência da sensibilização quanto à necessidade de automonitorização de sintomas da COVID-19, nos termos exatamente recomendados pela Direção-Geral de Saúde", refere a resposta enviada à Assembleia da República, que é também bastante crítica quanto à omissão da lei sobre o que acontece caso um funcionário apresente uma temperatura corporal superior à norma.
A lei publicada pelo Governo determina que "podem ser realizadas medições de temperatura corporal a trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho", o que "não prejudica o direito à proteção individual de dados, sendo expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma". Caso haja medições de temperatura "superiores à normal temperatura corporal, pode ser impedido o acesso dessa pessoa ao local de trabalho".
A advogada Inês Arruda não acompanha a posição da CNPD de que estamos perante uma situação de recolha e tratamento de dados e qualifica mesmo a posição daquela entidade como "insensata" num contexto de especial exigência e de "necessidade de defesa da saúde dos trabalhadores", defendendo que a posição assumida pelo Executivo é mais consentânea com a realidade atual.
Para o advogado Pedro da Quitéria Faria a questão prende-se com a própria lei, que é "genérica e muito vaga", acabando por criar um "vazio legal" por falta de concretização das normas, o que levanta um "conjunto de questões que já começam a surgir". O advogado defende que o Governo deve rever a legislação - "Não tenho grandes dúvidas de que isso irá ocorrer".
O texto legal suscita leituras divergentes aos especialistas em matéria laboral. A começar pela questão de quem está apto a fazer essa medição de temperatura.
Para Inês Arruda, sócia da Vasconcelos, Arruda & Associados, o texto da lei deixa espaço a que a empresa designe uma pessoa para esta tarefa, que não tem de ser pessoal médico, até porque "não é exequível ter um médico à porta de cada empresa a medir a temperatura". E um trabalhador pode recusar-se a fazer essa medição? A advogada considera que sim e que nestes casos a empresa deve enviar o funcionário para a medicina do trabalho, para que a medição seja feita nesse contexto.
Já Pedro da Quitéria Faria, sócio da Antas da Cunha ECIJA, considera que a lei não deixa espaço a que o trabalhador recuse a medição da temperatura. Mas, por outro lado, sustenta que esta tem de ser feita por um médico ou alguém em quem seja delegado o dever de sigilo a que aquele está obrigado. E a possibilidade de isso ser feito por um segurança, como está a acontecer em muitas empresas? "Isso choca-me, trata-se de um dado sensível. Não deixa de me criar perplexidade que possa ser um segurança a fazê-lo".
Outro dos aspetos apontado por Pedro da Quitéria Faria passa pela falta de concretização da lei quanto ao que é a temperatura normal de uma pessoa - um aspeto que também é salientado pela CNPD.
Nas várias orientações que tem emitido a Direção-Geral de Saúde tem apontado uma temperatura igual ou superior a 38º graus como um sinal de alerta, mas acrescentando-lhe a tosse persistente e as dificuldades respiratórias. No guia sobre saúde e empresas emitido pela DGS pode ler-se que "a temperatura ≥ 38.0ºC (febre), a tosse persistente (ou agravamento da tosse habitual) e a dispneia / dificuldade respiratória são os sintomas comuns da COVID-19. A auto monitorização destes sintomas (pelo trabalhador) permite identificar Casos Suspeitos de COVID-19 e encaminhar para os necessários serviços de saúde". Mas a lei não especifica e nem sequer remete para as orientações da DGS, o que deixa a porta aberta a que as empresas possam estipular valores diferentes, sublinha o advogado.
Uma das grandes incógnitas da lei é o que acontece a seguir nos casos em que um trabalhador apresente uma temperatura superior à normal e seja, nos termos da lei, impedido de trabalhar. Se acabar por entrar em isolamento profilático fica ao abrigo do regime definido legalmente. Mas, e se isso não acontecer? Quem paga o dia - ou os dias - em que o funcionário não esteve a trabalhar?
Inês Arruda diz que é preciso "um bocadinho de bom senso, não deixa de ser uma situação de doença" - "Não tenho nota de nenhuma empresa que tenha dito 'agora vai para casa e não pagamos'". Mas a situação não está juridicamente clara e pode acabar com uma falta justificada por motivo de doença. Nestes casos a empresa não tem obrigatoriamente de pagar os dias de ausência e, seja com baixa médica ou na falta dela, uma ausência por doença até três dias também não é paga pela Segurança Social.
Embora sublinha que "se a empresa manda o trabalhador para casa deve pagar-lhe a retribuição por inteiro", Pedro da Quitéria Faria também não afasta a possibilidade de as empresas invocarem falta justificada, mas com a consequente perda de retribuição. Para este advogado, as empresas têm que ter o "passo seguinte" bem definido nos planos de contingência que estão obrigadas a elaborar, encaminhando o trabalhador para a Saúde 24 para efeitos de despistagem.
O DN questionou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre estas questões, mas não obteve resposta.
A controvérsia em torno da medição da temperatura corporal dos trabalhadores não é um exclusivo português. Em Espanha a autoridade de proteção de dados emitiu recomendações que vão no mesmo sentido da congénere nacional, mas as empresas estão também a avançar com esta medida, nomeadamente com o uso de aparelhos de infravermelhos que registam a temperatura. E este pode ser outro problema: Inês Arruda defende que, nestes casos, a linha sobre se há ou recolha ou tratamento de dados é mais ténue.